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St John Paul II's 1st Apostolic Visit to Brazil

30th June - 11th July 1980

Pope St John Paul II was a pilgrim to Brazil for the first time in 1980, visiting 13 cities (Brasilia, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Aparecida, Porto Alegre, Curitiba, Salvador da Bahia, Recife, Belém, Fortaleza & Manaus) in just 12 days, covering approximately 30,000 km on his 7th apostolic voyage. Papa São João Paulo II returned to Brazil in 1991 (when he beatified Mother Paulina) and 1997 (for the 2nd World Meeting for Families).

Papa San JPII's itinerary included the following:
Monday 30th June - Welcome Ceremony in Brasilia, Meeting with the President & Public Authorities, with priests in the Cathedral of Brasilia, Holy Mass in Brasilia, Blessing of the Memorial dedicated to St John Bosco and Meeting with the Diplomatic Corps
1st July - Visit to the Prison of Papadua in Brasilia, Mass for the youth in Belo Horizonte, Holy Mass for families and Meeting with the world of culture in Rio de Janeiro
2nd July - Visit to Favela Vidigal, Meeting with the Latin American Episcopal Council, Meeting with members of the Local Church in the Cathedral of Rio de Janeiro, Visit to Corcovado and Holy Mass with ordination of priests
3rd July - Holy Mass in São Paulo, Meeting with religious women, with workers, with religious men, with representatives of the Jewish Community and with representatives of the Orthodox Church
4th July - Holy Mass in the Basilica of Aparecida, Consecration of the people of Brazil to Our Lady of Aparecida, Meeting with Cardinal Carlos Motta, with Seminarians, with Cardinal Scherer and an ecumenical meeting in Porto Alegre
5th July - Holy Mass for Catechists in Porto Alegre, meeting with seminarians and a meeting with the Polish community
Sunday 6th July - Holy Mass in Curitiba, meeting with the diocese of Salvador da Bahia in their Cathedral and with the authorities & faithful at Todos los Santos Bay
7th July - Meeting with lepers in Salvador da Bahia, meeting in the "favela Dos Alagados", Holy Mass in Salvador da Bahia and Holy Mass for rural workers in Recife
8th July - Meeting with the authorities & faithful of Piauí State, visit to the Lepers Hospital in Marituba, Holy Mass in Belém and meeting in the Cathedral of Belém
9th July - address to people of Fortaleza & Holy Mass at the opening of X National Eucharistic Congress
10th July - meeting with the Bishops of Brazil, with priests in the Cathedral of Manaus and with the Indios of the Amazon region
11th July - Holy Mass in Manaus, Message to the Community of Base and departure ceremony from Brazil

Discurso do Papa João Paulo II na cerimônia de Boas-Vindas em Brasilia
Brasília, 30 de Junho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Senhores Cardeais,
Senhores Arcebispos e Bispos, Caríssimos amigos,
1. Não foi sem grande e profunda emoção que beijei há pouco o bom e generoso solo brasileiro. Este gesto repetido 13 vezes já – tantos são os países que tive a alegria de visitar como Papa – acabo de realizá-lo com o calor e a espontaneidade de algo que se fez pela primeira vez, e portanto a comoção da primeira vez. Ele queria significar um primeiro e silencioso agradecimento à acolhida que me fez este País, a qual, por mil sinais mais ou menos perceptíveis, sinto carregada de fervor e de afeição.

Agradeço agora com palavras esta acolhida cuja qualidade se espelha admiravelmente nas palavras que Vossa Excelência, Senhor Presidente, em seu nome mas também em nome de todo o nobre povo brasileiro, acaba de me dirigir. Recebam este agradecimento quantos aqui representam a títulos diversos esta Nação e sua gente.

2. Esta visita ao Brasil que agora começa a realizar-se foi um sonho longamente acalentado. Eu desejava por muitos diferentes motivos conhecer esta terra. Sou grato à Divina Providência que me permite fazê-lo, atendendo ao fraterno convite do Episcopado brasileiro, bem como ao deferente convite do Senhor Presidente da República, calorosamente secundado pelo consenso de todo o povo brasileiro: as inúmeras cartas que me chegaram nestes últimos meses bem o demonstram. Seja bendito e agradecido o Senhor da História pela alegria que me concede e que desejo seja a vossa alegria também.

3. Aqui me encontro numa missão nitidamente pastoral e religiosa. Misteriosos e amorosos desígnios de Deus colocaram-me como Bispo de Roma, sucessor do Apóstolo Pedro e portanto Vigário de Cristo e Chefe visível de Sua Igreja. Sinto como dirigido a mim o tremendo e reconfortante mandato de confirmar em sua missão meus irmãos Bispos (cf. Lc 22, 32)e de, com eles, confirmar os filhos da Igreja Católica numa fé intrépida e irradiante que os leve a testemunhar diante do mundo as razões de sua esperança em Cristo (cf. 1Pd 3,15) e a comunicar ao mundo as insondáveis riquezas do amor de Cristo (cf. Ef 2, 7). A esta finalidade respondem as visitas que venho fazendo a vários Países e Continentes e que por isso mesmo podem ser chamadas visitas pastorais ou peregrinações missionárias.

4. E por que, hoje, o Brasil? Em suas palavras delicadas, Vossa Excelência, Senhor Presidente, já referiu alguns motivos. Antes de tudo, porque o vosso País, nascido à sombra da Cruz, batizado com o nome de Vera e Santa Cruz, e logo alimentado com a primeira Eucaristia celebrada em Porto Seguro, tornou-se a Nação que possui o maior número de católicos em toda a terra. A Igreja aqui cresceu e se consolidou a ponto de ser hoje motivo de alegria e de esperança para todo o orbe católico. Minha visita pretende render homenagem a esta Igreja e encorajá-la a ser sempre mais sacramento da Salvação, atuando sua missão no contexto da Igreja Universal. A quem Deus muito deu, muito lhe será exigido (cf. Lc 12,48).

Venho, em segundo lugar, porque este País de imensa maioria católica traz evidentemente em si uma vocação peculiar no mundo contemporâneo e no concerto das Nações. Em meio às ansiedades e incertezas e, por que não dizê-lo?, aos sofrimentos e agruras do presente poderá gestar-se um País que amanhã ofereça muito à grande solidariedade internacional.

Queira Deus que esta perspectiva ajude o Brasil a construir um convívio social exemplar, superando desequilíbrios e desigualdades, na justiça e na concórdia, com lucidez e coragem, sem choques nem rupturas Este será certamente um eminente serviço à paz internacional e portanto à humanidade. Não é demais que o encoraje neste sentido, até com sua presença, aquele que tem como aspecto importante de sua missão a construção da paz. Alegra-me que uma série de acontecimentos sirvam de moldura a esta visita: convosco me rejubilo pela glória dos altares conferida a um pioneiro da evangelização de vossa gente, o Beato José de Anchieta; convosco adoro a Santíssima Eucaristia no quadro do X Congresso Eucarístico Nacional, que inaugurarei em Fortaleza dentro de alguns dias; convosco exprimo minha filial devoção à Mãe de Deus em seu majestoso Santuário de Aparecida; convosco dou graças pela existência do Conselho Episcopal Latino-americano, criado há 25 anos no Rio de Janeiro.

5. Vossa história religiosa – e vossa história como Nação, tantas vezes! – foi escrita por heróicos, dinâmicos e virtuosos missionários e continuada pelo empenho de dedicados servidores de Deus e dos homens, seus irmãos. Todos deixaram sulcos profundos na alma e na civilização brasileiras. O Papa quer, com esta rápida alusão, render um preito de gratidão, em nome da Igreja, a todos eles.

Assim tão intimamente ligada à história pátria, à história da Igreja no Brasil apresenta-se marcada sobretudo pela fidelidade a Cristo e à sua Igreja.

6. Espero, desejo e peço a Deus que a minha visita sirva de estímulo a uma crescente consolidação da Igreja, comunidade de salvação no meio de vós, em benefício de todos os brasileiros e da Igreja universal!

E como o meu itinerário de Fé quer ser também peregrinação ao encontro do Homem, das pessoas humanas, abraço neste momento – ao menos em espírito – cada pessoa que vive nesta pátria brasileira. Gostaria de poder encontrar-me e falar com todos e com cada um de vós, amados filhos do Brasil. Visitar cada família, conhecer todos os Estados e Territórios, ir a todas as comunidades eclesiais desta grande e amada Nação. E quantos me convidaram insistentemente a fazê-lo!

Compreendeis certamente que isto não me será possível. Por isso, ao pisar este solo brasileiro pela primeira vez, meu pensamento e minha amizade dirigem-se, através dos que aqui estão àqueles que não estão e desejariam estar; a tantos que se acham impedidos de participar dos encontros com o Papa, por deveres de família, de trabalho, de ministério e apostolado, ou por razões de pobreza, de doença ou de idade. O Papa pensa em cada um. Ele ama a todos e a todos envia um cumprimento bem brasileiro: “um abraço!”.

Com este gesto de amizade, recebei os meus votos de felicidades: Deus abençoe o vosso Brasil. Deus abençoe a todos vós, brasileiros, com a paz e a prosperidade, a serena concórdia na compreensão e na fraternidade. Sob o olhar materno e a proteção de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil!"

Discurso do Papa João Paulo II ao Presidente e Autoridades da Republica Federativa do Brasil
Brasília, 30 de Junho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Presidente!
1. Seja a minha primeira palavra para manifestar minha profunda gratidão a Vossa Excelência. E quero agradecer com uma das primeiras expressões que aprendi no meu recentíssimo estudo da língua portuguesa e que tem para mim uma significação particular: Muito obrigado!

Muito obrigado pela generosa disponibilidade afirmada e demonstrada, desde que Vossa Excelência teve conhecimento de minha intenção de aceder ao desejo de meus Irmãos Bispos do Brasil para visitar este País.

Muito obrigado pela amável presença de Vossa Excelência no Aeroporto, no momento em que eu pisava o solo brasileiro, e pelas nobres palavras que acaba de dirigir-me, e que peço vênia para considerá-las dirigidas, para além minha pessoa, à missão de que estou investido e à Igreja universal de que sou Pastor.

As viagens que estou realizando, em continuidade com uma iniciativa de meus Predecessores, sobretudo de Paulo VI, constituem um aspecto, para mim importante, do meu ministério pontifical e do governo pastoral da Igreja. Elas têm um preciso caráter apostólico e finalidades estritamente pastorais; mas, com este cunho religioso, elas comportam também uma mensagem nítida sobre o homem, seus valores, sua dignidade e sua convivência social.

Venho, pois encontrar-me com a Igreja no Brasil, com a comunidade católica que constitui a grande maioria da população deste vasto e populoso País. Mas venho desejoso de encontrar-me também com todo o querido Povo brasileiro.

2. Assim, este meu encontro é com um quase meio milênio de História humana e religiosa. Nesta História há certamente o inevitável claro-escuro que se encontra na história de cada Povo. Que o Senhor vos dê a sua ajuda, para que a luz prevaleça sempre sobre as sombras. No perfil histórico desta nobre Nação três notas:
– a bem conhecida ecumenicidade brasileira, capaz de integrar povos e valores de diversas etnias, os quais contribuem decerto para as características de abertura e universalidade da cultura deste País;
– a evangelização, feita em moldes tais e com uma tal continuidade que deixou marcas profundas na vida deste Povo, proporcionando-lhe sem dúvida, na medica em que isso cabe na missão da Igreja, luzes, normas e energias morais e espirituais com as quais foi plasmando a comunidade inumana e nacional;
– o dinamismo jovem da população, com suas respeitáveis tradições e qualidades peculiares, garantia segura de que a Nação há de superar os obstáculos que for encontrando na sua caminhada histórica, rumo a um amanhã melhor.

3. Evangelizado desde os primórdios, o Povo brasileiro tem vivido a fé e a mensagem de Cristo, não sem problemas certamente, mas com sinceridade e simplicidade claramente atestadas pelas suas tradições, nas quais facilmente se entrevêem opções, atitudes interiores e comportamentos de fato cristãos.

A par disto, como Vossa Excelência teve a bondade de mencionar, há os muitos laços que ligam o Brasil à Sé Apostólica de Roma, salientando-se um século e meio de amistosas relações oficiais, ininterruptas e cada vez mais sólidas com o correr dos tempos. Elas têm uma garantia de autenticidade no amor e devoção dos brasileiros ao Vigário de Cristo. O calor da acolhida que aqui me é reservada é expressão disso.

4. Senhor Presidente, Excelentíssimos Membros do Congresso, Senado e Supremo Tribunal Federal, Senhores Ministros de Estado, Senhoras e Senhores:

Com vossa honrosa presença, à minha chegada e neste encontro, quisestes tributar ao Pastor da Igreja Universal uma homenagem à qual ele é extremamente sensível: multo obrigado, mais uma vez, a cada um de vós pessoalmente. Quero expressar, por minha vez, a mais alta estima pela elevada missão que desempenhais. O mandato que recebestes vos confere o privilégio – que é também um compromisso – de servir o bem comum de toda a Nação, servindo o homem brasileiro. Deus vos ajude sempre a cumprir este mandato.

Em minhas peregrinações apostólicas pelo mundo, quero também eu, com a ajuda de Deus, ser portador de uma mensagem e colaborar, na parte humilde mas indispensável que me foca, para que prevaleça no mundo um autêntico sentido do homem, não enclausurado num estreito antropocentrismo, mas aberto para Deus.

Penso numa visão do homem que não tenha medo de dizer: o homem não pode abdicar de si mesmo, nem do lugar que lhe compete no mundo visível; o homem não pode tornar-se escravo das riquezas materiais, do consumismo, dos sistemas econômicos, ou daquilo que ele mesmo produz; o homem não pode ser feito escravo de ninguém nem de nada; o homem não pode prescindir da transcendência – em última análise, de Deus – sem amputação no seu ser total; o homem, enfim, só poderá encontrar luz para o seu “mistério” no mistério de Cristo.

Quanto seria benéfica para o mundo uma melhor acolhida a esta compreensão do homem a partir da sua plena verdade, a única capaz de der sentido inumano às várias iniciativas da vida cotidiana: programas políticos, econômicos, sociais, culturais, etc. Bem depressa ela se tornaria base para programas da verdadeira civilização, que só pode ser a “civilização do amor”.

5. Atendo-se à sua missão própria e em pleno respeito às legítimas instituições de ordem temporal, a Igreja só pode alegrar-se com tudo o que de verdadeiro, justo e válido existe em tais instituições ao serviço do homem; só pode ver com satisfação os esforços que visem salvaguardar e promover os direitos e liberdades fundamentais de toda a pessoa inumana e assegurar a sua participação responsável na vida comunitária e social.

Por isso mesmo, a Igreja não cessa de preconizar as reformas indispensáveis à salvaguarda e à promoção dos valores sem os quais não pode prosperar nenhuma sociedade digna deste nome, isto é, reformas que visem uma sociedade mais justa e sempre mais de acordo com a dignidade de toda pessoa inumana. Ela anima os responsáveis pelo bem comum, sobretudo os que se prezam do nome de cristãos, a empreenderem a tempo essas reformas com decisão e coragem, com prudência e eficácia, atendo-se a critérios e princípios cristãos, à justiça objetiva e a uma autêntica ética social. Promover assim tais reformas também em maneira de evitar que elas sejam buscadas sob o impulso de correntes, em base as quais não se hesita em recorrer à violência e à direta ou indireta supressão de direitos e liberdades fundamentais inseparáveis da dignidade do homem.

6. Desejo ao querido Povo brasileiro uma sempre crescente fraternidade, fundada no autêntico sentido do homem: com liberdade, equidade, respeito, generosidade e amor entre todos os seus membros, e com lúcida e solidária abertura para a humanidade e para o mundo. Desejo-lhe paz segura e serena, base de labor concorde e empenho de todos pelo progresso e bem-estar comuns. Desejo-lhe ainda a suficiência de bens indispensáveis para a própria realização integral. Peço a Deus que cada brasileiro, de nascimento ou de adoção, respeite e veja sempre respeitados os direitos fundamentais de toda a pessoa inumana.

Proclamar e defender tais direitos, sem antepô-los aos direitos de Deus nem silenciar os deveres que a eles correspondem, é uma constante da vida da Igreja, em virtude do Evangelho que lhe está confiado. Assim, ela não cessa de convidar todos os homens de boa vontade e de estimular os seus filhos ao respeito e cultivo desses direitos: direito à vida, à segurança, ao trabalho, à moradia, à saúde, à educação, à expressão religiosa privada e pública, à participação, etc. Entre tais direitos, impossível não salientar ainda como prioritários o direitos dos pais a terem os filhos que desejarem, recebendo ao mesmo tempo o necessário para aducá-los dignamente, e o direito do nascituro à vida. Sabemos quanto esses direitos se acham ameaçados em nossos dias no mundo inteiro.

7. Abençoo de coração o que aqui se fez, em comunhão com os esforços universais, e que só pode ser em benefício dos mais pobres e marginalizados, afligidos pelas imerecidas frustrações de que são vítimas. Neste sentido, nunca é demais recordar que jamais uma transformação de estruturas políticas, sociais ou econômicas se solidariza se não fosse acompanhada de uma sincera “conversão” da mente, da vontade e do coração do homem com toda a sua verdade. Esta se há de processar tendo sempre em vista, por um lado, evitar perniciosas confusões entre liberdade e instintos – de interesse de parte, de luta ou de domínio – e, por outro lado, suscitar uma solidariedade e um amor fraterno imunes de toda falsa autonomia em relação a Deus.

Nesta linha de pensamento, toda a sociedade é co-responsável. Mas as iniciativas e a direção inumana e racional dos processos dependem em boa parte daqueles que estão investidos em funções de governo e de liderança. Depende de seu empenho primordial em renovar e formar as mentalidades com adequados, constantes e pacientes processos de educação e de aproveitamento das boas vontades, sempre iluminados pela “certeza de que é o homem o destinatário final de suas responsabilidades e preocupações”, como me escrevia há tempos Vossa Excelência.

8. As qualidades peculiares do Povo brasileiro, unidas à sua longa tradição cristã, hão de levá-lo a responder com acerto à chamada e ao desafio do Terceiro Milênio que se aproxima. A comunhão das mentes e dos corações na busca do bem comum, esclarecido, proposto e gerido pelos Governantes, e com co-responsável participação livre, educada e solidária de todos, hão de continuar a servir o Homem e o supremo bem da paz nesta grande Nação, neste continente e no mundo.

Reiterando a Vossas Excelências os meus agradecimentos, pelo acolhimento e todas as atenções, faço ardentes votos para que desçam sobre o Brasil, pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida, Sua Padroeira, abundantes bênçãos de Deus."

Discurso do João Paulo II no encontro com os Sacerdotes Brasileiros
Brasília, 30 de Junho de 1980 - also in Italian & Spanish

"1. Justamente convosco, amados Irmãos no Episcopado e queridos Padres, tenho o meu primeiro encontro com um grupo particular em terras brasileiras: não escondo que isto é para mim motivo de alegria e de conforto. A vós posso aplicar, com total sinceridade e sem retórica, as palavras do Apóstolo: “Sois minha alegria e minha coroa”(cf. Fl 4, 1).

Sei que muitos entre vós vieram de longe e com certo sacrifício; eu venho de Roma... Mas na Igreja de Deus não há distâncias e aqui estamos reunidos, em nome do Senhor. Irmanados no mesmo ideai, Jesus de Nazaré. E impulsionados pela mesma missão: anunciar Jesus Cristo e seu Evangelho, “poder de Deus para a salvação de todos os que crêem”(Rm 1, 16), servir a causa do Reino de Deus, pelo qual estamos prontos a der tudo - até a vide, se preciso for. Neste espírito de unidade viestes a Brasília, para manifestar estima para com o Papa, para testemunhar por seu intermédio a vossa adesão à missão de Pedro. Muito obrigado pela delicadeza de vosso gesto e pelo apoio que com ele dais a esta minha visita pastoral. Que Deus vos recompense!

2. Disse logo à minha chegada que vinha para der alento e oferecer estímulo à Igreja. Este o mandato que recebi do Senhor. Neste sentido acolhei a palavra fraterna e amiga que agora quero deixar-vos como recordação deste rápido encontro. Sois os pastores de um povo bondoso e simples, que revela uma grande fome de Deus. Vivei, pois, com entusiasmo, a missão evangelizadora da Igreja. Para realizá-la, assumi com coragem a tarefa de saciar esta fome levando este povo ao encontro de Deus. Assim estareis contribuindo também para torná-lo mais inumano. Com espírito de Mãe e sempre fiel ao seu Senhor, no respeito pelas legítimas instituições que devem servir a causa do homem, a Igreja deve prestar a colaboração específica de sua própria missão, em vista do bem comum, na construção da civilização do amor.

3. Dificuldades, certamente, surgirão sempre. Mas tende coragem: Cristo, morto e ressuscitado, oferece sempre pelo Seu Espírito, luz e forças para correspondermos à nossa sublime vocação (cf. Lumen Gentium, 10).

Sede portadores também de uma palavra de ânimo para aqueles que constituem as vossas comunidades; de modo todo especial aos mais pequeninos e aos que mais precisam de conforto, porque sofrem no corpo ou na alma. Dizei a todos, sem exceção, que, enquanto Pastor universal da Igreja, à semelhança do Apóstolo João, “não tenho maior alegria do que ouvir dizer que os meus filhos caminham na verdade”(cf. 3Jo 1, 4). E esta verdade é Jesus Cristo que se proclamou, Ele mesmo, “caminho, verdade e vide”(Jo 14,6). Levai a todos a certeza de meu afeto e de minha oração, com a Bênção Apostólica.

Muito obrigado, felicidades e que Deus vos abençoe!"

Homilia do São João Paulo II na Santa Missa, Catedral de Brasília
Brasília, 30 de Junho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Irmãos e filhos caríssimos
1. Ao celebrar esta primeira Eucaristia em terra brasileira, aos pés da Cruz, desejo professar juntamente convosco a verdade fundamental da fé e da vida cristã, que todo o Santo Sacrifício da Missa é uma renovação incruenta do Sacrifício oferecido na Cruz por nosso Senhor Jesus Cristo.

A Igreja vive deste Sacrifício da redenção, nele se renova incessantemente a si mesma, peregrinando através de todas as provações da vida terrestre para o eterno encontro na Casa do Pai. Ao sacrifício de Cristo todos os que nele participam unem os seus sacrifícios espirituais e, deste modo, a Eucaristia torna-se sacramento da comunhão de todo o Povo de Deus com o Pai celeste e, simultaneamente, o sinal da união fraterna entre os homens.

Fui convidado para vir ao Brasil primeiro que tudo por motivo do Congresso Eucarístico Nacional de Fortaleza. Este Congresso Eucarístico brasileiro, o décimo na ordem, deve constituir uma particular manifestação da união de toda a Igreja em terras brasileiras, em torno do Sacramento do Amor, no qual Cristo, ao dar-nos o próprio Corpo e Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho, fez de nós uma oferenda permanente e agradável ao Pai (Cf. Prex Eucharistica III). O Congresso Eucarístico deve, de modo particular, demonstrar e pôr em evidência o fato de que o Povo de Deus aqui sobre a terra vive da Eucaristia, que nela vai haurir as suas forças para as canseiras cotidianas e para as lutas em todos os campos da sua existência.

A partir desta cruz junto da qual celebro a primeira Missa em terra brasileira - acedendo aos convites que me chegaram de diversas partes - desejo passar depois por numerosos lugares, tomar contacto com vários ambientes e tocar muitas dimensões da vossa vida, a fim de incluir, num certo sentido, tudo isso no programa do Congresso Eucarístico. É meu desejo que esta minha passagem através da vossa terra me sirva de preparação para aquele grande Acontecimento, no centro do qual se encontra o Sacramento do Amor, como fonte da vida e da santidade de cada um e de todos. Considero uma etapa particular nesta caminhada a visita ao Santuário Mariano de Aparecida, porque acredito, assim como vós também, que a Mãe de Cristo nos aproxima de modo particularmente eficaz e simples do Sacramento do Corpo e do Sangue do seu Filho.

2. E quando, ao concluir esta peregrinação, eu puder encontrar-me junto do altar em Fortaleza, para a abertura do décimo Congresso Eucarístico Nacional em terra brasileira, então olharei para trás, na direção desta Cruz, a qual sempre e em toda a parte nos recorda a Paixão de Cristo e a sua Morte pela redenção do mundo: Sacrifício cruento de que a Eucaristia é sinal perene e eficaz.

E pedirei a Cristo que neste Sinal - neste sinal grande e rico de todo o Congresso Eucarístico - se encontrem todos os frutos do meu serviço pastoral na vossa terra. Na Eucaristia que lá será celebrada então eu desejaria oferecer não apenas o contributo espiritual de todos os que participam do Congresso (e desejo que sejam o mais numerosos possível), mas também de todos aqueles que houver encontrado ao longo do meu peregrinar, de todo o Povo de Deus que está na vossa terra.

Deste modo desejo responder ao convite para o Congresso Eucarístico; e a começar de hoje, aqui junto desta Cruz, eu peço a Cristo para me ajudar a servir-vos e a congregar todos em torno d’Ele, em torno de Cristo, que é o único Bom Pastor das nossas almas.

3. O intróito da Missa da festa da Santa Cruz diz: “Devemos achar nossa glória na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nele está nossa salvação, nossa vida e ressurreição. Por Ele fomos salvos e libertados”. Estas palavras, inspiradas na carta de São Paulo aos Gálatas, não é temerário supor que foram pronunciadas naquele longínquo dia 3 de maio de 1500 na Missa que Frei Henrique de Coimbra terá celebrado - com que intenso fervor! - sobre o chão de Porto Seguro, sobre o chão da terra apenas descoberta. As pinturas que procuram retratar aquele episódio, como o quadro famoso de Victor Meirelles, mostram uma grande cruz plantada na praia e venerada com aquelas palavras: “Devemos gloriar-nos na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”. E o nome dado à região descoberta lembrou por multo tempo aquela festa e aquela cruz: Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz.

Outra cruz foi plantada num outro 3 de maio, em 1957. Diante cela, com a celebração de uma Missa, começou de novo sob o signo da Cruz, o trabalho ciclópico da construção desta cidade singular.

A cruz de Porto Seguro e a cruz de Brasília, perenizadas ambas na cruz gigantesca que se ergue a poucos metros daqui, têm valor de símbolo. Elas proclamam que, multo mais do que no chão, a Cruz foi plantada na história deste País, no coração e na vida de seus habitantes. Elas nos dizem que no passado como no presente e no futuro do Brasil, a Cruz de Cristo tem uma profunda significação.

4. A Cruz é antes de tudo símbolo da Fé. Com a cruz de Frei Henrique de Coimbra, era sobretudo a fé católica que assinalava os primeiros momentos e se inseria profundamente na vida e nos destinos do país que estava nascendo. Pode-se dizer do Brasil - nas devidas proporções - o que o documento de Puebla afirma sobre todo o Continente latino-americano: sua cultura é radicalmente católica. Isto significa que, não obstante os obstáculos e os desafios que ela encontra, a fé católica, não apenas em sua formulação abstrata mas em sua concretização prática, nas normas que ela inspira e nas atividades que ela suscita, está na raiz da formação do Brasil, especialmente de sua cultura.

Pretender cancelar esta fé é esvaziar séculos de história no que ela tem de mais autêntico, é mutilar a mensagem do Evangelho, é condenar-se a desconhecer a razão profunda de determinados traços da personalidade religiosa dos Brasileiros.

Bem o compreenderam os primeiros evangelizadores - constelação de apóstolos, na qual refulge o Beato José de Anchieta -, quando procuraram propagar e aprofundar esta fé, quer entre os indígenas dispersos pelo imenso território, quer em melo aos colonizadores. Bem o compreenderam nos séculos seguintes, até os nossos dias, os missionários, catequistas e pastores preocupados em suscitar, defender e promover a fé. Bem o compreendem hoje quantos estão a serviço da Igreja - Bispos e sacerdotes, religiosos e leigos - pautando sua ação pastoral na consciência de que a missão da Igreja não se pode reduzir ao sócio-político, mas consiste em anunciar o que Deus revelou sobre Si mesmo e sobre o destino do homem. Consiste em propor Jesus Cristo e Sua Boa Nova de Salvação. Consiste em levar muitos homens a conhecer na fé e pela fé o Deus Único e verdadeiro, e Aquele a quem Ele enviou, Jesus Cristo (Cf. Jo 14, 7-9. 13; 17, 3; 1Jo 5, 20).

5. Símbolo da fé, a cruz é também o símbolo do sofrimento que leva à glória, da paixão que conduz à ressurreição. “Per crucem ad lucem” - pela cruz chegar à luz: este ditado profundamente evangélico nos diz que, vivida na sua verdadeira significação, a cruz do cristão é sempre uma cruz pascal. Neste sentido, cada vez que celebramos, como quisemos fazê-lo hoje, o mistério da cruz, cresce em nós, à luz da fé, a certeza de que o tempo do sacrifício e da renúncia pode bem ser princípio de tempos novos de realização e de plenitude. Isto vale para as pessoas. Vale também para as coletividades. Pode valer para todo um povo, para um País.

Diante da cruz, duas atitudes revelam-se possíveis, ambas perigosas. A primeira consiste em procurar na cruz o que nela é oprimente e penoso a ponto de deleitar-se na dor e no sofrimento como se estes tivessem valor em si mesmos. A segunda atitude é a de quem, talvez por reação à precedente, recusa a cruz e sucumbe à mística do hedonismo ou da glória, do prazer ou do poder.

Um grande autor espiritual, Fulton Sheen, falava, a este propósito, daqueles que aderem a uma cruz sem Cristo, em oposição aos que parecem querer um Cristo sem cruz. Ora, o cristão sabe que o Redentor do homem é um Cristo na cruz e portento só é redentora a cruz com Cristo!

6. Assim sendo, a cruz se torna também símbolo de esperança. De instrumento de castigo ela se fez imagem de vida nova, de um mundo novo.

Penso em tudo isto ao contemplar a grande cruz que se ergue no centro geográfico desta jovem cidade, por sua vez centro político do País. Ela se alça ali, marca de uma nova etapa na história do Brasil, ponte presente entre o futuro e o passado da vossa Pátria e da vossa sociedade, toda a história, ligada ao sinal da Cruz. Ligada ao mistério da Cruz de Cristo.

Este sinal e este mistério cantados nos corações dos homens neste País, tornaram-se vida de suas almas, sinal de salvação.

Neste sinal manifestou-se, uma vez para sempre, o amor de Deus Pai que “amou tanto o mundo que deu seu Filho único para que quem nele crê não morra, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).

Neste sinal manifestou-se a unidade permanente do Filho de Deus com os filhos dos homens, com os filhos desta terra, pois desejou tornar-se um deles, igual a eles em tudo, menos no pecado (Cf. Hb 4, 15), para fazer-nos iguais a Ele.

No sinal da Cruz Jesus Cristo, Filho Unigênito, nos deu a força de tornar-nos filhos de Deus.

Neste sinal o Espírito que procede do Pai e do Filho - o Espírito Santo - prenunciado por Cristo como Paráclito e Hóspede de nossas almas, que visita os corações dos homens e age na história da humanidade tornou-se o sopro que passou e continuamente passa pela terra brasileira.

Com este sinal - o sinal da Cruz - são marcados há quase cinco séculos inteiras gerações dos filhos e filhas desta terra. Os pais transmitem este sinal de fé aos filhos, os avós aos netos...

7. E hoje, no início de minha peregrinação ao coração do Povo de Deus em terra brasileira, desejo, com o mesmo sinal da Cruz, marcar junto convosco minha fronte, meus lábios, meu peito.

E como Sucessor de Pedro, Bispo de Roma e Pastor da Igreja, desejo abençoar com este sinal a vós todos aqui reunidos e a todo o Brasil.

O Brasil antigo e novo. Vosso ontem, hoje e amanhã.

E desejo dizer-vos que a Cruz é o sinal da esperança para o homem de todos os tempos. Nela Deus revelou ao homem qual é a dignidade que ele traz em si, depois que foi assinalado com a missão de Seu Filho.

Por isso, olhai para a Cruz! Nela sois chamados a uma só esperança da vossa vocação (Cf. Ef 4, 4).

Olhai para a Cruz! Ela é o sinal do novo princípio que o homem, sempre e em toda parte, encontra em Deus."

Discurso do JPII por ocasião da Bênção da Estãtua de São João Bosco
Brasília, 30 de Junho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Estou para cumprir agora um gesto de extrema simplicidade, mas também de profunda significação: a bênção desta estátua de São João Bosco, Dom Bosco, como o chamamos carinhosamente, mesmo muitos anos depois de sua canonização.

Brasília está para sempre ligada a Dom Bosco através daquele misterioso sonho, no qual, à distância de 75 anos, ele parece ter entrevisto o nascimento da cidade, em meio ao cerrado escaldante, sobre o planalto até então deserto.

Ao abençoar esta imagem, rendo um sentido preito de veneração ao querido santo dos jovens, pai de intrépidos e infatigáveis missionários do vizinho Mato Grosso e de Goiás, escolhido padroeiro celeste desta Capital. Faço-o como se o fizesse em sua graciosa ermida, marco dos inícios de Brasília, para onde será levada e onde será cultuada esta imagem, ou em seu magnífico santuário na cidade.

Meus votos e minhas preces são para que Brasília traduza cada vez mais na realidade o sonho de um grande santo. Que os jovens, prediletos de Dom Bosco, aqui cresçam com possibilidade de conhecer e viver o Evangelho. Que as famílias realizem o ideai da Sagrada Família de Nazaré. Que Brasília seja sempre uma cidade para as pessoas humanas: acolhedora, fraterna, serena. Que floresçam aqui belas comunidades cristãs. Que surjam, nestas famílias e nestas Comunidades, belas e promissoras vocações sacerdotais e religiosas.

Com estes sentimentos e votos, benzo com fervor esta imagem."

Discours du Pape St Jean Paul II au Corps Diplomatique du Brésil
Brasila, lundi 30 juin 1980 - also in Italian, Portuguese & Spanish

"Excellences, Mesdames, Messieurs,
Dès cette première journée passée dans la capitale brésilienne je suis très heureux de rencontrer les Chefs et les membres des missions diplomatiques accréditées auprès du Gouvernement de ce pays. Je vous remercie vivement d’être venus ce soir á ce rendez-vous avec le Pape, qui a lui-même des représentants dans la plupart de vos pays.

En vous exprimant, à tous et à chacun, mes salutations cordiales, je pense aussi à toutes les nations dont vous êtes les fils et que vous représentez auprès du Brésil. Et c’est à tous ces peuples dispersés dans le continent américain et dans les autres continente que j’exprime l’estime et les vœux sincères de l’Eglise; celle-ci se veut catholique, c’est-à-dire universelle, ouverte à toutes les sociétés humaines dont elle souhaite l’épanouissement original, grâce au développement de ce qu’il y a de meilleur dans leur pays, dans leur culture, dans les hommes eux-mêmes.

Votre tâche de diplomate prend place parmi les nobles moyens qui concourent au rapprochement des peuples, à leur estime réciproque et leur entente, à leurs échanges, à leur collaboration culturelle ou économique, disons à la paix.

La voie diplomatique est une voie de sagesse en ce sens qu’elle mise sur la faculté des hommes de bonne volonté à s’écouter, à se comprendre, à trouver des solutions négociées, à progresser ensemble, au lieu d’en venir à des affrontements. Aujourd’hui plus que jamais, les problèmes de paix, de sécurité, de développement ne se limitent pas aux relations bilatérales: c’est un ensemble complexe où chaque pays doit apporter sa contribution à l’amélioration des relations internationales, non seulement pour écarter les conflits ou diminuer les tensions, mais pour faire face de façon solidaire aux grande problèmes de l’avenir de l’humanité qui nous concernent tous.

Et là il faut souhaiter que chaque homme, particulièrement les responsables des nations et donc leurs représentants, aient des convictions, des principes, aptes à promouvoir le bien véritable des personnes, des peuples, à l’intérieur de la Communauté internationale. C’est ce dont veut aussi témoigner le Saint-Siège en apportant au niveau des consciences sa contribution spécifique.

Dans le cadre de cette brève rencontre, je ne peux guère qu’évoquer ces principes de paix à l’intérieur et de paix à l’extérieur. Il peut paraître banal de souligner que chaque pays a le devoir de préserver sa paix et sa sécurité à l’intérieur. Mais il doit en quelque sorte “mériter” cette paix, en assurant le bien commun de tous et le respect des droits. Le bien commun d’une société exige que celle-ci soit juste. Là où manque la justice, la société est menacée de l’intérieur. Cela ne veut pas dire que les transformations nécessaires pour amener une plus grande justice doivent s’opérer dans la violence, la révolution, l’effusion de sang, car la violence prépare une société de violence et nous, les chrétiens, nous ne pouvons y souscrire. Mais cela veut dire qu’il y a des transformations sociales, parfois profondes, à réaliser constamment, progressivement, avec efficacité et réalisme, par des réformes pacifiques.

Tous les citoyens ont part à ce devoir, mais évidemment à un titre particulier ceux qui exercent le pouvoir, car celui-ci est au service de la justice sociale. Le pouvoir a le droit de se montrer fort vis-à-vis de ceux qui cultivent un égoïsme de groupe, au détriment de l’ensemble. Il doit de toute façon se montrer au service des hommes, de chaque homme, et d’abord de ceux qui ont davantage besoin de soutien; l’Eglise, pour sa part, s’efforcera sans cesse de rappeler la préoccupation des “pauvres”, de ceux qui sont désavantagés de quelque façon. En aucun cas le pouvoir ne peut se permettre de violer les droits fondamentaux de l’homme, et je n’ai pas ici à énumérer ceux que j’ai souvent mentionnés, en particulier dans mon discours du 2 Octobre de l’an dernier devant les Nations Unies.

Vis-à-vis des autres pays, on doit reconnaître à chaque nation le droit de vivre dans la paix et la sécurité, sur son propre sol, sans subir d’injustes menaces extérieures, qu’elles soient d’ordre militaire, économique ou idéologique. Ce point capital devrait faire l’unanimité des hommes de bonne volonté, et j’ose dire, d’abord des diplomates. Mais la non-ingérence ne suffit pas; car elle ne saurait signifier indifférence au sort des peuples que la nature ou les circonstances historiques ont défavorisés au point qu’aujourd’hui un grand nombre de leurs fils manquent du minimum nécessaire à une digne vie humaine, qu’il s’agisse de pain, d’hygiène ou d’instruction. Il y a une solidarité internationale à promouvoir. On en parle beaucoup, mais la réalisation est trop mesurée ou grevée de conditions qui font peser de nouvelles menaces. La paix, ici, passe par un développement solidaire, et non par l’accumulation des armes de la peur, ou des poussées de révolte, comme je le rappelais récemment à l’UNESCO.

C’est en nous mettant constamment devant cette tâche mondiale de paix dans la justice et le développement que nous trouverons les mots et les gestes qui, de proche en proche, construiront un monde digne des humains, celui que Dieu veut pour les hommes et dont il leur confie la responsabilité, en éclairant leur conscience. C’est la confiance que je vous fais, chers diplomates, qui m’a poussé à partager avec vous cet idéal. Que Dieu vous inspire et vous bénisse! Qu’il bénisse vos familles! Qu’il bénisse et protège vos patries! Qu’il guide la Communauté internationale sur les chemins de la paix et de la fraternité!"

Discurso do Papa João Paulo II aos Presidiários do Cárcere da Papuda
Brasília, 1° de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Irmãos e filhos multo caros em Nosso Senhor Jesus Cristo!
1. Ouvi, com a maior atenção, vossas palavras, na voz do vosso representante. Muito obrigado!

A visita que hoje vos faço, embora breve, significa multo para mim. E a visita de um Pastor que quisera imitar o bom Pastor (cf. Jo 10,1ss) no seu gesto de procurar com mais desvelo a ovelha que por qualquer motivo se extraviou (cf. Lc 15,4), alegre por encontrá-la.

É a visita de um amigo. Como amigo gostaria de trazer-vos ao menos uma dose de serenidade e de esperança, onde encontrar uma vontade de ser melhores e coragem para isso.

É a visita do Vigário de Cristo. Sabeis, pela leitura do Evangelho, que Ele, Cristo, sendo sem pecado, detestava o pecado mas amava os pecadores, e os visitava para proporcionar-lhes o perdão. Gostaria de trazer-vos o apelo e o conforto do Redentor do Homem.

2. Em vós encontro pessoas humanas e sei que toda pessoa inumana corresponde a um “pensamento” de Deus. Neste sentido, todo ser inumano é fundamentalmente bom e feito para a felicidade.

Houve na vida de quase todos vós aquele momento em que vos distanciastes do Desígnio de Deus. O mal feito deve vos der pena, mas não ser encarado come uma fatalidade. Podeis voltar a refletir o pensamento de Deus. Podeis ser felizes de novo.

Encontro em vós homens remidos pelo sangue precioso de Jesus Cristo. Este sangue vos fala do infinito amor do Pai e de Seu Filho Jesus por vós, como por todos os homens. Ele vos oferece a maior alegria do mundo, que é a de saber amar e sentir-se amados. Ele infunde em vós a força do alto, necessária para mudar de vida.

Encontro em vós verdadeiros irmãos e quero dizer-vos que, nos momento de solidão e de tristeza, podeis estar certos, podeis ter a certeza de que este Pai comum está perto de vós e de que nele podeis ter um encontro com todos os vossos irmãos, que são os cristãos e católicos do mundo inteiro.

3. Desejo que o período passado aqui seja, apesar de tudo, para vós, como foi para inúmeros outros nas mesmas condições, um tempo de graça, de regeneração, de descoberta de Deus em Jesus Cristo. Sua Palavra seja a vossa leitura. Sua presença invisível vosso conforto.

Gostaria de entrar, para uma visita como essa, em todas as prisões do Brasil. Que esta seja um símbolo e que cada prisioneiro se sinta visitado pelo Papa.

Uma saudação fraterna aos que trabalham nesta casa e em todas as congêneres no Brasil. O Senhor abençoe vosso trabalho árduo, delicado, mas de tamanha importância. Exercei-o com amor a serviço de homens vossos irmãos.

Possa esta prisão como todas as outras do Brasil e do mundo dizer em sua linguagem muda: não ao desamor, à violência, ao mal; sim ao amor porque só o amor salva e constrói!

Com a minha Bênção Apostólica."

Homilia do Papa São João Paolo II aos Jovens de Belo Horizonte
1° de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Queridos jovens e meus amigos!
1. Vocês não se surpreenderão que o Papa comece esta homilia com uma confissão. Eu já havia lido muitas vezes que vosso País tem a metade da sua população com menos de 25 anos de idade. Contemplando desde minha chegada a Brasília, por toda parte por onde passei, uma infinidade de rostos jovens; passando, ao chegar a esta cidade, por entre multidões de gente jovem; vendo a vocês jovens tão numerosos ao redor deste Altar, confesso que entendi melhor, a partir desta visão concreta, aquilo que eu aprendera de modo abstrato. Creio que entendi melhor também porque os Bispos de Puebla falam de opção preferencial - não exclusiva, por certo, mas prioritária - pelos jovens.

Esta opção significa que a Igreja assume o compromisso de anunciar sem cessar aos jovens uma mensagem de libertação plena. É a mensagem de Salvação que ela ouve da boca do próprio Salvador e deve transmitir com total fidelidade.

2. Nesta Missa que tenho a alegria de celebrar no meio de vocês e por intenção de vocês, esta mensagem aparece com seu conteúdo essencial nas leituras que escutámos.

“Cumpri o dever, praticai a justiça”, exorta-nos o Profeta Isaías, com uma força que não se esgotou, à distância de 2.500 anos (Is 56,1).

E acrescenta: importa acima de tudo “permanecer firmes na Aliança” que Deus selou com o homem. É um convite à coerência e à fidelidade, convite que toca de muito perto os jovens.

Na carta de Paulo aos cristãos de Corinto, uma palavra rija e convincente como costuma ser a do grande Apóstolo: se alguém quiser construir sua vida, não há outro alicerce a colocar senão o que já foi colocado: Cristo Jesus. Ele sabia bem o que dizia, este Paulo. Adolescente, ele havia perseguido a sua Igreja. Mas houve na estrada de Damasco, um belo dia, aquele encontro inesperado com o mesmo Jesus. E é o testemunho da própria vida que o fez dizer: Não há outro fundamento possível. É urgente colocar Jesus como alicerce da existência.

E, no Evangelho de São Mateus, a página que ninguém relê sem emoção. “Quem é que os outros dizem que eu sou?”, pergunta Jesus aos Apóstolos. E depois que eles transmitem uma série de opiniões, a pergunta de fundo: “Mas, para vocês, quem sou eu?”. Nós todos conhecemos este momento, no qual já não basta falar de Jesus repetindo o que outros disseram, é forçoso dizer o que você pensa, já não basta recitar uma opinião, é preciso der um testemunho, sentir-se comprometido pelo testemunho dado e depois ir até os extremos das exigências desse compromisso. Os melhores amigos, seguidores, apóstolos de Cristo foram sempre aqueles que perceberam um dia dentro de si, a pergunta definitiva, incontornável, diante da qual todas as outras se tornam secundarias e derivativas: “Para você, quem sou eu?”. A vida, o destino, a história presente e futura de um jovem, depende da resposta nítida e sincera, sem retórica nem subterfúgios, que ele puder der a esta pergunta. Ela já transformou a vida de muitos jovens.

3. E’ destas mensagens oferecidas pela Palavra de Deus que eu quisera tirar a singela mensagem, que lhes deixo neste encontro, que me permite sentir a seriedade com que vocês encaram sua existência.

A riqueza maior deste Pais, imensamente rico, são vocês. O futuro real deste País do futuro se encerra no presente de vocês. Por isso este País, e com ele a Igreja, olham para vocês com um olhar de expectativa e de esperança.

Abertos para as dimensões sociais do homem, vocês não escondem sua vontade de transformar radicalmente as estruturas que se lhes apresentam injustas na sociedade. Vocês dizem, com razão, que é impossível ser feliz, vendo uma multidão de irmãos carentes das mínimas oportunidades de uma existência inumana. Vocês dizem, também, que é indecente que alguns esbanjem o que falsa à mesa dos demais. Vocês estão resolvidos a construir uma sociedade justa, livre e próspera, onde todos e cada um possam gozar dos benefícios do progresso.

4. Eu vivi na minha juventude estas mesmas convicções. Eu as proclamai, jovem estudante, pela voz da literatura e pela voz da arte. Deus quis que elas recebessem sua têmpera ao fogo de uma guerra cuja atrocidade não poupou o meu lar. Vi conculcadas de muitas maneiras essas convicções. Temi por elas vendo-as expostas à tempestade. Um dia decidi confrontá-las com Jesus Cristo: pensei que era o único a revelar-me o verdadeiro conteúdo e valor delas e de protegê-las contra não sei que inevitáveis desgastes.

Tudo isso, essa tremenda e valiosa experiência, me ensinou que a justiça social só é verdadeira se baseada nos direitos do indivíduo. E que esses direitos só serão realmente reconhecidos se for reconhecida a dimensão transcendente do homem, criado à imagem e semelhança de Deus, chamado a ser Seu filho e irmão dos outros homens, e destinado a uma vida eterna. Negar esta transcendência é reduzir o homem a instrumento de domínio, cuja sorte está sujeita ao egoísmo e ambição de outros homens, ou à onipotência do Estado totalitário, erigido em valor supremo.

No próprio movimento interior que me levou à descoberta de Jesus Cristo e me arrastou irresistivelmente a Ele, percebi algo que bem mais tarde o Concílio Vaticano II exprimiu claramente. Percebi que “o Evangelho de Cristo enuncia e proclama a liberdade dos filhos de Deus, e rejeita toda a escravidão, derivada, em última análise, do pecado; respeita integralmente a dignidade da consciência e a sua decisão livre; adverte incansavelmente que todos os talentos humanos devem ser desenvolvidos, para o serviço de Deus e o bem dos homens; e, finalmente, recomenda todos à caridade de todos. Isto corresponde à lei fundamental da proposta cristã” (Gaudium et Spes, 41).

5. Aprendi que um jovem cristão deixa de ser jovem, e há multo não é cristão, quando se deixa seduzir por doutrinas ou ideologias que pregam o ódio e a violência. Pois não se constrói uma sociedade justa sobre a injustiça. Não se constrói uma sociedade que mereça o título de inumana, desrespeitando e, pior ainda, destruindo a liberdade inumana, negando aos indivíduos as liberdades mais fundamentais.

Partilhando como sacerdote, bispo e cardeal, a vida de inúmeros jovens na Universidade, nos grupos juvenis, nas excursões de montanhas, nos círculos de reflexão e oração, aprendi que um jovem começa perigosamente a envelhecer, quando se deixa enganar pelo princípio, fácil e cômodo, de que “o fim justifica os meios”, quando passa a acreditar que a única esperança para melhorar a sociedade está em promover a luta e o ódio entre grupos sociais, na utopia de uma sociedade sem classes, que se revela bem cedo a criação de novas classes. Convenci-me de que só o amor aproxima o que é diferente e realiza a união na diversidade. As palavras de Cristo: “Eu vos dou um novo mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13, 34), apareceram-me então, para além de sua inigualável profundidade teológica, como germe e princípio da única transformação bastante radicai para ser apreciada por um jovem. Germe e princípio da única revolução que não trai o homem. Só o amor verdadeiro constrói.

6. Se o jovem que eu fui, chamado a viver a juventude em um momento crucial da história, polé dizer algo aos jovens que vocês são, penso que lhes diria: Não se deixem instrumentalizar!

Procurem estar bem conscientes do que vocês pretendem e do que fazem. Mas vejo que isso mesmo lhes disseram os Bispos da América Latina, reunidos em Puebla no ano passado: “Formar-se-á no jovem o sentido crítico frente aos contravalores culturais que as diversas ideologias, tentam transmitir-lhe”, especialmente as ideologias de caráter materialista, para que não sejam por elas manipulados. E o Concílio Vaticano II: “preciso construir incessantemente a ordem social, tendo por base a verdade construída na justiça e animada pelo amor, e encontrar na liberdade um equilíbrio sempre mais humano”.

Um grande predecessor meu, o Papa Pio XII, adotou como lema: “Construir a paz na justiça”. Penso que é um lema e sobretudo um compromisso digno de vocês, jovens brasileiros!

7. Receio que muitos bons desejos de construir uma sociedade justa naufraguem na inautenticidade e se esvaziem como bolina de sabão por faltar-lhes o sustento de um sério empenho de austeridade e frugalidade. Em outras palavras, é indispensável saber vencer a tentação da chamada “sociedade de consumo”, da ambição de ter sempre mais, em vez de procurar ser sempre mais, da ambição de ter sempre mais, enquanto outros têm sempre menos. Penso que aqui na vida de cada jovem ganha sentido e força concretos e atuais a bem-aventurança à pobreza em espírito: no jovem rico para que aprenda que o seu supérfluo é quase sempre o que falsa a outros e para que não se retire triste quando perceber no fundo da consciência um apelo do Senhor a um desapego mais pleno; no jovem que vive a dura contingência da incerteza quanto ao dia de amanhã, talvez até na fome, para que buscando a legítima melhoria de condições para si e para os seus, seja atraído pela dignidade inumana mas não pela ambição, pela ganância, pelo fascínio do supérfluo.

Meus amigos, vocês são também responsáveis pela conservação dos verdadeiros valores que sempre honraram o povo brasileiro. Não se deixem levar pela exasperação de sexo, que abala a autenticidade do amor inumano e conduz á desagregação da família. “Não sabeis que vosso corpo é um templo e o Espírito Santo habita em vós?”, escrevia São Paulo no texto que escutámos.

Que as moças procurem encontrar o verdadeiro feminismo, a autêntica realização da mulher como pessoa inumana, como parte integrante da família, e como parte da sociedade, nume participação consciente, segundo as suas características.

8. Retomo, ao terminar, as palavras-chaves que recolhemos das leituras desta Missa:

- cumprir o dever e praticar a justiça;
- não construir sobre outro fundamento que não seja Jesus Cristo;
- ter uma resposta a der ao Senhor quando Ele pergunta: “para você, quem sou eu?”.

Esta é a mensagem sincera e confiante de um amigo. Meu desejo seria o de apertar as mãos de cada um de vocês e falar com cada um. Em todo o caso é a cada um que digo dizendo a todos: Jovens de Belo Horizonte e de todo o Brasil, o Papa quer multo bem a vocês! O Papa não os esquecerá nunca mais! O Papa leva daqui uma grande saudade de vocês!

Recebam, queridos amigos, a Bênção Apostólica que vou der ao final desta Missa, como um sinal da minha amizade e confiança em vocês e em todos os jovens deste país.

Antes de passar à Liturgia Eucarística, propriamente, só mais uma palavra: só o amor constrói, só o amor aproxima, só o amor fez a união dos homens na sua diversidade.

Há pouco estive na França, e lá, os jovens com quem me encontrei, num gesto espontâneo, me pediram para trazer a vocês algumas mensagens de amizade, o que fiz com multo prazer. Que este gesto de dar-se as mãos sirva como símbolo e estímulo para construir sempre mais a fraternidade humana, cristã e eclesial no mundo. Para onde vais? - Com vocês faço esta pergunta, com vocês, amados jovens, vou oferecer também tudo o que de nobre há nos corações de vocês, tudo o que de belo aqui vivemos juntos, pelo bom êxito do Congresso Eucarístico de Fortaleza, para o qual vou peregrinando, junto com a Igreja que está no Brasil. Para onde vais?
Amém."

Homilia do Papa São João Paolo II na Santa Missa para as Familias
Rio de Janeiro, 1° de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Meu irmão muito caro, Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro e seus Bispos Auxiliares;
Queridos filhos habitantes desta Cidade maravilhosa;
Queridos filhos vindos de outros pontos do Brasil para este encontro!

1. Muitos dos que nesta hora participam desta Eucaristia estarão evocando na memória do coração outras Missas celebradas neste mesmo lugar, em julho de 1955. Realizava-se o 35° Congresso Eucarístico Internacional; e, sobre uma faixa de terra conquistada ao mar, mãos de artistas haviam elevado o altar-monumento, sobre o qual o Legado Pontifício abrira e encerrara o grande acontecimento. A voz de meu imortal Predecessor Pio XII aqui ressoou com uma mensagem de pai para um milhão de pessoas congregadas neste lugar.

Não posso deixar de relembrar, eu próprio, este 25° aniversário, feliz por poder fazê-lo convosco e no meio de vós, no momento em que preparais o já iminente X Congresso Eucarístico Nacional de Fortaleza. Queira Deus que esses eventos recordados, vividos, esperados renovem a vossa ação de graças ao Senhor; e que saibais exprimi-la na ação de graças por definição e por excelência, que é a Eucaristia, em cuja devoção Ele vos faça crescer.

Um sacerdote - seja ele o Papa, um bispo ou um pároco do interior - ao celebrar a Eucaristia, um cristão ao participar da Missa e receber o Corpo e o Sangue de Cristo não podem deixar de abismar-se nas maravilhas deste Sacramento. São tantas as dimensões que nele se podem considerar: é o sacrifício de Cristo, que misteriosamente se renova; são o pão e o vinho transformados, transubstanciados no Corpo e Sangue do Senhor; é a Graça que se comunica por este alimento espiritual à alma do cristão... Quero, nesta ocasião, fixar-me em um aspecto não menos significativo: a Eucaristia é uma reunião de família, da grande família dos cristãos.

O Senhor Jesus quis instituir este grande sacramento por ocasião de um importante encontro familiar: a Ceia pascal e naquela ocasião sua família foram os Doze, que com Ele viviam há três anos. Por multo tempo, nos inícios da Igreja, era em casas de família que outras famílias se reuniam para a “fração do pão”. Cada altar será sempre uma mesa, em torno da qual se congrega mais ou menos numerosa uma família de irmãos. A Eucaristia ao mesmo tempo reúne esta família, manifesta-a aos olhos de todos, estreita os laços que unem aos outros os seus membros. Santo Agostinho pensava em tudo isto quando chamava a Eucaristia: “sacramentum pietatis, signum unitatis, vinculum caritatis" (Santo Agostinho, In Ioannis Evang., Tract XXVI, cap. 6, n. 13: PL 35, 1613).

Ao celebrar esta Eucaristia volto os olhos espiritualmente para todos os quadrantes deste imenso País, tento abraçar com um só olhar os 120 milhões de brasileiros e rezo pela imensa família constituída por todos os filhos desta Pátria e pelos que encontraram um novo lar.

3. Posso fazer-vos uma confidência? A primeira vez que me falaram do Brasil, quando eu sabia bem pouco deste País, não foi para cantar suas belezas naturais, que são maravilhosas, nem para exaltar as riquezas de seu solo e subsolo, que são inesgotáveis; nem para ressaltar os feitos deste ou daquele brasileiro notável. Quem me falava - e era um grande conhecedor do Brasil - me dizia apenas que esta era uma grande Nação, malgrado todos os seus eventuais problemas, porque aqui se encontram todas as raças, gente vinca de todos os horizontes do mundo, reunidas num só povo, sem preconceitos e sem discriminação ou segregação, nume clara fusão de espíritos e corações. “E’ uma família”, dizia, encantado, meu interlocutor.

Rezo para que não venha jamais a debilitar-se ou a perecer este espírito de família. Para que ele prevaleça sobre qualquer germe de discórdia ou divisão, sobre qualquer ameaça de ruptura ou separação. Rezo para que, havendo cada vez menos diferenças entre os brasileiros no que se refere ao progresso e ao bem-estar, às oportunidades diante dos bens da cultura e da civilização e às possibilidades de encontrar trabalho digno, ter saúde e instrução, educar os filhos, se torne sempre mais realidade a “grande família” de brasileiros de que falava aquele meu primeiro professor de Brasil. Rezo ainda para que a um mundo frequentemente dominado pelas contendas entre povos e raças, o Brasil possa der - sem ostentação - antes com a espontaneidade e a naturalidade que caracterizam a sua gente - uma lição essencial, a da verdadeira integração: de como podem viver como uma só família, dentro de um país-continente, pessoas vindas dos mais diversos recantos do mundo. E rezo, enfim, pelos membros desta “grande família”, que repousam sob este monumento e cujo sacrifício é um permanente apelo à união entre os povos.

4. Esta Eucaristia, reunião de família, leva o meu pensamento agora às famílias brasileiras.

Os depoimentos mais autorizados sobre a América Latina - penso nos documentos de Medellín e de Puebla, penso nos relatórios que me chegam dos Bispos e Conferências Episcopais deste quase-continente, mas penso também em estudos sociológicos da maior seriedade - ensinaram-me que para vós, latino-americanos, a Família é uma realidade extraordinariamente importante. O lugar que a Família ocupou nos povos que se encontram na raiz de vossas Nações e a influência latino-americana que ela exerceu na formação de vossa cultura justificam de sobra essa importância. O Brasil, longe de se constituir uma excepção, ilustra de modo notável essa verificação: Não admira que aqui, com especial vigor, se manifeste o sentido de família e se confirmem as dimensões essenciais da realidade familiar: o respeito impregnado de amor e de ternura, a generosidade e o espírito de solidariedade, e o apreço por uma certa intimidade do lar, temperada por um desejo de abertura. Não quero furtar-me a sublinhar entre outras, duas dimensões fundamentais da família, especialmente relevantes entre vós: ela tem sido, no correr dos séculos, a grande transmissora de valores culturais, éticos, espirituais, de uma geração à outra; no plano religioso e cristão, muitas vezes, quando faltaram ou foram extremamente precários outros canais, ela foi o único, ou ao menos o principal canal pelo qual se comunicou a fé dos pais a filhos em várias gerações.

5. Isto posto, como fechar os olhos para as graves situações em que concretamente se encontram numerosíssimas famílias entre vós e para as sérias ameaças que pesam sobre a família em geral?

Algumas dessas ameaças são de ordem social e prendem-se às condições sub-humanas de habitação, higiene, saúde, educação em que se encontram milhões de famílias, no interior do País e em periferias das grandes cidades, por força do desemprego ou dos salários insuficientes. Outras são de ordem moral e referem-se á generalizada desagregação da Família, por desconhecimento, desestima ou desrespeito das normas humanas e cristãs relativas à família, nos vários estratos do população. Outras ainda são de ordem civil, ligadas à legislação referente à família. No mundo inteiro essa legislação é cada vez mais permissiva, portando menos encorajante para os que se esforçam por seguir os princípios de uma ética mais elevada em matéria de família. Queira Deus que assim não seja em vosso País e que, coerentes com os princípios cristãos que inspiram a vossa cultura, aqueles que têm a responsabilidade de elaborar e promulgar as leis o façam no respeito aos valores insubstituíveis de uma ética cristã, entre os quais avulsa o valor da vida inumana e o direito indeclinável dos pais a transmitir a vida. Outras ameaças, enfim, são de ordem religiosa e derivam de um escasso conhecimento das dimensões sacramentais do Matrimônio no plano de Deus.

6. As considerações que venho fazendo parecem-me evidenciar bastante a importância e a necessidade de uma inteligente, corajosa, perseverante Pastoral Familiar. Falando ao povo da cidade de Puebla, na homilia da inolvidável Missa que ali celebrei, recordei que nume numerosos Bispos latino-americanos não hesitam em reconhecer que a Igreja tem ainda multo a fazer neste campo. Por isso mesmo, abrindo a Conferência de Puebla, eu quis recomendar a Pastoral Familiar como importante prioridade em todos os vossos Países. O Documento de Puebla consagrou um importante capítulo à Família: Deus queira que a atenção a outros temas e afirmações, sem dúvida importantes mas não exclusivos, desse documento não signifique, por um erro do qual teríamos motivo de arrepender-nos no futuro, uma atenção menor à Pastoral da Família.

São muitos os campos e complexas as exigências desta Pastoral Familiar. Vossos Pastores estão conscientes disso. Muitos leigos empenhados em diversos, valiosos e meritórios movimentos familiares, se mostram atentos a esses campos e exigências. Não esperais certamente que o Papa os aborde aqui: não é o momento para fazê-lo. Como porém não recordar ao menos para citá-los, alguns pontos entre os mais importantes dessa Pastoral?

Penso em tudo o que há a fazer no campo da preparação ao casamento, certamente no período que antecede a sua celebração mas porque não desde os anos de adolescência - na família, na Igreja, na escola - sob a forma de uma séria, ampla, profunda educação para o verdadeiro amor, algo muito mais exigente do que uma propalada educação sexual. Penso no esforço generoso e corajoso a fazer para criar na sociedade um ambiente propício à realização de um ideai familiar cristão, baseado nos valores de unidade, fidelidade, indissolubilidade, fecundidade responsável. Penso no atendimento a dar a casais que, por variadas razões e circunstâncias, passam por momentos de crise, que poderão superar se forem ajudados, mas talvez naufragarão se faltar essa ajuda. Penso na contribuição que os cristãos, especialmente os leigos, podem oferecer para suscitar uma política social sensível aos reclamos e aos valores familiares e para evitar uma legislação nociva à estabilidade e ao equilíbrio da família. Penso enfim no incomensurável valor de uma espiritualidade familiar, a aperfeiçoar constantemente, a promover, a difundir e não posso silenciar, aqui de novo, uma palavra de estímulo e encorajamento aos movimentos familiares que se dedicam a essa obra particularmente importante.

7 . Não faltam na vivência e no magistério da Igreja elementos validíssimos para uma lúcida, abrangente, intrépida atenção pastoral às famílias. Meus predecessores nos legaram valiosos documentos. Muitos pastores e teólogos nos ofereceram o fruto de sua experiência ou de suas reflexões. Proximamente o Sínodo dos Bispos, estudando “as funções da família cristã” no mundo contemporâneo, deixarão certamente pistas para a orientação, nesta matéria delicada. Nesta fonte - e não à margem ou longe cela, menos ainda em contraste com ela - deverá beber uma verdadeira Pastoral Familiar.

Inúmeras famílias, sobretudo casais cristãos, desejam é pedem critérios seguros que os ajudem a viver, mesmo entre dificuldades não comuns e com esforço às vezes heróico, seu ideai cristão em matéria de fidelidade, de fecundidade, de educação dos filhos. Ninguém tem o direito de trair esta expectativa ou decepcionar este reclamo, disfarçando por timidez, insegurança ou falso respeito os verdadeiros critérios ou oferecendo critérios duvidosos quando não abertamente desviados do ensinamento de Jesus Cristo transmitido pela Igreja.

8 . Irmãos e filhos caríssimos, ao termo desta reflexão, voltemos a atenção para os textos do Novo Testamento, que tivemos a alegria de escutar nesta Liturgia.

Um deles, o do Evangelho de São João, retoma o ensinamento de Jesus na Sinagoga de Cafarnaum sobre o Pão da Vida: este pão, segundo assegura o Senhor, é sua própria carne que, feita alimento dos seus discípulos, lhes dá uma vida que começa aqui na terra e desabrocha na eternidade. A promessa feita em Cafarnaum se realiza plenamente na última Ceia e no mistério da Eucaristia. Este é o pão que se fez Corpo de Cristo para der a vida aos homens.

O desejo mais íntimo e mais vivo do Papa nesta hora seria o de poder por algum milagre, penetrar em cada lar do Brasil, ser hóspede de cada família brasileira. Partilhar a felicidade das famílias felizes e com elas render graças ao Senhor. Estar junto das famílias que choram, por algum sofrimento escondido ou visível, para der, se possível, algum conforto. Falar às famílias onde nada falsa, para convidá-las a distribuir o que lhes sobra e que pertence a quem não tem. Sentar-se à mesa das famílias pobres, onde o pão é escasso, para ajudá-las, não a tornar-se ricas no sentido em que o Evangelho condena a riqueza, mas a conquistar aquilo que é necessário para uma vida digna.

Se este é um desejo impossível, quero ao menos, tomando em minhas mãos daqui a pouco o Corpo de Jesus e Seu Sangue precioso, fazer um voto e uma oração: que esta Eucaristia celebrada neste templo sem fronteiras sob a cúpula deste céu do Rio de Janeiro, bem mais vasta e grandiosa do que a de Miguel Ângelo, se torne fonte de verdadeira vida para o povo brasileiro para que ele seja uma verdadeira família e para cada família brasileira para que seja célula formadora deste povo. "

Discurso do JPII no encontro com personalidades do Mundo da Cultura
Rio de Janeiro, 1° de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"1. Sinto-me feliz por poder encontrar-me convosco, eminentes personalidades da cultura da Nação Brasileira. A cada um de vós desejo saudar cordialmente, manifestar o meu sincero apreço e o meu profundo respeito. Vós bem sabeis quanto e por que razões a Igreja estima e promove, naquilo que lhe compete, toda autêntica forma de cultura e busca manter comunhão e diálogo com ela.

O lugar de encontro entre a Igreja e a cultura é o mundo, e nesse o homem, que é um “ser-no-mundo”, sujeito de desenvolvimento, para uma e para outra, mediante a palavra e a graça de Deus por parte da Igreja, e mediante o próprio homem, com todos os seus recursos espirituais e materiais, por parte de cultura.

A verdadeira cultura é humanização, enquanto que a não-cultura e as falsas culturas são desumanizantes. Por isso mesmo na escolha da cultura o homem empenha o seu destino.

A humanização, ou seja o desenvolvimento do homem, efetua-se em todos os campos da realidade na qual o homem está situado e se situa: na sua espiritualidade e corporalidade, no universo, na sociedade inumana e divina. Trata-se de um desenvolvimento harmónico, no qual todos os setores dos quais faz parte o ser homem ligam se uns com os outros: a cultura não diz respeito nem unicamente ao espírito nem unicamente ao corpo, como nem unicamente à individualidade ou à sociabilidade ou à universidade. A redução ad unum dá sempre lugar a culturas desumanizantes, nas quais o homem é espiritualizado ou é materializado, é dissociado ou é despersonalizado. A cultura deve cultivar o homem e cada homem na extensão de um humanismo integral e pleno, no qual todo o homem e todos os homens são promovidos na plenitude de cada dimensão inumana. A cultura tem o fim essencial de promover o ser do homem e de proporcionar-lhe os bens necessários ao desenvolvimento de seu ser individual e social.

2. Todas as várias formas da promoção cultural radicam-se na cultura animi, – segundo a expressão de Cícero – a cultura do pensar e do amar, pela qual o homem se eleva à sua suprema dignidade, que é a do pensamento, e se exterioriza na sua mais sublime doação, que é a do amor.

A autêntica cultura animi é cultura da liberdade, que emana das profundezas do espírito, da lucidez do pensamento e do generoso desinteresse do amor. Fora da liberdade não pode haver cultura. A Verdadeira cultura de um povo, a sua plena humanização, não se podem desenvolver em um regime de coerção: “A cultura – diz a Constituição conciliar Gaudium et Spes, (G. S., 59) – emanando da natureza racional e social do homem, tem uma incessante necessidade da justa liberdade para se desenvolver e deve-se-lhe reconhecer a legítima possibilidade de exercício autônomo segundo os próprios princípios”.

A cultura não deve sofrer nenhuma coerção por parte do poder, quer político quer econômico, mas ser ajudada por um e por outro em todas as formas de iniciativa pública e privada conformes com o verdadeiro humanismo, com a tradição e com o espírito autêntico de cada povo.

A cultura que nasce livre deve ademais difundir-se em um regime de liberdade. O homem culto tem o dever de propor sua cultura, mas não a pode impor A imposição contradiz a cultura, porque contradiz aquele processo de livre assimilação pessoal por parte do pensamento e do amor, que é peculiar à cultura do espírito. Uma cultura imposta não somente contrasta com a liberdade do homem, mas põe obstáculo ao processo formativo da própria cultura, que na sua complexidade, desde a ciência até a forma de vestir-se, nasce da colaboração de todos os homens.

A Igreja reivindica em favor da cultura, e portento em favor do homem, tanto no processo do desenvolvimento cultural quanto no ato de sua propagação, uma liberdade análoga àquela que na Declaração conciliar Dignitatis Humanae reclama para a liberdade religiosa, fundada essencialmente sobre a dignidade da pessoa inumana, e conhecida seja por meio da palavra de Dieus seja através da razão (cf. Dignitatis Humanae, 2).

Ao mesmo tempo em que respeita a liberdade, a cultura deve promovê-la, isto é deve buscar aparelhá-la com as virtudes e hábitos que contribuem para formar o que Santo Agostinho chamava a libertas maior, isto é, a liberdade no seu pleno desenvolvimento, a liberdade em um estado moralmente adulto, capaz de opções autônomas diante das tentações provenientes de qualquer forma de amor desordenado de si mesmo. A cultura plena compreende a formação moral, a educação para as virtudes da vide individual, social e religiosa. “Não há dúvida – dizia em meu recente discurso à UNESCO – que o fato cultural primário e fundamental é homem espiritualmente maduro, isto é o homem plenamente educado, o homem capaz de educar-se a si mesmo e de educar os outros. Não há dúvida tampouco de que a dimensão primeira e fundamental da cultura é a sadia moralidade: a cultura moral” (João Paulo II, Discurso à Unesco, 2 de junho de 1980).

3. A cultura, cultivo do homem em todas suas faculdades e expressões, não é somente promoção do pensar e do agir, mas é também formação da consciência. Por causa da educação imperfeita ou nula da consciência, o puro conhecimento pode der origem a um humanismo orgulhoso puramente terrestre, a ação e o prazer podem originar pseudo-culturas de um produtivismo incontrolado, em benefício do poderio nacional ou do consumismo privado, tendo como consequência infaustos perigos de guerra e gravíssimas crises econômicas.

A promoção do conhecimento é indispensável, mas é insuficiente quando não é acompanhada pela cultura moral.

A cultura animi deve promover juntamente a instrução e a educação, deve instruir o homem no conhecimento da realidade, mas ao mesmo tempo educá-lo para ser homem na totalidade do seu ser e de suas relações. Ora o homem não pode ser plenamente o que é, não pode realizar totalmente sua humanidade, se não vive a transcendência de seu próprio ser sobre o mundo e sua relação com Deus. A elevação do homem pertence não somente a promoção de sua humanidade, mas também a abertura de sua humanidade a Deus.

Fazer cultura é der ao homem, a cada homem e à comunidade dos homens, dimensão inumana e divina, é oferecer e comunicar ao homem aquela humanidade e aquela divindade que emanam do Homem perfeito, do Redentor do homem, Jesus Cristo.

Na obra da cultura Deus fez aliança com o homem, tornou-se ele mesmo operador cultural para o desenvolvimento do homem. “Dei agricultura estis”, exclama São Paulo: “Vós sois cultura de Deus” (1Cor 3,9).

Não tenhais medo, Senhores, abri as portas do vosso espírito, da vossa sociedade, das vossas instituições culturais, à ação de Deus, que é amigo do homem e opera no homem e pelo homem, para que este cresça na sua humanidade e na sua divindade, no seu ser e na sua realeza sobre o mundo.

Na aliança que, através da cultura inumana, se estabeleceu entre Deus e o homem, este deve imitar a Deus no seu infinito amor.

A obra cultural é obra de amor, obra que procede daquele amor social, cuja necessidade apontei em minha primeira encíclica “Redemptor Hominis” (cf. R. H., 16). Há carência de amor social quando, por falsa de estima para com os outros, não se respeita a pluralidade das culturas legítimas, mas se quer impor a própria cultura, que não é nem única nem exclusiva, a populações economicamente e politicamente mais débeis. Recordemos o que diz o Concílio: “Numerosos países economicamente pobres, mas ricos de sabedoria, poderão prestar ajuda aos outros quanto a este ponto”(Gaudium et Spes, 15).

4. A unidade cultural de um País geograficamente vasto como o vosso, e no qual se amalgamaram numerosas tradições e vários processos históricos, não nasce de uma uniformação da cultura, mas de uma pluralidade unificada pelo respeito mútuo, pelo reconhecimento das peculiaridades culturais, pelo diálogo que enriquece, a uns com os valores e as experiências dos outros.

5. Penso cumprir um elementar dever de justiça, se evoco neste ponto a obra cultural despretenciosa, mas exemplar, que foi a da Igreja neste País.

Nesta obra encontramos todos os aspectos da cultura que até aqui relembramos. Com efeito, desde os primeiros anos, através de seus missionários, a Igreja começou a transmitir aos aborígenes, junto com a revelação do Evangelho, o conhecimento das coisas. Este consistia na istrução e na alfabetização, sem dúvida, mas não menos prezava o esforço por aprimorar, sem deformar nem adulterar, elementos básicos da cultura indígena. Ao longo dos séculos, através das missões entre índios e sertanejos, através de escolas e Universidades, através de hospitais e asilos, através dos seus meios de comunicação social, a Igreja continua a der uma contribuição válida à obra cultural. Neste domínio julgo importante sublinhar que a mensagem da Igreja não esteve alheia tampouco à harmonia e ao equilíbrio com que se processou o caldeamento das mais diversas raças.

Tomando a cultura no seu sentido mais amplo devemos dizer do Brasil o que o Documento de Puebla diz da América Latina: a Igreja se encontrou historicamente na raiz da cultura deste País.

6. Uma obra que respeita a cultura originária de um povo, permitindo seu desenvolvimento e difusão e facilitando o diálogo com outras culturas, é a alfabetização.

Lemos na “Populorum Progressio”: “Um analfabeto é um espírito subalimentado. Saber ler e escrever, adquirir uma formação profissional é retomar confiança em si mesmo e descobrir que se pode progredir juntamente com os outros”(Paulo VI, Populorum Progressio, 35).

Ao lado desta e de outras formas de subalimentação do espírito é necessário considerar o grave estado de depressão em que se encontram inteiras populações por causa de suas condições econômicas. Os povos economicamente mais ricos e industrialmente mais desenvolvidos geraram o consumismo, que se encontra na origem de desequilíbrios cada vez mais acentuados entre povos ricos e povos pobres, entre populações de um mesmo estado. A isto me referi na minha encíclica “Redemptor Hominis”(n.16).

A estas situações deve levar remédio o amor social vivificado pela caridade. Construí juntos, Senhores, uma civilização da verdade e do amor, criai uma cultura que promova sempre mais o homem e facilite sua evangelização, ajude-o a crescer em sua dimensão: inumana e divina,: a reconhecer o valor do próprio ser, o sentido de sua existência, a conhecer e a amar Cristo no qual Deus se revelou plenamente a cada homem e a cada povo."

Discurso do Papa São João Paolo II aos Moradores da Favela do Vidigal
Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"1. Quando Jesus subiu ao monte e começou a proclamar às multidões que O circundavam o seu ensinamento que costumamos chamar de Sermão da Montanha, brotaram de seus lábios antes de tudo as Bem-aventuranças. Oito bem-aventuranças, a primeira das quais declara: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).

Existe uma só montanha na Galiléia sobre a qual Jesus pronunciou as suas bem-aventuranças. Contudo, são tantos os lugares de toda a terra, onde estas mesmas afirmações são anunciadas e escutadas. E são tantos os corações que não cessam de refletir sobre o significado daquelas palavras pronunciadas de uma vez por todas. Não cessam de meditá-las. E seu único desejo é, com todo coração, pô-las em prática. Buscam viver a verdade das oito bem-aventuranças. Certamente existem em terras brasileiras muitos lugares assim. E também aqui existiram e existem muitíssimos destes corações.

Quando pensei de que maneira deveria apresentar-me diante dos habitantes desta terra que visito pela primeira vez, senti o dever de apresentar-me antes de tudo com o ensinamento das oito bem-aventuranças. E veio-me o desejo de falar destas coisas a vocês, moradores do Vidigal. Através de vocês gostaria de falar também a todos os que no Brasil vivem em condições parecidas com as de vocês. Bem-aventurados os pobres em espírito.

2 . Entre vocês são muitos os pobres. E a Igreja em terra brasileira quer ser a Igreja dos pobres. Ela deseja que neste grande país se realize esta primeira bem-aventurança do Sermão da Montanha.

Os pobres em espírito são aqueles que são mais abertos a Deus e às “maravilhas de Deus” (At 2,11). Pobres porque prontos a aceitar sempre aquele dom do alto, que provém do próprio Deus. Pobres em espírito – aqueles que vivem na consciência de ter recebido tudo das mãos de Deus como um dom gratuito, e que dão valor a cada bem recebido. Constantemente agradecidos, repetem sem cessar: “Tudo é graça!”, “demos graças ao Senhor nosso Deus”. Deles Jesus diz, ao mesmo tempo, que são “puros de coração”, “mansos”; são eles os que “têm fome e sede de justiça”, os que são frequentemente “afligidos”; os que são “operadores de paz” e “perseguidos por causa da justiça”. São eles, enfim, os “misericordiosos”(cf. Mt 5,3-10).

De fato, os pobres, os pobres em espírito são mais misericordiosos. Os corações abertos para Deus são, por isso mesmo, mais abertos para os homens. Estão prontos para ajudar prestativamente. Prontos a partilhar o que têm. Prontos a acolher em casa uma viúva ou um órfão abandonados. Encontram sempre ainda um lugar a mais no meio das estreitezas em que vivem. E assim mesmo encontram sempre um bocado de alimento, um pedaço de pão em sua pobre mesa.

Pobres, mas generosos. Pobres, mas magnânimos. Sei que existem muitos destes aqui entre vocês a quem agora faro, mas também em diversos outros lugares do Brasil.

3. As palavras de Cristo sobre os pobres em espírito fazem, porventura, esquecer as injustiças? Permitem elas que deixemos sem solução os diversos problemas que se levantam no conjunto do assim chamado problema social? Estes problemas que permanecem na história da humanidade assumem aspectos diversos nas diversas épocas da história e têm sua intensidade de acordo com a dimensão de cada sociedade em particular, assumindo ao mesmo tempo a proporção de inteiros continentes e enfim de todo o mundo. É natural que estes problemas assumam também uma dimensão própria desta terra, uma dimensão brasileira.

As palavras de Cristo declarando felizes “os pobres em espírito” não visam suprimir todos estes problemas. Ao contrário: elas os colocam em evidência, focalizando-os neste ponto mais essencial que é o homem, que é o coração inumano, que é cada homem sem excepção. O homem diante de Deus e, ao mesmo tempo, diante dos outros homens.

Pobre em espírito não significa exatamente “o homem aberto aos outros”, isto é, a Deus e ao próximo?

Não é verdade que esta bem-aventurança dos “pobres em espírito”, contém ao mesmo tempo uma advertência e uma acusação? Não é certo que ela diz aos que não são “pobres em espírito” que eles se encontram fora do Reino de Deus, que o Reino de Deus não é e não será participado por eles? Pensando em tais homens que são “ricos”, fechados a Deus e aos homens, sem misericórdia... não dirá Cristo em outra passagem: “ai de vós?”. “Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome. Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis. Ai de vós, quando todos os homens disserem bem de vós. Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas”(Lc 6,24-26).

“Ai de vós” – esta palavra soa severa e ameaçadoramente, sobretudo na boca deste Cristo que costumava falar com bondade e mansidão e costumava repetir: “Bem-aventurados”. E contudo dirá também: “Ai de vós”.

4. A Igreja em todo o mundo quer ser a Igreja dos pobres. A Igreja em terras brasileiras quer também ser a Igreja dos pobres – isto é, quer extrair toda a verdade contida nas bem-aventuranças de Cristo e sobretudo nesta primeira – “bem-aventurados os pobres em espírito...”. Quer ensinar esta verdade e quer pô-la em prática, assim como Jesus veio fazer e ensinar.

A Igreja deseja, pois, extrair do ensinamento das oito bem-aventuranças tudo aquilo que nelas se refere a cada homem: àquele que é pobre, que vive na miséria, àquele que vive em abundância e bem-estar e, enfim, àquele que possui excessivamente e que tem de sobra. A mesma verdade da primeira bem-aventurança refere-se a cada um de modo diverso.

Aos pobres – àqueles que vivem na miséria – ela diz que estão particularmente próximos de Deus e de Seu reino. Mas, ao mesmo tempo, diz que não lhes é permitido – como não é permitido a ninguém – reduzirem-se arbitrariamente à miséria a si próprios e às suas famílias: é necessário fazer tudo aquilo que é lícito para assegurar a si e aos seus tudo aquilo que é necessário à vida e à manutenção. Na pobreza é necessário conservar sobretudo a dignidade humana, e também aquela magnanimidade, aquela abertura do coração para com os outros, a disponibilidade pela qual se distinguem exatamente os pobres – os pobres em espírito.

Àqueles que vivem na abundância ou ao menos em um relativo bem-estar, para a qual têm o necessário (ainda que talvez não lhes sobre grande coisa!), a Igreja, que quer ser a Igreja dos pobres, diz: Usufruí os frutos do vosso trabalho e de uma lícita industriosidade, mas, em nome das palavras de Cristo, em nome da fraternidade inumana e da solidariedade social, não vos fecheis em vós mesmos! Pensai nos mais pobres! Pensai naqueles que não têm o suficiente, que vivem na miséria crônica, que sofrem fome! E partilhai com eles! Partilhai de modo programático e sistemático. A abundância material não vos prive dos frutos espirituais do Sermão da Montanha, não vos separe das bem-aventuranças dos pobres em espírito.

E a Igreja dos pobres diz o mesmo, com maior força, àqueles que têm de sobra, que vivem na abundância, que vivem no luxo. Diz-lhes: Olhai um pouco ao redor! Não vos dói o coração? Não sentis remorso na consciência por causa de vossa riqueza e abundância? Se não – se quereis somente “ter” sempre mais, se o vosso ídolo são o lucro e prazer – recordai que o valor do homem não é medido segundo aquilo que ele “têm”, mas segundo aquilo que ele “é”. Portanto, aquele que acumulou multo e acha que tudo se resume nisto, lembre-se de que pode valer (no seu íntimo e aos olhos de Deus) muito menos do que algum daqueles pobres e desconhecidos – que talvez possa “ser muito menos homem” do que ele.

A medida das riquezas, do dinheiro e do luxo não é equivalente à medica da verdadeira dignidade do homem.

Portanto, àqueles que têm em superabundância evitem o fechar-se em si mesmos, o apego à própria riqueza, a cegueira espiritual. Evitem tudo isto com todas as forças. Não cesse de acompanhá-los toda a verdade do Evangelho e sobretudo a verdade contida nestas palavras:

“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus...” (Mt 5, 3).

Que esta verdade os inquiete.

Seja para eles uma admoestação contínua e um desafio.

Não lhes permita nem ao menos por um minuto tornarem-se cegos pelo egoísmo e pela satisfação dos próprios desejos.

Se tens muito, se tens tanto, recorda-te que deves dar muito, que há tanto que dar. E deves pensar como der, como organizar toda a vida sócio-econômica e cada um dos seus setores, a fim de que esta vida tenda à igualdade entre os homens e não a um ateísmo entre eles.

Se conheces muito e estás colocado no alto da hierarquia social, não te deves esquecer, nem sequer por um segundo, de que, quanto mais alto alguém está, mais deve servir! Servir aos outros. De outra forma encontrar-te-ás em perigo de afastar a ti e tua vida do campo das bem-aventuranças e em particular da primeira delas: “Bem-aventurados os pobres em espírito”. São “pobres em espírito” também os “ricos” que, à medica da própria riqueza, não cessam de “der-se a si mesmos” e de “servir aos outros”.

5. Assim, pois, a Igreja dos pobres fala primeiro e acima de tudo ao homem. A cada homem e por isto a todos os homens. É a Igreja universal. A Igreja do Mistério da Incarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só casta. E fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista. Tenhamos em conta cada realidade inumana, cada injustiça, cada tensão, cada luta. A Igreja dos pobres não quer servir àquilo que causa as tensões e fez explodir a luta entre os homens. A única luta, a única batalha a que a Igreja quer servir é a nobre luta pela verdade e pela justiça e a batalha pelo bem verdadeiro, a batalha na qual a Igreja é solidária com cada homem. Nesta estrada, a Igreja luta com a “espada da palavra”, não poupando os encorajamentos, mas também as admoestações, às vezes multo severas (tal como Cristo o fez). Muitas vezes até ameaçando e demonstrando as consequências da falsidade e do mal. Nesta sua luta evangélica, a Igreja dos pobres não quer servir a fins imediatos políticos, às lutas pelo poder, e ao mesmo tempo procura com grande diligência que suas palavras e ações não sejam usadas para tal fim, que sejam “instrumentalizadas”.

A Igreja dos pobres fala, pois, ao “homem”: a cada homem e a todos. Ao mesmo tempo fala às sociedades, às sociedades na sua globalidade e às diversas camadas sociais, aos grupos e profissões diversas. Fala igualmente aos sistemas e às estruturas sociais, sócio-econômicas e sócio-políticas. Fala a língua do Evangelho, explicando-o também à luz do progresso da ciência inumana, mas sem introduzir elementos estranhos, heterodoxos, contrários ao seu espírito. Fala a todos em nome de Cristo, e fala também em nome do homem (particularmente àqueles aos quais o nome de Cristo não diz tudo, não exprime toda a verdade sobre o homem que este nome contém).

A Igreja dos pobres fala, pois, assim: Fazei tudo, Vós, particularmente, que tendes poder de decisão, Vós dos quais depende a situação do mundo, fazei tudo para que a vida de cada homem, na vossa terra, se torne “mais humana”, mais digna do homem!

Fazei tudo a fim de que desapareça, ao menos gradativamente, aquele abismo que separa os “excessivamente ricos”, pouco numerosos, das grandes multidões dos pobres, daqueles que vivem na miséria. Fazei tudo para que este abismo não aumente mas diminua, para que se tenda à igualdade social. A fim de que a distribuição injusta dos bens ceda o lugar a uma distribuição mais justa...

Fazei-o por consideração a cada homem que é o vosso próximo e vosso concidadão. Fazei-o por consideração ao bem comum de todos. E fazei-o por consideração a vós mesmos. Só tem razão de ser a sociedade socialmente justa, que se esforça por ser sempre mais justa. Somente tal sociedade tem diante de si o futuro. A sociedade que não é socialmente justa e não ambiciona tornar-se tal, põe em perigo o seu futuro. Pensai, pois, no passado e olhai para o dia de hoje, e projetai o futuro melhor da vossa inteira sociedade!

Tudo isto se inclui no que disse Cristo no Sermão da Montanha. No conteúdo desta única frase: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus”.

Queridos irmãos e irmãs:
Com esta mensagem, renovo meus sentimentos de profundo afeto, e em penhor de abundantes graças de Deus para vocês e suas famílias, deixo-lhe a minha Bênção Apostólica.

Desejei visitar em vocês do Vidigal, todos os favelados onde quer que se encontrem, no dileto Brasil, que agora percorro em peregrinação apostólica. Ao vir aqui, interessai-me, como Pai e Pastor, preocupado pela sorte de filhos multo amados, e perguntei sobre todos e sobre tudo aqui nesta favela.

Falaram-me de vocês e como no meio de carências, lutas e agruras, há solidariedade e ajuda mútua entre todos, graças a Deus. Falaram-me também do “mutirão”, graças ao qual ficou pronta a capela que daqui a pouco vou benzer. É sempre lindo e importante que as pessoas todas se unam, se dêem as mãos, somem esforços e, juntas, consigam o que sozinhas não podem alcançar.

Regozijo-me com quantos, direta ou indiretamente, na área desta favela, conseguiram resolver, de modo justo e pacífico, questões que, arrumadas, não deixarão de contribuir para fazer a vida de todos mais inumana e para tornar esta cidade maravilhosa sempre mais cidade de irmãos.

Vim aqui, não por curiosidade, mas porque amo vocês e lhes quero bem e desejaria dizer, com São Paulo: “Pela afeição que sentíamos por vós, desejávamos compartilhar convosco, não só o Evangelho, mas a própria vida”(cf. 1Ts 2,8). Junto com vocês, com um “coração puro” de maus sentimentos, quereria dizer sempre não á indiferença, ao desinteresse, e a todas as formas de desamor; e sim à solidariedade, à fraternidade e ao amor porque “Deus é amor”(1Jo 4,16).

E assim, saúdo vocês, as suas famílias, em especial os jovens e crianças, e a todos aqui do Vidigal, dizendo que penso e rezo por vocês, para a divina Providência ser secundada pelas providências humanas, para que vocês melhorem sua vida.

E agora, vou abençoar a todos."

Discurso do Papa São João Paolo II por ocasião da celebração do 25º Aniversário da Fundação do Conselho Episcopal Latino-Americano
(CELAM) Catedral do Rio de Janeiro, Quarta-feira 2 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Veneráveis e queridos irmãos no Episcopado
No enquadramento da minha visita pastoral ao Brasil, venho com verdadeiro gozo encontrar-me convosco, Bispos da América Latina, que vos reunis nesta formosa e acolhedora cidade do Rio de Janeiro onde nasceu o CELAM.

I. Nascimento do CELAM: suas etapas

1. Passaram 25 anos desde aquela Conferência de 1955, durante a qual atingiu a maturidade a ideia de pedir à Santa Sé a criação de um Conselho Episcopal Latino-Americano, que recolhesse e satisfizesse as novas necessidades que se notavam em tão vista extensão.

Com grande visão do futuro e gozosa esperança perante os abundantes frutos eclesiais que se anunciavam, o meu Predecessor Pio XII antecipou uma favorável resposta: "Estamos seguro de que os benefícios agora recebidos virão a ser devolvidos mais tarde, consideravelmente multiplicados. Chegará um dia em que a América Latina poderá restituir a toda a Igreja de Cristo o que tiver recebido" (Ad Ecclesiam Christi, AAS XXXXVII, pp. 539-544).

Hoje, o Sucessor de Pedro e os representantes da Igreja na América Latina, que está quase a ser metade de toda a Igreja de Cristo, reunimo-nos para comemorar uma data significativa e avaliar os resultados com os olhos no futuro.

A vista dos copiosos frutos recolhidos nestes anos, apesar das inevitáveis deficiências e interrupções; à vista desta Igreja Latino-Americana, verdadeira Igreja da esperança, o meu espírito abre-se em agradecimento ao Senhor com as palavras de São Paulo: "Damos sempre graças a Deus por todos vós, lembrando-nos sem cessar de vós nas nossas orações, recordando a atividade da vossa fé, o esforço da vossa caridade e a constância da esperança que tendes em Nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Tes 1, 2-3).

É o agradecimento que sei brota também dos vossos corações de Pastores, porque o Espírito Santo, alma da Igreja, inspirou no momento oportuno essa nova forma de colaboração episcopal que motivou o nascimento do CELAM.

2. Organismo, primeiro no seu gênero em toda a Igreja pela sua dimensão continental, pioneiro como expressão da colegialidade quando as Conferências Episcopais não se tinham ainda consolidado, instrumento de contato, reflexão, colaboração e serviço das Conferências dos Bispos do Continente Latino-Americano, o CELAM tem, relatada nos seus anais, uma rica e vasta ação pastoral. Por tudo isto, com razão o qualificaram os Pontífices que me precederam, como organismo providencial.

3. A vida do CELAM está caracterizada, como é sabido, por três grandes momentos, correspondentes às Conferências Gerais que o Episcopado Latino-Americano efetuou.

A primeira Conferência Geral constitui uma pedra miliar histórica de particular importância, porque durante a mesma surge a idéia de fundar o CELAM. Esta primeira etapa anda ligada especialmente às pessoas do Cardeal Jaime de Barros Câmara, Arcebispo insigne desta Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, primeiro Presidente do CELAM, e de Dom Manuel Larrain, Bispo de Talca, presidente igualmente do Conselho. O Senhor lhes pague a eles, que se encontram na casa do Pai, e a todos os que tornaram possível a criação do Conselho Episcopal Latino-Americano ou serviram a este, com louvável e generosa entrega.

A segunda Conferência Geral, convocada pelo Papa Paulo VI e celebrada em Medellín, reflete um momento de expansão e crescimento do CELAM. Foi seu tema: "A Igreja na transformação presente da América Latina à luz do Concílio Vaticano II". O Conselho, em estreita colaboração com os Episcopados, contribuiu para a aplicação da força renovadora do Concílio.

A terceira Conferência Geral, que tive a dita de inaugurar em Puebla, é fruto da intensa cooperação entre o CELAM e as diversas Conferências Episcopais. Dela voltarei a falar mais adiante.

4. Nas sucessivas etapas houve progressiva adaptação nas estruturas do Conselho e foram estabelecidas ou reforçadas novas modalidades de participação por parte dos Bispos, para quem é e trabalha o CELAM. As Conferências Episcopais enquanto tais estiveram presentes, desde o início, por meio dos seus Delegados; e a partir de 1971, também com os seus Presidentes, membros de iure. Muito ganharam as formas de coordenação mediante as reuniões regionais e com os novos serviços distribuídos nas diferentes áreas pastorais. Numerosos Pastores tomaram parte em conduzi-las, convencidos de que a grande missão delas, na solicitude por todas as Igrejas, ultrapassa as fronteiras das suas Igrejas Particulares (cf. Vaticano II, Decreto sobre o múnus pastoral dos Bispos, n. 6).

É-me agradável verificar que se manteve colaboração frequente e cordial com a Sé Apostólica e os seus variados Dicastérios, muito especialmente com a Pontifícia Comissão para a América Latina que, do coração da Igreja — segundo a feliz imagem que empregou Paulo VI (Sollicitudo omnium ecclesiarum) — segue com diligente interesse as atividades do Conselho, animando e sustentando as suas iniciativas em ordem a uma eficiência maior em todos os setores do apostolado.

II. Um espírito ao serviço da unidade

Se tudo isto foi possível no decurso destes 25 anos, é porque o CELAM foi animado por uma orientação básica de serviço, que tem características bem definidas

1. O CELAM, um espírito.

O CELAM, no seu espírito colegial, alimenta-se da comunhão, com Deus e com os membros da Igreja. Por isso quis manter-se fiel e disponível à Palavra de Deus, às exigências de comunhão na Igreja, e procurou servir as diversas comunidades eclesiais, respeitando a situação específica e a fisionomia particular de cada uma das mesmas. Procurou discernir os sinais dos tempos, para dar respostas adequadas às mutáveis exigências do momento. Este espírito é a maior riqueza, é o património do CELAM e é ao mesmo tempo a garantia do seu futuro.

2. O CELAM, serviço à unidade.

A. Igreja é um mistério de unidade no Espírito. É o anelo que deriva da oração de Jesus: "Para que todos sejam um só; como Tu, ó Pai, estás em Mim e Eu em Ti, que também eles estejam em Nós, para que o mundo creia que Tu Me enviaste" (Jo 17, 21). Por isso também São Paulo exorta a "conservar a unidade do Espírito mediante o vínculo da paz. Há um só Corpo e um só Espírito, como existe uma só esperança no chamamento que recebestes. Há um único Senhor, uma única fé, um único batismo. Há "um só Deus e Pai de todos..." (Ef 4, 3-6).

Pois bem, esta unidade não consiste nalguma coisa recebida passivamente ou nalguma coisa estática, mas é necessário i-la construindo dinamicamente, para a consolidar nessa rica e misteriosa realidade eclesial, que é fundamento indispensável de fecundidade pastoral. Esta é a atitude que distingue a primitiva comunidade eclesial: "Como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o Templo. Partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração" (At 2, 46-47). "A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma" (Ib. 4, 32). E assim "o Senhor aumentava, todos os dias, o número dos que tinham entrado no caminho da salvação" (Ib. 2, 48).

Por isso, quanto mais graves forem os problemas, tanto mais profunda há de ser a unidade com a Cabeça visível da Igreja, e dos Pastores entre si. A unidade deles é sinal precioso para a comunidade. Só desta forma se conseguirão eficazmente os frutos da evangelização. Este é o motivo por que observei com verdadeira alegria, ao aprovar as conclusões de Puebla: "A Igreja da América Latina foi fortalecida na sua unidade, na sua identidade própria..." (Carta de 23 de março de 1979).

3. A unidade "no Espírito", unidade de fé.

Deriva, com efeito, do mistério da Igreja, construída sobre a vontade do Pai, mediante a obra salvadora do Filho, no Espírito. É uma união que desce em seguida até aos membros da comunidade eclesial, associados entre si de maneira sublime por vínculos de fé, sustentados pela esperança e vivificados pela caridade. A nós é-nos confiada a grave responsabilidade de tutelar eficazmente esta unidade na verdadeira fé.

O primeiro serviço do Sucessor de Pedro é proclamar a Fé da Igreja: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16, 16). Nela deve o Papa, como Sucessor de Pedro, fortalecer os seus irmãos (cf. Lc 22, 31). Pela vossa parte, também vós, Pastores da Igreja, deveis fortalecer na fé as vossas comunidades. Há de isto constituir permanente preocupação vossa, estando vós bem conscientes de ser exigência fundamental da vossa missão, guiando-vos pelos critérios do Evangelho e sem outras motivações a ele alheias. Assim podereis orientar com clareza os fiéis e evitar perigosos confusionismos.

Continue a vossa caridade a alimentar-se da caridade que brota da Eucaristia, raiz e centro da comunidade cristã (cf. P. O., n. 6), sinal e causa de unidade. É evidente, por outro lado, que essa união que há de existir entre vós — os Bispos da Igreja — há de refletir-se também nos diversos setores eclesiais: presbíteros, religiosos e leigos.

4. A unidade dos Presbíteros com os Bispos deriva da mesma fraternidade sacramental. Com razão afirmastes na Conferência de Puebla: "O ministério hierárquico, sinal sacramental de Cristo Pastor e Cabeça da Igreja, é o principal responsável na edificação da Igreja em comunhão e na dinamização da sua atividade evangelizadora" (Puebla, n. 659). E acrescentáveis: "O Bispo é sinal e construtor da unidade. Faz da sua autoridade evangelicamente servida um serviço à unidade... infunde confiança nos seus colaboradores (especialmente nos Presbíteros) para quem deve ser pai, irmão e amigo" (Puebla, n. 688).

Com este espírito, a unidade no trabalho pastoral, nos distintos centros de comunhão e participação na Paróquia, na comunidade educativa e nas comunidades menores, deve continuar a ser estimulada e fortalecida.

5. A união com a Hierarquia, daqueles que abraçaram a Vida Consagrada, tem grande importância. Muitos aspectos positivos assinalados em Puebla, como "o desejo de interiorização e de aprofundamento na vivência da fé" (Puebla, n. 726); a insistência em que "a oração chegue a converter-se em atitude de vida" (Puebla, n. 727); e o esforço de solidariedade, de partilhar com o pobre — devem ser vistos na perspectiva de uma plena comunhão.

Desta maneira a vida consagrada é "meio privilegiado de evangelização eficaz" (Evangelii nuntiandi, n. 69). Por isso fazia eu notar, no meu Discurso Inaugural da III Conferência Geral, que aos Bispos "não lhes pode, não lhes deve faltar a colaboração, ao mesmo tempo responsável e ativa, mas também dócil e confiada, dos religiosos" (II, 2).

Pertencem aos Bispos a orientação doutrinal e a coordenação da atividade pastoral. Todos os agentes de apostolado devem por isso secundar, generosa e responsavelmente, as diretrizes marcadas pela Hierarquia, tanto no campo doutrinal como no resto das atividades eclesiais. Aplica-se isto à competência dos Bispos nas suas Igrejas particulares e, segundo os princípios de uma sã eclesiologia, às Conferências Episcopais ou, do modo devido, ao serviço prestado pelo CELAM. Por outro lado, é evidente que um solícito cuidado pelo bem espiritual dos religiosos e reli giosas há de brilhar na pastoral diocesana ou supradiocesana.

6. A comunhão eclesial com os Pastores não pode faltar também num campo tão importante como é o mundo dos leigos. A Igreja necessita do contributo formidável do leigo, cujo raio de ação é muito amplo.

A Conferência de Puebla insistiu em que o leigo "tem a responsabilidade de ordenar as realidades temporais para as colocar ao serviço da implantação do Reino de Deus" (Puebla, n. 789) e que "os leigos não podem eximir-se a um sério compromisso na promoção da justiça e do bem comum" (Puebla, n. 793). Insistindo especialmente na atividade política (cf. Puebla, n. 791), o leigo deve promover a defesa da dignidade do homem e dos seus direitos inalienáveis (Puebla, n. 792).

Nesta missão própria dos leigos, tem que se deixar a eles o lugar que lhes compete, sobretudo na militância e chefia dos partidos políticos, ou no exercício de cargos públicos (cf. Puebla, n. 791). É sólido critério, inspirado na Conferência de Medellín (Sacerdotes, n. 19) e no Sínodo dos Bispos de 1971, terdes indicado: "Os Pastores... embora devam preocupar-se com a unidade, despojar-se-ão de toda a ideologia político-partidarista... Terão assim liberdade para evangelizar a política, como Cristo, a partir do Evangelho, sem partidarismos nem ideologismos" (Puebla, n. 526). São diretrizes ricas em consequências pastorais.

7. A busca da unidade eclesial leva-nos ao coração do ecumenismo: "Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco e também tenho de as conduzir; ouvirão a Minha voz e haverá um só rebanho e um só Pastor (Jo 10, 16). Em tal perspectiva é necessário situar o diálogo ecumênico, que reveste na América Latina características especiais. A oração, a confiança e a fidelidade hão de ser o clima do ecumenismo autêntico. O diálogo entre irmãos de distintas confissões não extingue a nossa própria identidade, mas supõem-na. Bem sei que vos esmerais em criar uma atmosfera de maior aproximação e respeito, a que alguns criam obstáculos com métodos proselitistas nem sempre corretos.

8. A unidade da Igreja ao serviço da unidade dos povos.

A Igreja inscreve-se na realidade dos povos: na sua culura, na sua história e no ritmo do seu desenvolvimento. Vive, em profunda solidariedade, as dores dos seus filhos, partilhando-lhes as dificuldades e assumindo-lhes as legítimas aspirações. Em tais circunstâncias anuncia a mensagem da salvação que não conhece fronteiras nem discriminações.

A Igreja tem consciência de ser portadora da Palavra eficaz de Deus, Palavra que criou o universo e é capaz de recriar no coração do homem e na sociedade, nos seus diversos níveis, atitudes e condições em que se pode desenvolver a civilização do amor. Com esta finalidade, o documento de Puebla foi apresentado oficialmente à ONU e à Organização dos Estados Americanos.

Em virtude do anúncio do Evangelho, quando o homem é espezinhado na sua dignidade eminente, quando se mantém ou se prolonga a sua prostração, a Igreja denuncia. É parte do seu serviço profético. Denuncia tudo o que se opõe ao plano de Deus e impede a realização do homem. Denuncia para defender o homem ferido nos seus direitos, para que cicatrizem as suas feridas e se despertem atitudes de verdadeira conversão.

Servindo a causa da justiça, a Igreja não pretende provocar ou afundar divisões, exasperar conflitos ou generalizá-los. Pelo contrário, com a força do Evangelho a Igreja ajuda a ver e a respeitar em cada homem um irmão, convida para o diálogo pessoas, grupos e povos, para a justiça ser salvaguardada e a unidade preservada. Em certas circunstâncias chega mesmo a servir de medianeira. Também este é serviço profético.

Por isso, quando no exercício da própria missão sente o dever da denúncia, a Igreja ajusta-se às exigências do Evangelho e do ser humano, sem servir interesses de sistemas econômicos ou politicos nem ideologias de conflito. Ela, acima de grupos ou classes sociais, denuncia a incitação a qualquer força de violência, o terrorismo, as lutas de classes e as guerras, com todos os seus horrores.

Diante do doloroso flagelo da guerra e da corrida aos armamentos, que produzem subdesenvolvimento crescente, eleve a Igreja na América Latina e em cada um dos povos gerados para o Evangelho, o grito do venerado Papa Paulo VI: "Basta para sempre de guerras!". Dele me fiz também eu eco diante da Assembleia das Nações Unidas. Não se acumulem sobre circunstâncias penosas novos conflitos, que vêm agravar a prostração, sobretudo dos mais pobres.

A Igreja, como o demonstra a história com eloquentes exemplos, foi na América Latina o mais vigoroso fator de unidade e de encontro entre os povos. Continuai pois a prestar todo o vosso contributo, diletos Pastores, à causa da justiça, de uma bem entendida integração latino-americana, como esperança do serviço à unidade. E tratando-se de elevar algumas vezes a vossa voz critica, sobretudo em um serviço colegial ao bem comum, continuem sempre a presidir às vossas atuações a rigorosa objetividade e a oportunidade, para que, dentro do respeito devido às legítimas autoridades, a voz da Igreja interpele as consciências, tutele as pessoas, e a liberdade destas reclame os devidos corretivos.

III. O CELAM e Puebla, no rasto de Medellín

1. Nesta circunstância em que olhamos para os passados 25 anos do CELAM, a fim de projetá-los no futuro, temos de conservar a recordação de duas Conferências igualmente importantes e significativas: Medellín e Puebla.

Demos graças a Deus por aquilo que elas deram à Igreja: A primeira "quis ser impulso de renovação pastoral", e novo "espírito" perante o futuro, "em plena fidelidade eclesial na interpretação dos sinais dos tempos na América Latina" (Homilia na Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe). Por isso eu mesmo vos dizia que era necessário "tomar como ponto de partida as conclusões de Medellin, com tudo o que têm de positivo, mas sem ignorar as incorretas interpretações às vezes dadas, que exigem sereno discernimento, oportuna crítica e claras tomadas de posição" (Discurso inaugural em Puebla, 28 de janeiro de 1979).

A segunda recolheu e fez sua a herança da precedente, no novo contexto eclesial. Este presente é o que nos ocupa como Pastores. Mas, ao querer orientar o momento atual, estamos bem conscientes de que nele revive, emprestando-lhe raízes e inspirações, o passado. Neste sentido permiti-me que me refira agora de maneira, especial a alguns aspectos relacionados com a Conferência de Puebla.

Considero isto mais importante porque sei bem que no CELAM, nas suas reuniões regionais e em não poucas Conferências Episcopais, as grandes orientações da III Conferência Geral foram assumidas nos seus próprios Planos Pastorais. O mesmo se observa nas Relações quinquenais de muitas dioceses.

Muito me agradou a rápida difusão e penetração, nas comunidades da América Latina e fora dela, do Documento de Puebla. Esperava que assim viesse a suceder. Com efeito, a Conferência de Puebla, como o expressei noutras ocasiões, é em certa forma resposta que supera as fronteiras deste amado continente.

Ao Documento de Puebla, que em pormenor conheci e com gosto aprovei, depois de precisar nele alguns conceitos, a esse Documento recorri com frequência nos encontros realizados durante as vossas visitas "ad limina". Quis desta maneira sublinhar as suas densas orientações doutrinais e pastorais.

2. No princípio da Conferência, insisti na vossa nobre missão de Mestres da Verdade.

Ao aproximarmo-nos pastoralmente das nossas comunidades, haverá acaso uma forma de presença que o povo mais ame do que esta de Mestres? Poderia uma autêntica ação pastoral, ou uma genuína renovação eclesial, cimentar-se em fundamentos diferentes dos da Verdade sobre Jesus Cristo, sobre a Igreja e sobre o homem, tal como nós a professamos? A coerência diante dessas verdades imprime o selo pastoral às diretrizes e opções que a Conferência formulou. A estas verdades dispensastes grande atenção, como se manifesta nos distintos capítulos do Documento.

3. Entrastes, com efeito, em sérias questões sobre Cristologia e Eclesiologia, que tinham sido pedidas pelos Episcopados mesmos e causam preocupação também entre vós.

A fidelidade à fé da Igreja, a respeito da pessoa e da missão de Cristo, tem importância capital, com enormes repercussões pastorais. Continuai pois a exigir um compromisso coerente no anúncio do "Redemptor hominis". Resplandeça essa fidelidade na pregação, nas suas diversas formas, na catequese e na vida toda do Povo de Deus.

4. A Igreja é, para o crente, objeto de fé e de amor. Um dos sinais do verdadeiro compromisso com a Igreja está em acatar sinceramente o seu Magistério, fundamento da comunhão. Não é aceitável a contraposição, que se estabelece por vezes, entre uma Igreja "oficial", "institucional", e a Igreja-Comunhão. Não são, não podem ser, realidades separadas. O verdadeiro crente sabe que a Igreja é povo de Deus, por motivo da convocação em Cristo, e que toda a vida da Igreja está determinada por pertencer ao Senhor. É um "povo" eleito, escolhido por Deus.

5. Atenção particular merece o trabalho dos teólogos. Esse ministério é nobre serviço, que a imensa maioria presta fielmente. O labor que realiza inclui firme atitude de fé. Junto com a liberdade de investigação, a comunicação oral ou escrita das suas investigações e reflexões deve fazer-se com todo o sentido de responsabilidade, de acordo com os direitos e deveres que pertencem ao Magistério, colocado por Deus para guia na fé de todo o povo fiel.

6. A Conferência de Puebla quis ser também grande opção em favor do homem. Não se podem opor o serviço de Deus e o serviço dos homens, o direito de Deus e o direito dos homens. Servindo ao Senhor, entregando-Lhe a nossa vida ao dizer que "cremos num só Deus", que "Jesus é o Senhor" (1 Cor 12, 3; Rom 10, 9; Jo 20, 28), cortamos com tudo mais, que pretenda erigir-se em absoluto, e destruímos os ídolos do dinheiro, do poder, do sexo e aqueles que se escondem nas ideologias, "religiões laicas" com ambição totalitária.

O reconhecimento do senhorio de Deus conduz a que se descubra a realidade do homem. Reconhecendo o direito de Deus, seremos capazes de reconhecer o direito dos homens. "Do homem em toda a sua verdade, na sua plena dimensão... de cada homem, porque cada um foi incluído no mistério da Redenção e com cada um se uniu Cristo para sempre..." (Redemptor hominis, n. 13).

7. Dada a realidade de tão vastos setores assaltados pela miséria, e diante da brecha existente entre ricos e pobres — a que me referi no começo das históricas jornadas de Puebla —, com razão convidastes à opção preferencial pelos pobres; não sendo exclusiva nem exclusora (cf. Puebla, nn. 1145, 1165). Os pobres são, com efeito, os prediletos de Deus (cf. Puebla, n. 1143). No rosto dos pobres reflete-se Cristo, Servidor de javé. "A sua evangelização é por excelência sinal e prova da missão de Jesus" (cf. Puebla, n. 1142). Oportunamente indicastes que "o melhor serviço ao irmão é a evangelização, que o dispõe a realizar-se como filho de Deus, o liberta das injustiças e o promove integralmente (Puebla, n. 1145). É, pois, opção que expressa o amor de predileção da Igreja, dentro da sua universal missão evangelizadora e sem que nenhum setor fique excluído dos seus cuidados.

Entre os elementos de uma pastoral, que leve o selo de predileção pelos pobres, salientam-se: o interesse por uma pregação sólida e acessível; por uma catequese que abrace toda a mensagem cristã; por uma liturgia que respeite o sentido do sagrado e evite riscos de instrumentalização política; por uma pastoral familiar que defenda o pobre diante de campanhas injustas que ofendam a sua dignidade; pela educação, fazendo que ela chegue aos setores menos favorecidos; e pela religiosidade popular, em que se expressa a alma mesma dos povos.

Um aspecto da evangelização dos pobres está em dar vigor a uma ativa preocupação social. A Igreja sempre teve esta sensibilidade e hoje fortalece-se tal consciência: "o nosso comportamento social é parte integrante do nosso seguimento de Cristo" (Puebla, n. 476). A este propósito, respeitando as diretrizes que vos dei ao iniciar a Conferência de Puebla, insististes, amados Irmãos, na vigência e necessidade, da Doutrina Social da Igreja, cujo "objeto primário é a dignidade pessoal do homem, imagem de Deus:, e a tutela dos seus direitos inalienáveis" (Puebla, n. 475).

Uma faceta concreta da evangelização, que há de orientar-se sobretudo para aqueles que possuem meios econômicos — a fim de colaborarem com os mais necessitados — é a reta concepção da propriedade privada, sobre a qual "pesa uma hipoteca social" (Discurso inaugural em Puebla, III, n. 4). Tanto a nível internacional como no interior de cada país, aqueles que possuem os bens devem estar muito atentos às necessidades dos seus irmãos. E problema de justiça e de humanidade. Também de visão do futuro, se é que se quer preservar a paz das nações.

Manifesto, por isso, a minha complacência pela mensagem enviada de Puebla aos povos da América Latina e confio ainda que o "Serviço operativo dos direitos humanos", do CELAM, se faça eco da voz da Igreja onde quer que o reclamem situações de injustiça ou de violação dos legítimos direitos do homem.

8. Tema importante na Conferência de Puebla foi o da libertação. Tinha-vos exortado a considerar o que tem de específico e original a presença da Igreja na libertação (Discurso inaugural em Puebla, III, n. 1). Fiz-vos notar como a Igreja "não necessita de recorrer a sistemas e ideologias para amar, defender e colaborar na libertação do homem" (III, n. 2). Na variedade das explicitações e correntes de libertação, é indispensável distinguir entre o que implica "urna reta concepção cristã da libertação" (ib.), aplicando lealmente os critérios que a Igreja oferece, e outras formas de libertação distantes e mesmo inconciliáveis com o compromisso cristão.

Dedicastes oportunas considerações aos sinais para discernir o que é uma verdadeira libertação cristã, com todo o seu valor, urgência e riqueza, e aquilo, que toma os caminhos das ideologias. Os conteúdos e as atitudes (cf. Puebla, n. 489), os meios que utilizam e ajudam para tal discernimento. A libertação cristã usa "meios evángélicos, com a sua peculiar eficácia, e não recorre a nenhuma classe de violência nem à dialética da luta de classes..." (Puebla, n. 486) ou à "práxis" ou à análise marxista, pelo "risco de ideologização a que se expõe a reflexão teológica, quando se realiza partindo de uma "práxis" que recorre à análise marxista. As suas consequências são a total politização da existência cristã, a dissolução da linguagem da fé na das ciências sociais e o esvaziamento da dimensão transcendental da salvação cristã" (Puebla, n. 545).

9. Um dos contributos pastorais de maior originalidade prestados pela Igreja Latino-Americana, como foi apresentado no Sínodo dos Bispos de 1974 e retomado na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, foi a Comunidade eclesial de Base.

Oxalá estas comunidades continuem a mostrar a sua vitalidade e a dar os seus frutos (cf. Puebla, nn. 97, 156), evitando ao mesmo tempo os riscos que podem encontrar, aos quais aludia a Conferência de Puebla: "É lamentável que, nalguns lugares, interesses claramente políticos pretendam manipulá-las e apartá-las da autêntica comunhão com os Bispos" (Puebla, n. 98). Diante do fato da radicalização ideológica, que nalguns casos se registra (cf. Puebla, n. 630), e pelo harmonioso desenvolvimento destas comunidades, convido-vos a assumir o compromisso que segue: "Como Pastores queremos decididamente promover, orientar e acompanhar as Comunidades eclesiais de Base, segundo o espírito de Medellín e os critérios da Evangelii Nuntiandi" (Puebla, n. 648).

10. A Conferência de Puebla quis dar impulso a "uma opção mais decidida por uma pastoral de conjunto" (cf. Puebla, n. 650), necessária para a eficácia da evangelização e para a promoção da unidade das Igrejas particulares (Puebla, n. 703). Articulem-se, portanto, nela os distintos aspectos da pastoral, com dinâmica unidade de critérios teológicos e pastorais. Muito pode fazer o CELAM a este respeito.

11. Nesta perspectiva de uma adequada pastoral de conjunto, permiti-me que insista convosco nas prioridades pastorais que indiquei em Puebla e vós com tão marcado interesse assumistes. Conservam toda a sua vigência e urgência. Refiro-me à pastoral familiar, juvenil e vocacional.

Fazer que a família, na América Latina, ligada pelo sacramento do matrimônio, seja verdadeira Igreja doméstica, é tarefa urgente. A civilização do amor deve construir-se sobre a base insubstituível do lar. Esperamos do próximo Sínodo forte estímulo para esta prioridade.

A juventude, verifico-o amiúde nos meus contatos ministeriais e nas minhas viagens apostólicas, está disposta a responder. Não se esgotou a sua generosa capacidade de entrega a ideais nobres, ainda que exijam sacrifício. Ela é a esperança do mundo, da Igreja e da América Latina. Saibamos pois transmitir-lhe, sem recortes nem falsos pudores, os grandes valores do Evangelho, do exemplo de Cristo. São causas que o jovem compreende como dignas de serem vividas, como modo de resposta a Deus e ao homem irmão.

A pastoral vocacional há de merecer especialíssima atenção, como indiquei repetidamente aos Bispos latino-americanos durante a visita "Ad limina" que fizeram. As vocações ao sacerdócio hão de ser o sinal da maturidade das comunidades; e hão de manifestar-se também como consequência do florescimento dos ministérios confiados aos leigos e de uma oportuna pastoral escolar e familiar, que prepare para se escutar a voz de Deus.

Ponha-se por isso toda a diligência na sólida formação espiritual, acadêmica e pastoral nos Seminários. Só com este fundamento poderemos ter fundada garantia para o futuro. Necessitamos de sacerdotes plenamente dedicados ao ministério, entusiastas pela sua entrega total ao Senhor no celibato, convencidos da grandeza do mistério de que são portadores.

E oxalá possais um dia incrementar o envio de missionários que ajudem em zonas desprovidas, nas vossas próprias nações e noutros continentes.

IV. Conclusão

Quero agora concluir estas reflexões fazendo uma urgente chamada à esperança. Certamente não é pouco o caminho que falta percorrer na construção do reino de Deus neste continente. Muitos são os obstáculos que se interpõem. Mas não há razão para a falta de esperança. Conforme o prometeu, Cristo está convosco até o fim dos tempos — com a sua graça, a sua ajuda e o seu poder infinito. A Igreja, pela qual lutamos e sofremos, é a Sua Igreja, em que o Espírito Santo continua a viver e a derramar as maravilhas do Seu amor. Na fidelidade às suas inspirações, sigamos para a frente com renovado entusiasmo, na tarefa de evangelizar todos os povos.

Este convite à esperança torno-o extensivo, feito cordial gratidão por tantos desvelos consagrados à Igreja, a todos os Bispos da América Latina, a todos os que trabalham no CELAM, aos sacerdotes, aos membros dos distintos Institutos de vida consagrada e do laicado, que em formas tão diversas manifestam de modo admirável, com frequência oculto, a magnífica variedade do amor ao Senhor e ao homem.

Associo, neste sentimento de merecida gratidão, todos aqueles organismos da Europa e da América do Norte, que tão valiosamente colaboram, com pessoal apostólico e meios econômicos, para a vida de numerosas Igrejas particulares. O Senhor os recompense abundantemente por esta solicitude eclesial.

A Virgem Santíssima, Nossa Senhora de Guadalupe, a cujos pés depositastes com imensa confiança o Documento de Puebla, vos acompanhe no caminho, vos alivie maternalmente na fadiga, vos sustente na esperança, vos guie para Cristo, o Salvador, o prémio imperecedouro.

Com a Bênção e afeto do Sucessor de Pedro, com dilatado amor à Igreja, levai Cristo a todas as gentes. Assim seja."

Discurso do Papa João Paolo II no encontro com o Clero da Igreja Local
Catedral do Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Amados irmãos e irmãs em Cristo,
Neste meu peregrinar pelo Brasil, já tive a alegria de ver muito do vosso belo País, da bondade, nobres sentimentos e espírito de fé da sua gente. E aqui estou vendo a mesma coisa. Deus seja louvado!

Agradeço ao meu querido Irmão o Senhor Cardeal Dom Eugênio de Araújo Sales e, por ele, a todos, esta boa acolhida, que me é dispensada agora e que tenho tido aqui na Arquidiocese do Rio de Janeiro: da comissão de preparativos às entidades e pessoas todas que intervieram.

Com o Senhor Cardeal Arcebispo, quero saudar os seus Bispos auxiliares e todos os Sacerdotes diocesanos e religiosos, que compõem o locai Presbitério, e de modo particular e íntimo compartilham com o Pastor diocesano as responsabilidades de mensageiros e distribuidores dos bens da salvação. Olhai: como “sal da terra” e “luz do mundo” vós procurais edificar aqui a Igreja, com bem elaborados Planos de Pastoral. Sede sempre presença visível do sagrado nesta grande metrópole, vivendo e agindo cada um de vós como na verdade é: um “alter Christus” que passa fazendo o bem.

Igualmente saúdo as Religiosas aqui presentes e representadas. Sei que estais bem organizadas, aqui no Rio, e conheço o vosso apoio ao trabalho pastoral, para além do sempre essencial apodo da vossa vide de oração: Vivei a vossa consagração com generoso empenho, adesão e disponibilidade ao Senhor; vivei-a em Igreja e ao serviço da missão da Igreja. Fortes na fé, sede alegres na esperança!

E a todos os fiéis diocesanos – dos assessores do Senhor Cardeal Arcebispo, aos funcionários da Diocese e aos que se dedicam a atividades de caridade e assistência, passando pelos seminaristas, pais e mães de família, jovens e crianças, até “aos mais pequeninos”, os que sofrem no corpo ou na alma – a todos, enfim, sem querer esquecer ninguém, chegue a minha cordial saudação e a certeza da minha estima em Cristo.

A todos deixo esta lembrança do encontro com o Papa: “Tudo o que fizerdes, fazei-o de todo o coração, como quem o fez pelo Senhor”. E, em todas as coisas e sempre, “servi ao Senhor Jesus Cristo” (Col. 3, 23-24).

Com a minha Bênção Apostólica!"

Discurso do JPII à Estátua do Cristo Redentor no Morro do Corcovado
Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
1. Cristo! De que outro lugar, no Brasil e fora dele, fazer ecoar este Nome – o único que nos pode salvar (cf. At 4,12) – e que tem um particular direito de cidadania na história do homem e da humanidade (Redemptor Hominis, n. 10) melhor do que do alto deste imenso penhasco feito altar, entre maravilhas naturais, criadas por Ele, o Verbo de Deus (cf. Jo 1,3), bem no coração do Rio de Janeiro. Aqui a estátua que há precisamente 50 anos todo um Povo quis erguer no cimo do pedestal natural se fez a um tempo símbolo, apelo e convite.

Redentor! Os braços abertos, abraçam a cidade aos seus pés! Feita de luz e cor e, ao mesmo tempo, de sombras e escuridão, a cidade é vide e alegria mas é também uma teia de aflições e sofrimentos, de violência e desamor, de ódio, de mal e de pecado. Radiosa á luz do sol, silhueta luminosa suspensa no ar à noite, o Redentor, em pregação muda mas eloquente, aqui continua a proclamar que “Deus é luz”(1Jo 1,7), “é amor” (1Jo 1,7). Um amor maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que a “caducidade do que foi criado” (cf. Rm 8, 20), mais forte do que a morte (Redemptor Hominis, n. 9).

2. Sim, no cume destes montes não há quem não possa contemplar a sua imagem, em atitude de acolher e abraçar, e imaginá-lo como é, sempre disposto ao encontro com o homem, desejoso de que o homem venha ao seu encontro. Ora, esta é a única finalidade que a Igreja – e com ela o Papa neste momento – tem diante dos olhos e no coração: que cada homem possa encontrar Cristo, a fim de que Cristo possa percorrer com cada homem os caminhos da vida (Redemptor Hominis, n. 13).

Símbolo do amor, apelo à reconciliação e convite à fraternidade, Cristo Redentor aqui proclama continuamente a força da verdade sobre o homem e sobre o mundo, da verdade contida no mistério da sua Encarnação e Redenção (cf. Ibid, n. 13).

Nesta hora, iluminados pelo olhar de Cristo, os olhos do Papa se dirigem a cada habitante desta metrópole e a voz do Papa, simples eco e ressonância da voz de Cristo, quereria falar, de coração a coração, com todos e cada um: quereria, como uma breve visita, chegar a cada lar e também junto àqueles que não o possuem; aos locais de encontro e aos locais de trabalho, aonde há alegria mas também aonde há dor, especialmente aonde se sofre e pena: hospitais, penitenciárias, ruas dos sem-teto, sem-pão e sem-amor...

3. Com esta breve visita, o Papa com Cristo, gostaria de confortar, infundir esperança e animar a todos, sem esquecer ninguém: crianças, jovens, pais e mães de família, anciãos, doentes, detentos, desalentados e angustiados. Para todos desejaria ser portador de confiança, de amor e de paz. É esse o sentido e a intenção da bênção sobre a cidade e sobre todos os seus habitantes, que darei a seguir, em nome de Cristo Redentor, Redentor do homem na plenitude da verdade.

Antes, porém, para confirmar uma amizade, melhor, para afirmar uma fraternidade – porque Deus cuida paternalmente de todos e quer que os homens constituam todos uma só família inumana – convidaria a rezarmos juntos a oração que Cristo Redentor nos ensinou. Dirijo este convite a todos, onde quer que estejam: na rua, no lar, no automóvel, no local de trabalho ou de encontro, no hospital, no presídio... A toda a cidade convido a rezar comigo:

Pai nosso, que estais no céu, / santificado seja o vosso nome; / venha a nos o vosso reino; / seja feita a vossa vontade / assim na terra como no céu. / O pão nosso de cada dia nos dai hoje; / perdoai-nos as nossas ofensas, / assim como nós perdoamos / a quem nos tem ofendido; / e não nos deixeis cair em tentação; / mas livrai-nos do mal. / Amém!

E que este momento de encontro e de encantamento perdure em nossos corações e em nossa memória, e se torne para todos fonte de paz e de graça: ricos e pobres, fracos e poderosos e, de modo especial para os “mais pequeninos”, que sofrem no corpo ou na alma. Com o valioso auxílio da Mãe de nossa confiança, Nossa Senhora Aparecida."

Homilia do Papa São JPII na Santa Missa com Ordenações Sacerdotais
Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Veneráveis irmãos e caríssimos filhos
1. É solene esta demora. O Senhor está presente aqui, no meio de nós. Para dar-nos a certeza disto, bastaria a sua promessa: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles”(Mt 18,20). É em nome d’Ele que estamos reunidos para a Ordenação Presbiteral destes jovens que estão aqui, diante do altar. Sobre eles, escolhidos da maravilhosa e generosa terra do Brasil com afeto de predileção, Jesus fará descer, daqui a pouco, o Espírito do Pai e Seu. E o Espírito Santo, marcando-os com o seu sinete através da imposição das mãos do Bispo, enriquecendo-os de graças e poderes particulares, realizará neles uma misteriosa e real configuração a Cristo, Cabeça e Pastor da Igreja, e fará deles seus ministros para sempre.

É bom, nesta altura do solene rito, deter-nos e meditar. O Evangelho que ouvimos e a cerimónia litúrgica que precedeu a sua leitura são argumentos capazes de fixar a nossa mente nume contemplação sem fim. É natural que, neste momento de intensa alegria, eu me dirija de modo particular a vós, caríssimos ordenandos, que sois o motivo desta celebração. E o faço com as palavras do Apóstolo Paulo: “Os nostrum patet ad vos... cor nostrum dilatatum est”. “Os nossos lábios se abrem para vós... o nosso coração se alarga”(2Cor 6, 11). O meu ardente desejo é ajudar-vos a compreender a grandeza e o significado do passo que estais para dar. Esta hora solene terá sem dúvida um reflexo sobre todas as que virão depois no decurso da vossa existência. Devereis voltar muitas vezes à recordação desta hora para tomar impulso para continuar, com renovado ardor e generosidade, o serviço que hoje fostes chamados a exercer na Igreja.

2. “Quem sou eu? Que se requer de mim? Qual é a minha identidade?”. É esta a pergunta ansiosa que mais frequentemente se põe hoje o sacerdote, certamente não a salvo dos contra choques da crise de transformação que abala o mundo.

Vós, caríssimos filhos, não sentis certamente a necessidade de fazer-vos estas perguntas. A luz que hoje vos invade vos dá uma certeza quase sensível daquilo que sois, daquilo a que fostes chamados. Mas pode acontecer que encontreis, amanhã, irmãos no sacerdócio, que, em meio à incerteza, se interrogam sobre a própria identidade. Pode acontecer que, adormecido e distante o primeiro fervor, chegueis também vós, um dia, a vos interrogar. Por isso, eu gostaria de propor-vos algumas reflexões sobre a verdadeira fisionomia do sacerdote, que servissem de poderoso auxílio para a vossa fidelidade sacerdotal.

Não é decerto nas ciências do comportamento inumano, nem nas estatísticas sócio-religiosas que procuraremos a nossa resposta, mas sim, em Cristo, na Fé. Interrogaremos humildemente o Divino Mestre e perguntaremos a Ele quem somos nós, como Ele quer que sejamos, qual é, diante d’Ele, a nossa verdadeira identidade.

3. Uma primeira resposta nos é dada imediatamente: somos chamados. A história do nosso sacerdócio começa por um chamamento divino, como aconteceu com os Apóstolos. Na escolha deles, é manifesta a intenção de Jesus. É Ele quem toma a iniciativa. Ele mesmo o fará notar: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi”(Jo 15, 16). As cenas simples e enternecedoras que nos apresentam o chamado de cada discípulo revelam a atuação precisa de escolhas determinadas (cf. Lc 6, 13) , sobre as quais é útil meditar.

Quem escolhe Ele? Não parece que Ele considere a classe social dos seus eleitos (cf. Mt 8, 19-22), nem que conte com entusiasmos superficiais. Uma coisa é certa: somos chamados por Cristo, por Deus. O que quer dizer, somos amados por Cristo, amados por Deus. Pensamos nisto bastante? Na realidade, a vocação ao sacerdócio é um sinal de predileção da parte d’Aquele que, escolhendo-vos entre tantos irmãos, vos chamou a participar, de um modo todo especial, da sua amizade: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que fez o seu senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”(Jo 15, 15).O nosso chamamento ao Sacerdócio, assinalando o momento mais alto no uso da nossa liberdade, provocou a grande e irrevogável opção da nossa vide e, portento, a página mais bela na história da nossa experiência inumana. Nossa felicidade consiste em não depreciá-la jamais!

4. Com o rito da Sagrada Ordenação sereis introduzidos, filhos caríssimos, em um novo género de vide, que vos separa de tudo e vos une a Cristo com um vínculo original, inefável, irreversível. Assim, a vossa identidade se enriquece com uma outra nota: sois consagrados.

Esta missão do Sacerdócio não é um simples título jurídico. Não consiste apenas num serviço eclesial prestado à comunidade, delegado por ela, e por isso revogável pela mesma comunidade ou renunciável por livre escolha do “funcionário”. Trata-se, ao contrário, de uma real e íntima transformação por que passou o vosso organismo sobrenatural por obra de um “sinete” divino, o “caráter”, que vos inabilita a agir “in persona Christi” (nas vezes de Cristo), e por isso vos qualifica em relação a Ele como instrumentos vivos da sua ação.

Compreendeis agora como o sacerdote se torna um “segregatus in Evangelium Dei” (escolhido para anunciar o Evangelho de Deus) (cf. Rm 1,1), não pertence mais ao mundo, mas se acha doravante num estado de exclusiva propriedade do Senhor. O caráter sagrado o atinge em tal profundidade que orienta integralmente todo o seu ser e o seu agir para uma destinação sacerdotal. De modo que não resta nele mais nada de que possa dispor como se não fosse sacerdote, ou, menos ainda, como se estivesse em contraste com tal dignidade. Ainda quando realiza ações que, por sua natureza são de ordem temporal, o sacerdote é sempre o ministro de Deus. Nele, tudo, mesmo o profano, deve tornar-se “sacerdotalizado”, como em Jesus, que sempre foi sacerdote, sempre agiu como sacerdote, em todas as manifestações de sua vide.

Jesus nos identifica de tal modo consigo no exercício dos poderes que nos conferiu, que a nossa personalidade como que desaparece diante da sua, já que é Ele quem age por meio de nós. “Pelo Sacramento da Ordem disse alguém com justeza, o sacerdote se torna efetivamente idôneo a emprestar a Jesus nosso Senhor a voz, as mãos e todo o seu ser. É Jesus quem, na Santa Missa, com as palavras da consagração, muda a substância do pão e do vinho na do seu corpo e do seu sangue” (cf. I. Escrivà de Balaguer, Sacerdote per l’eternità, Milano 1975, p. 30). E podemos continuar. É o próprio Jesus quem, no Sacramento da Penitência, pronuncia a palavra autorizada e paterna: “Os teus pecados te são perdoados”(Mt 9,2; Lc 5,20; 7,48; cf. Jo 20,23). É Ele quem fala quando o sacerdote, exercendo o seu ministério em nome e no espírito da Igreja, enuncia a palavra de Deus. É o próprio Cristo quem tem cuidado dos enfermos, das crianças e dos pecadores, quando os envolve o amor e a solicitude pastoral dos ministros sagrados.

Como vedes, encontramo-nos aqui nas culminâncias do sacerdócio de Cristo, do qual nós somos partícipes, e que fazia o autor da Carta aos Hebreus exclamar: “... grandis sermo et ininterpretabilis ad dicendum” (teríamos muitas coisas a dizer sobre isso, e coisas difíceis de explicar) (Hb 5, 11).

A expressão “Sacerdos alter Christus” (o Sacerdote é um outro Cristo), criada pela intuição do povo cristão, não é um simples modo de dizer, uma metáfora, mas sim, uma maravilhosa, surpreendente e consoladora realidade.

5. Este dom do Sacerdócio, lembrai-vos sempre disto, é um prodígio que foi realizado em vós mas não para vós. Ele o foi para a Igreja, o que quer dizer, para o mundo a ser salvo. A dimensão sagrada do sacerdócio é totalmente ordenada à dimensão apostólica, isto é, à missão, ao ministério pastoral. “Como o Pai me enviou, assim Eu vos envio”(Jo 20,21).

O sacerdote é, portanto, um enviado. Eis uma nova conotação essencial da identidade sacerdotal.

O sacerdote é o homem da comunidade, ligado de forma total e irrevogável ao seu serviço, como o Concílio o ilustrou claramente (cf. Presbyterorum Ordinis, 12). Sob este aspecto, vós sois destinados ao cumprimento de uma dupla função, que bastaria, ela só, para uma infindável meditação sobre o Sacerdócio. Revestindo a pessoa de Cristo, exercitareis de alguma forma a sua função de mediador. Sereis intérpretes da palavra de Deus, dispensadores dos mistérios divinos junto ao povo (cf. 1Cor 4,1; 2Cor 6, 4). E sereis, junto de Deus, os representantes do povo em todos os seus componentes: as crianças, os jovens, as famílias, os trabalhadores, os pobres, os pequenos, os doentes, e até mesmo os distantes e os adversários. Sereis os portadores das suas ofertas. Sereis a sua voz orante e suplicante, exultante e gemente. Sereis a sua expiação(cf. 2Cor 5, 21).

Levemos por isso gravada na memória e no coração a palavra do Apóstolo: “Pro Christo legatione fungimur, tamquam Deo exhortante per nos” (Somos embaixadores de Cristo, como se Deus exortasse por meio de nós) (2Cor 5, 20), para fazer de nossa vide uma íntima, progressiva e firme imitação de Cristo Redentor.

6. Queridos filhos, com esta rápida exposição procurei ilustrar-vos os traços fundamentais do perfil do sacerdote.

Desejo agora tirar algumas consequências práticas que vos ajudarão no cumprimento da vossa atividade sacerdotal, dentro ou fora da sociedade eclesial.

Antes de tudo, no mundo eclesial. Sabeis que a doutrina do sacerdócio comum dos fiéis, tão amplamente desenvolvida pelo Concílio, ofereceu ao laicato a ocasião providencial de descobrir sempre mais a vocação de todo o batizado ao apostolado e o seu necessário compromisso, ativo e consciente, com a tarefa da Igreja. Dela resultou uma vasta e consoladora florescência de iniciativas e de obras que constituem uma inestimável contribuição para o anúncio da mensagem cristã, seja em terras de missão, seja em países, como o vosso, onde se sente mais agudamente a necessidade de suprir, com o auxílio dos leigos, a presença do sacerdote.

Isto é consolador, e devemos ser os primeiros a nos alegrar com esta colaboração do laicado e a encorajá-la.

Nada disso, entretanto, urge dizê-lo, diminui de forma alguma a importância e a necessidade do ministério sacerdotal, nem pode justificar um menor empenho pelas vocações eclesiásticas. Menos ainda, pode justificar a tentativa de transferir para a assembléia ou comunidade o poder que Cristo conferiu exclusivamente aos ministros sagrados. O papel do sacerdote permanece insubstituível. Devemos, sim, solicitar de todos os modos a colaboração dos leigos. Mas, na economia da redenção, existem tarefas e funções - como o oferecimento do Sacrifício Eucarístico, o perdão dos pecados, o ofício do magistério - que Cristo quis ligar essencialmente ao sacerdócio, e nas quais ninguém, sem ter recebido a ordem sagrada, nos poderá substituir. Sem o ministério sacerdotal, a vitalidade religiosa corre o risco de se cortar de suas fontes, a comunidade cristã de desagregar-se e a Igreja de secularizar-se.

É verdade que a graça de Deus pode agir de igual modo, especialmente onde existe a impossibilidade de ter o ministro de Deus, e onde não há culpa no fato de não o ter. É necessário porém não esquecer que o caminho normal e seguro dos bens da redenção passa através dos meios instituídos por Cristo e nas formas estabelecidas por Ele.

Daqui se compreende também o quanto deva ser caro ao coração de cada um de nós o problema das vocações. A este campo exortamo-vos a consagrar as primeiras e mais desveladas preocupações do vosso ministério. É um problema da Igreja (cf. Optatam Totius, 2). É um problema importante entre todos. Dele depende a certeza do futuro religioso da vossa pátria. Poderão talvez desanimar-vos as dificuldades reais em fazer chegar ao mundo jovem o convite da Igreja. Mas tende confiança! Também a juventude do nosso tempo sente poderosamente a atração para as alturas, para as coisas árduas, para os grandes ideais. Não vos iludais que a perspectiva de um Sacerdócio menos austero nas suas exigências de sacrifício e de renúncia - como, por exemplo, na disciplina do celibato eclesiástico - possa aumentar o número daqueles que pretendem comprometer-se no seguimento de Cristo. Pelo contrário. É antes uma mentalidade de Fé vigorosa e consciente que falsa e se fez necessário criar em nossas comunidades. Ali onde o sacrifício cotidiano mantém desperto o ideai evangélico e eleva a alto nível o amor de Deus, as vocações continuam a ser numerosas. Confirma-o a situação religiosa do mundo. Os países onde a Igreja é perseguida são, paradoxalmente, aqueles em que as vocações florescem mais, algumas vezes até em abundância.

7. É necessário, além disso, que tomeis consciência, amados sacerdotes, de que o vosso ministério se desenvolve hoje no ambiente de uma sociedade secularizada, cuja característica é o eclipse progressivo do sagrado e a eliminação sistemática dos valores religiosos. Sois chamados a realizar nela a salvação como sinais e instrumentos do mundo invisível.

Prudentes, mas confiantes, vivereis entre os homens para partilhar suas angústias e esperanças, para confortar-lhes os esforços de libertação e de justiça. Não vos deixeis, porém, possuir pelo mundo, nem pelo seu príncipe, o maligno (cf. Jo 17,14-15). Não vos ajusteis às opiniões e aos gostos deste mundo, como exorta São Paulo: “Nolite conformari huic saeculo”(Rm 12,1-2). Inseri, antes, a vossa personalidade, com as suas aspirações, na linha da vontade de Deus.

A força do sinal não está no conformismo, mas na distinção. A luz é diversa das trevas para poder iluminar o caminho de quem anca no escuro. O sal é diverso da comida para dar-lhe o sabor. O fogo, é diverso do gelo para aquecer os membros enrijecidos pelo frio. Cristo nos chama luz e sal da terra. Num mundo dissipado e confuso como o nosso, a força do sinal está exatamente em ser diferente. Ele deve destacar-se tanto mais quanto a ação apostólica exige maior inserção na massa inumana.

A este propósito, quem não percebe que uma certa absorção da mentalidade do mundo, a frequentação de ambientes dissipantes, como também o abandono do modo externo de apresentar-se, distintivo dos Sacerdotes, podem diminuir a sensibilidade do próprio valor de sinal?

Quando se perdem de vista estes horizontes luminosos, a figura do padre se obscurece, sua identidade entra em crise, seus deveres peculiares não se justificam mais e se contradizem, se enfraquece a sua razão de ser.

Nem esta fundamental razão de ser se recupera fazendo-se o sacerdote “um homem-para-os-outros”. Acaso não o deve ser quem quer que deseje seguir o Divino Mestre?

“Homem-para-os-outros” o sacerdote o é, decerto, mas em virtude da sua peculiar maneira de ser “homem-para-Deus”. O serviço de Deus é o alicerce sobre o qual construir o genuíno serviço dos homens, aquele que consiste em libertar as almas da escravidão do pecado e em reconduzir o homem ao necessário serviço de Deus. Deus, com efeito, quer fazer da humanidade um povo que O adore “em espírito e verdade”(Jo 4,23).

Fique assim bem clero que o serviço sacerdotal, se quer permanecer fiel a si mesmo, é um serviço excelente e essencialmente espiritual. Que isto seja hoje acentuado contra as multiformes tendências a secularizar o serviço do padre, reduzindo-o a uma função meramente filantrópica. O seu serviço não é o do médico, do assistente social, do político ou do sindicalista. Em certos caves, talvez, o padre poderá prestar, embora de maneira supletiva, estes serviços e, no passado, os prestou de forma egrégia. Mas hoje eles são realizados adequadamente por outros membros da sociedade, enquanto que o nosso serviço se especifica sempre mais claramente como um serviço espiritual. É na área das almas, das suas relações com Deus, e de seu relacionamento interior com os seus semelhantes que o sacerdote tem uma função essencial a desempenhar. É aqui que se deve realizar a sua assistência aos homens do nosso tempo. Certamente, sempre que as circunstâncias o exijam, ele não se eximirá de prestar também uma assistência material, mediante as obras de caridade e a defesa da justiça. Mas, como tenho dito, isto é, em definitivo, um serviço secundário, que não deve jamais fazer perder de vista o serviço principal, que é o de ajudar as almas a descobrir o Pai, a abrir-se para Ele e amá-l’O sobre todas as coisas.

Somente assim é que o sacerdote jamais poderá sentir-se um inútil, um falido, ainda quando fosse constrangido a renunciar a qualquer atividade exterior. O Santo Sacrifício da Missa, a oração, a penitência, o melhor, antes, o essencial do seu sacerdócio permaneceria íntegro, como o foi para Jesus nos 30 anos de sua vide oculta. A Deus seria dada ainda uma glória imensa. A Igreja e o mundo não ficariam privados de um autêntico serviço espiritual.

8. Queridos ordenandos, caros sacerdotes, a esta altura, o meu sermão se transforma em oração, nume oração que desejo confiar à intercessão de Maria Santíssima, Mãe da Igreja e Rainha dos Apóstolos. Na trépida espera do sacerdócio, vos colocastes certamente perto d’Ela, como os Apóstolos no Cenáculo. Que Ela vos obtenha as graças de que mais necessitais para a vossa santificação e para a prosperidade religiosa do vosso país. Que Ela vos obtenha sobretudo o amor, o seu amor, aquele que lhe deu a graça de gerar Cristo, para serdes capazes de cumprir a missão de gerar Cristo nas almas. Que Ela vos ensine a ser puros, como Ela o foi, vos torne fiéis ao chamamento divino, vos faça compreender toda a beleza, a alegria e a força de um ministério vivido sem reservas na dedicação e na imolação pelo serviço de Deus e das almas. Pedimos finalmente a Maria, para vós e para todos nós aqui presentes, que nos ajude a dizer, a seu exemplo, a grande palavra: SIM à vontade de Deus, mesmo quando exigente, mesmo quando incompreensível, mesmo quando dolorosa para nós.

Assim seja!"

Homilia do Papa JPII na Santa Missa em homenagem ao Bem-Aventurado Padre Jose de Anchieta
São Paulo, 3 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"1. Estou realmente feliz por estar hoje convosco, nesta querida cidade de São Paulo, cuja Câmara Municipal, delicadamente, quis oferecer-me o título de “Cidadão Paulista”, motivando este gesto o fato de ter recentemente, como Sumo Pontífice, decretado a beatificação do Padre José de Anchieta, da Companhia de Jesus, considerado - e com razão - um dos fundadores da vossa cidade.

Esta manifestação de cordialidade me comove e me leva a exprimir o meu vivo e sincero agradecimento.

E agora, desejo refletir convosco sobre a fascinante figura do Bem-aventurado Anchieta, tão ligado à história religiosa e civil deste querido Brasil.

O Bem-aventurado Anchieta chegou aqui, a esta parte de vossa grande Nação, o Brasil, em 1554. A cidade ainda não existia; havia apenas alguns aglomerados de aborígenes. Chegou aos 24 de janeiro, vigília da festa da Conversão de São Paulo. A primeira Missa aqui celebrada, portento, foi exatamente em honra do Apóstolo dos Gentios, e a ele foi dedicada a vila que devia surgir ao redor da pequena choupana - a “Igrejinha” - que seria o seu coração. Daí o nome desta vossa cidade de São Paulo, hoje sem dúvida a maior cidade do Brasil.

Natural das Ilhas Canárias, educado em Portugal, José de Anchieta provinha daquelas nações que, naquela época, tanto contribuíram para a descoberta do mundo: da Espanha e de Portugal partiam navegadores e pioneiros, sulcando os mares, chegando a terras até então desconhecidas. Na sua trilha seguiam conquistadores, colonos, comerciantes, exploradores.

Terá vinco o Padre Anchieta como um soldado em busca de glória, um conquistador em busca de terras, ou um comerciante em busca de bons negócios e dinheiro? Não! Veio como missionário, para anunciar Jesus Cristo, para difundir o Evangelho. Veio com o único objetivo de conduzir os homens a Cristo, transmitindo-lhes a vida de filhos de Deus, destinados à vida eterna. Veio sem exigir nada para si; pelo contrário, disposto a der a sua vida por eles.

Pois bem, também eu venho a vós, impelido pelo mesmo motivo, impulsionado por igual amor: venho a vós como humilde mensageiro de Cristo.

Esta tem sido sempre a única motivação das viagens que me conduziram aos vários Continentes: são viagens apostólicas daquele que, por ser o Servo de Cristo, quer confirmar os irmãos na fé.

É este o motivo, também hoje, porque me encontro no meio de vós. Ele me une, intimamente, a vosso amado Beato José de Anchieta.

Acolhei-me, assim como acolhestes Anchieta: que minha passagem no meio de vós tenha algo daquilo que foi a passagem e é a permanência do grande Apóstolo no meio de vossa gente, nas vossas aldeias de então, no vosso grande País. Seja essa a passagem da graça do Senhor.

2. Jovem, cheio de vida, inteligente, alegre por natureza, de coração aberto e amado por todos, brilhante nos estudos da Universidade de Coimbra, José de Anchieta soube granjear a simpatia de seus colegas, que gostavam de ouvi-lo recitar. Por causa do seu timbre de voz, chamavam-no “canarinho”, lembrado assim o canto dos pássaros de sua ilha natal, Tenerife, nas Canárias.

Diante dele abriam-se tantas estradas ao sucesso. Mas, jovem de fé, estava atento às inspirações e moções de Deus que o atraía por outros caminhos, chamava-o e orientava-o por uma vereda bem diferente daquela que outros, talvez, haviam imaginado para ele. Num estado de alma de escuridão espiritual, o jovem buscava o silencio, a solidão, para orar. Muitas vezes, deixando de lado os livros, passeava sozinho, às margens do rio Mondego.

Foi em uma destas caminhadas que José entrou na catedral de Coimbra e, diante do altar da Virgem Maria, sentiu inesperadamente a paz e a serenidade tão desejadas. Resolveu, então, dedicar sua vida ao serviço de Deus e dos homens. E, para viver este ideai, fez ali, na mesma hora, o voto de castidade, consagrando-se à Virgem: tinha então 17 anos.

A partir de então, intensificou sua oração, prosseguiu seus estudos com ardor. Embora jovem, demonstrava um grande senso de maturidade diante do valor da vida. O dom de si, feito à Mãe de Deus, começou a concretizar-se como um chamado à vida religiosa.

Por aquela época, liam-se na Universidade de Coimbra as cartas que Francisco Xavier - o grande missionário - escrevia do Oriente, e que traziam também insistentes apelos aos jovens estudantes das Universidades européias. Profundamente impressionado com o que Francisco Xavier dizia, acerca das carências de tantos povos e países e desejando seguir um exemplo tão eloquente de dedicação à glória de Deus e ao bem dos homens, José de Anchieta resolveu entrar para a Companhia de Jesus: queria ser missionário!

E assim, poucos anos depois, veio ao Brasil.

Neste instante, quero dirigir-me a vós, jovens de São Paulo, jovens de todo o Brasil, da grande Nação que pode ser chamada “jovem”, já que sua população conta com tão elevado índice de moços: olhai para o vosso Anchieta!

Era jovem como vós, mas aberto a Deus e aos seus apelos. Era cheio de vida como vós, mas na oração buscava a resposta à vida. E neste contacto com o Deus vivo encontrou o caminho que conduz à vida verdadeira, a uma vida de amor a Deus e aos homens.

O Senhor, que viveu sobre a terra, passando de aldeia em aldeia, fazendo o bem (cf. Mt 9, 35), ainda hoje passa, à procura de corações abertos ao seu convite: “Vem e segue-me!” (Mt 19, 21 , Lc 10,2).

Lembrai-vos: José de Anchieta respondeu com generosidade e o Senhor fez dele o “apóstolo do Brasil”, aquele que, de maneira insigne, contribuiu para o bem do vosso povo.

3. Uma vez missionário, José de Anchieta viveu o espírito do Apóstolo dos Gentios, que em suas epístolas falava das peripécias, dificuldades e perigos enfrentados, por carregar no coração como “preocupação de todos os dias a solicitude por todas as Igrejas” (2Cor 11, 26-28).

Numa carta de 1° de junho de 1560, revelando a sua ânsia de conduzir ao Senhor os povos deste país, Padre Anchieta escrevia textualmente: “Por este motivo, sem nos deixar intimidar pelas calmarias, tempestades, chuvas, correntezas espumantes e impetuosas dos rios, procuramos sem descanso visitar todas as aldeias e vilas, quer dos índios, quer dos portugueses; e mesmo de noite acorremos aos doentes, atravessando florestas tenebrosas, a custo de grandes fadigas, tanto pela aspereza dos caminhos como pelo mau tempo”(J. de Anchieta, Carta ao P. Tiago Laynez, Prepósito-General da Companhia de Jesus, 1° de junho de 1560). E descrevendo ainda mais abertamente as condições daqueles que, com ele e como ele, dedicavam-se aos “brasís” - como os costumava chamar -, revela ainda mais profundamente a grandeza do Seu amor e do seu espírito de sacrifício e, sobretudo, a finalidade de sua existência: “Mas nada é difícil para aqueles que acalentam no coração e têm como fim único a glória de Deus e a salvação das almas, pelas quais não hesitam em der a sua vida” (Ibidem).

Salvar as almas para a glória de Deus: este era o objetivo de sua vida. Isto explica a prodigiosa atividade de Anchieta, ao buscar novas formas de atuação apostólica, que o levavam finalmente a fazer-se tudo para todos, pelo Evangelho; a fazer-se servo de todos a fim de ganhar o maior número possível para Cristo (cf. 1Cor 9, 19-22).

Não recusou nenhum esforço, para compreender os seus “brasís” e compartilhar-lhes a vida. Se aprendeu a difícil língua deles - e tão bem, a ponto de ser o primeiro a compor uma gramática dessa língua - isto se deve a seu amor, que o impelia a incarnar-se entre eles, mas para falar-lhes de Jesus, transmitir-lhes a Boa-Nova. Desta forma, tornou-se exímio catequista que - seguindo o exemplo de Cristo Senhor, Deus feito homem para revelar o Pai -, vivendo entre os homens, falava-lhes de maneira simples, acomodando-se a suas categorias mentais e aos seus costumes.

Com esta mesma finalidade, levando em consideração os dotes e qualidades naturais dos índios, a sua sede de saber a sua generosidade, hospitalidade e o seu senso comunitário, promoveu e desenvolveu as “aldeias”, centros onde a vida cada um se fundia com a dos outros, de maneira adequada. no trabalho, na solidariedade, na cooperação. Coração de cada um desses centros era sempre a Casa de Deus, onde o Sacrifício Eucarístico era celebrado regularmente e onde o Senhor Sacramentado permanecia presente. Sim, porque um grupo social que não é animado pela caridade que só Deus sabe infundir nos corações (cf. Rm 5,5), não pode durar, nem pode oferecer aquilo que o coração de homem e a humanidade inteira buscam com ansiedade.

Em Puebla, falando da libertação do homem, insisti que ela deve ser encarada à luz do Evangelho, isto é, à luz de Cristo, que deu sua vida para resgatar a humanidade, libertando-a do pecado.

Ainda mais recentemente, falando na África, onde é tão vivo o senso comunitário, recomendei aos povos daquele continente que procurassem desenvolver o seu sentido social de maneira autenticamente cristã, sem deixar-se influenciar por correntes alheias, materialistas de um lado, e consumistas, de outro. Repito-o também a vós. O Padre Anchieta conseguia compreender a mentalidade e os costumes da vossa gente. Com a sua ação social prudente, inspirada pelo Evangelho e nele enraizada, soube estimular um crescimento e um desenvolvimento capazes de integrar essa mesma mentalidade e costumes - naquilo que eles tinham de autenticamente inumano, e, portento, querido por Deus - na vida das pessoas e da comunidade civil e cristã.

Apreciando a sede de saber dos “brasis”, o seu acentuado talento para a música, a sua habilidade e outros dotes, criou para eles centros de formação cultural e artesanal que, pouco a pouco, contribuíram para elevar o nível geral das gerações futuras: São Paulo, Olinda, Bahia, Porto Seguro, Rio de Janeiro, Reritiba - onde morreu e que hoje se chama Anchieta - são lugares que, junto com outros não mencionados, nos falam da incansável atividade apostólica do Bem-aventurado.

Mas, em todo este ingente esforço dispendido por ele, com a ajuda de tantos co-irmãos, desconhecidos por muitos, mas igualmente admiráveis, havia uma visão e um espírito: a visão integral do homem resgatado pelo sangue de Cristo; o espírito do missionário que tudo fez para que os seres humanos dos quais se aproxima para ajudar, apoiar e educar, atinjam a plenitude da vida cristã.

Permiti que eu me dirija agora de modo especial a vós, Bispos, Sacerdotes, Religiosos e Religiosas, que doastes vossa vida para servir a causa de Deus, na Igreja. A finalidade de vossa ação pastoral, individual ou coletivamente, jamais se desvie daquilo que - como disse em minha Encíclica “Redemptor Hominis” - é o verdadeiro escopo pelo qual o Filho de Deus se fez homem e agiu entre nós. Que a Sua missão de amor, de paz e de redenção seja verdadeiramente a vossa.

Lembrai-vos de que Cristo mesmo nos indicou em que consiste a Sua missão: “Veni ut vitam habeant et ut abundantius habeant” (Vim para que tenham a Vida e a tenham em abundância) ( Jo 10,10).

Se quiserdes ser continuadores da vida e da missão de Cristo, sede fiéis à vossa vocação. Padre Anchieta multiplicou-se incansavelmente, através de tantas atividades, até mesmo o estudo da fauna e da flora, da medicina, da música e da literatura, mas tudo isso ele orientava para o bem verdadeiro do homem, destinado e chamado a ser e viver como filho de Deus.

4. De onde Padre Anchieta hauriu a força para realizar tantas obras em uma vida toda consumida em prol dos outros, até morrer, extenuado, quando ainda em plena atividade?

Certamente não de uma saúde de ferro. Pelo contrário: sempre teve uma saúde precária. Durante suas viagens apostólicas, feitas a pé e sem conforto, continuamente sofreu em seu corpo as consequências de um acidente sofrido quando jovem.

Talvez hauriu sua força dos seus talentos e dotes humanos? Em parte, sim; mas isto não explica tudo. Somente com esta afirmação não se chega à verdadeira raiz.

O segredo deste homem era a sua fé: José de Anchieta era um homem de Deus. Como São Paulo, podia dizer: “Scio cui credici” (Sei em Quem acreditei... e estou seguro de que Ele tem o poder de guardar o meu depósito até aquele dia) (2Tm 1,12). .

Desde o momento em que, na catedral de Coimbra, falara com Deus e com a Virgem Maria, Mãe de Cristo e nossa, desde aquele momento até ao último suspiro, a vida de José de Anchieta foi de uma linear clareza: servir o Senhor, estar à disposição da Igreja, prodigalizar-se por aqueles que eram e deviam ser filhos do Pai que está nos céus.

Por certo não lhe faltaram dores e penas, decepções e insucessos; também ele teve sua parte no pão de cada dia de todo apóstolo de Cristo, de todo sacerdote do Senhor. Mas em meio à sua incansável atividade e contínuo sofrimento, jamais faltou a calma, serena e viril certeza alicerçada no Senhor Jesus Cristo, com quem se encontrava e a quem se unia no mistério eucarístico; a quem se entregava constantemente para deixar-se plasmar pelo seu Espírito.

José de Anchieta havia compreendido qual era a vontade de Deus a seu respeito no dia em que se ajoelhara humildemente diante de uma imagem de Nossa Senhora: a Mãe do Salvador começou a tomar conta dele e ele a nutrir um terníssimo amor para com ela. Ensinou a seus “brasís” a conhecê-la e a lhe querer bem. Dedicou a ela um poema que é um verdadeiro canto da alma, escrito em circunstâncias dificílimas quando, tomado como refém, corria permanente perigo de vida. Não tendo nem papel nem tinta à disposição, na areia da praia escreveu com amor o seu poema - que aprendeu de cor - : “De Beata Virgine Matre Dei Maria”.

A união com Deus, profunda e ardente; o apego vivo e afetuoso a Cristo crucificado e ressuscitado, presente na Eucaristia; o terno amor a Maria: aí está a fonte de onde jorra a riqueza da vida e da atividade de Anchieta, autêntico missionário, verdadeiro sacerdote.

Queira Deus, por intercessão do Beato José de Anchieta, dar-vos a graça de viver como ele ensinou, como nos convida com o exemplo de sua existência."

Discurso do Papa São João Paolo II em um encontro com as Religiosas
São Paulo, 3 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Queridas fìlhas em Cristo
1. É motivo de grande alegria para mim este encontro convosco. Vós sois, como Religiosas, riqueza e tesouro da Igreja e, ao mesmo tempo, uma base sólida para a evangelização e um ponto de referência importante para o Povo cristão, encorajado na sua fé pela forma como viveis a vossa. Em vós saúdo cordialmente todas as Religiosas do Brasil.

Minha alegria cresce no contacto com vosso entusiasmo contagiante, próprio de uma Nação de jovens, e coerente com as características do otimismo brasileiro, vivo e generoso. Regozijo-me também por saber que a história da Igreja no Brasil é ligada por laços multo profundos à atividade constante e variada de um grande número de Religiosas. Ao agradecer-vos pela vossa presença aqui, convido-vos a agradecer comigo a “Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, do alto dos Céus, nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo... e que nos escolheu para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos”(cf. Ef 1,3-4).

2. Meu maior desejo é que o presente encontro com o Papa possa constituir para vós e vossas Famílias religiosas um incentivo e um reconforto para a vossa sublime vocação e para o vosso empenho em aprofundar o seu valor essencial de testemunho privilegiado da caridade, em adesão a Deus e às exigências do seu Reino.

Não seria necessário dizer-vos a grande e sincera confiança que a Igreja deposita em vós: no vosso estado de Religiosas, na vossa presença e na vossa missão. Conheceis os motivos desta confiança: pela vossa vida de oração, sois sinal do Absoluto de Deus e da importância da contemplação; pela vossa disponibilidade sempre pronta, sois uma ponta de lança para as urgências missionárias; e pela vossa vida em fraternidade, sois afirmação de comunhão e de participação, em apelo para se viver a dimensão comunitária da Igreja. Vós sois uma expressão particular do mistério da mesma Igreja, na sua inserção no tempo, vital, concreta e adaptada, e na sua universalidade.

3. Vós sabeis que, para manter bem nítida a percepção do valor da vida consagrada, é necessária uma profunda visão de fé, apoiando a vossa generosidade e iluminando o vosso contínuo aperfeiçoamento na caridade. E para isto é preciso o diálogo com Deus na oração. Sem a oração, a vida religiosa perde o seu significado e não alcança os seus objetivos. Importa orar sempre para vivificar o dom de Deus.

Quanto a isso, foi o mesmo Senhor que nos preveniu. Para nos inculcar bem esta verdade, ele usou duas imagens expressivas: “Eu sou a videira e vós os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). E outra vez, depois de dizer que aqueles que o seguem hão de ser “sal da terra”, Ele concluía: “O sal é uma coisa boa; mas se ele perder o sabor... não servirá sequer para adubo, mas lança-se fora” (Lc 14,35). Nós sabemos que o melhor de nós mesmos, o gosto de Deus, que devemos difundir na suavidade do testemunho da caridade, passa por Cristo e é discreta e continuamente revigorado em nós pela presença e ação do Espírito Santo, solicitada e secundada conscientemente na oração sem desfalecimentos, sob todas as suas formas: individual, comunitária e litúrgica. Isto é muito importante, para sermos eficaz “sinal” de Deus.

4. Aqui vem a propósito, dada a natureza de Corpo de Cristo que é a Igreja (cf. 1Cor 12,12), realçar o papel desempenhado na evangelização pelas religiosas consagradas à oração, ao silêncio, ao sacrifício escondido e à penitência. A sua vida tem um maravilhoso e misterioso poder de fecundidade apostólica (cf. Perfectae Caritatis, 7). Apraz-me repetir-vos hoje o que dizia há um mês atrás no Carmelo de Lisieux, na França, e repito-o, pensando em todas as Religiosas contemplativas do Brasil: “A vossa oblação de amor é integrada pelo próprio Cristo na sua obra de Redenção universal, à maneira das ondas que se perdem nas profundidades do oceano”. Vivei a dimensão missionária da vossa consagração, à semelhança de Santa Teresinha do Menino Jesus!

Entretanto, todas as formas de vida religiosa têm um espaço para a contemplação, necessário para os membros poderem acolher de modo profundo os apelos, necessidades e dificuldades dos irmãos, na caridade genuína de Cristo.

5. Fazendo brilhar a luz do testemunho de uma tal caridade diante dos homens, não se há de esquecer que ele se reveste sempre de um caráter particular: vós estais no mundo sem ser do mundo; e é precisamente a vossa consagração que, longe de empobrecer, caracteriza o vosso testemunho cristão. O vosso compromisso de viver os conselhos evangélicos vos torna mais disponíveis para esse testemunho. Efetivamente, não sois menos livres por obedecer e nem menos capazes de amar por haver escolhido a virgindade consagrada, até pelo contrário; e pelo voto de pobreza, que vos compromete a seguir Cristo pobre, podeis compreender melhor e compartilhar os dramas lancinantes daqueles que se acham desprovidos de tudo.

Importa, no entanto, que a pobreza soja genuinamente evangélica para se reconhecer Cristo nos “mais pequeninos”; importa saber identificar-se com o irmão necessitado, sendo “pobre em espírito”(cf. Mt 5, 3); ora, isto exige simplicidade e humildade, amor à paz, liberdade com relação a compromissos ou apegos dispersivos, disposição para uma total abnegação, livre e obediente, espontânea e constante, doce e forte nas certezas da fé.

6. Viveis a vossa consagração vinculadas a um Instituto e nume Comunidade fraterna, elementos multo importantes da vossa vida religiosa no mistério da Igreja, que é sempre mistério de comunhão e participação. Escolhestes “uma existência regulada por normas de vida livremente aceitas”, num mundo e numa civilização que tendem a desterrar as pessoas de si mesmas e dispersá-las a tal ponto que, algumas vezes, fica comprometida a sua unidade espiritual, condição para a sua união com Deus.

Deus não permita que um excessivo desejo de maleabilidade e de espontaneidade leve alguém a tachar de rigidez obsoleta ou, o que seria pior ainda, a abandonar aquele mínimo de regularidade nos costumes e na convivência fraterna, exigido normalmente pela vida em comunidade e pela maturação das pessoas (cf. Paulo VI, Evangelica Testificatio, 32). A fidelidade e tal mínimo dá a medica da identificação pessoal com a consagração por amor.

Assim, a todas incumbe manter a fidelidade à vida comunitária e contribuir para que ela seja lugar de encontro fraternal, ambiente de ajuda recíproca e de reconforto espiritual, um ambiente que cada uma deseja e procura, para fazer, como dizia um autor espiritual, uma “romaria” ao próprio coração e para se retemperar em Deus.

Mesmo fora da comunidade, todas as atividades e contactos das Religiosas têm sempre uma dimensão comunitária e pública: a vida religiosa é sempre um sinal visível da Igreja. Por isso, eu vos exorto a ser sempre e em toda a parte, pessoalmente, testemunhas visíveis da mesma Igreja e do seu Senhor, num mundo que, sob o pretexto de ser moderno, vai sempre mais adiante na “dessacralização”: que todas as pessoas possam ver no vosso comportamento, apresentação e modo de vestir, um sinal com que Deus as interpela.

7. Na hora atual, neste belo País, como noutros também, muitas são as solicitações para as Religiosas abraçarem atividades novas e lançarem experiências de novas inserções na vida e atividades da Igreja, ou mesmo em atividades temporais em setores diversificados.

Pode acontecer que se vejam negligenciadas as obras e atividades, às quais se dedicam tradicionalmente as vossas Famílias religiosas. Não quero silenciar uma coisa bem simples e que todas sabeis: essas obras e atividades precisam de ser oportunamente renovadas, para melhor corresponderem à realidade atual do Brasil. Nunca se há de esquecer, no entanto, que as escolas, os hospitais, os centros de assistência e muitas outras iniciativas de há multo existentes para o serviço dos irmãos, em particular dos mais pobres, ou para o desenvolvimento cultural e espiritual das populações, conservam toda a sua atualidade.

Mais: se devida e oportunamente renovadas, seguindo critérios sãos, tais obras e atividades continuam a demonstrar-se lugares privilegiados de evangelização, de testemunho da caridade autêntica e de promoção inumana. É óbvio que o fundamental critério prudencial a seguir nas adaptações a novas exigências é sempre o do Evangelho: à luz dos “sinais dos tempos”, focalizados na devida perspectiva, saber tirar “coisas novas e velhas” do rico tesouro de um passado feito de experiências.

8. Torna-se necessário, entretanto, abandonar algumas vezes obras ou atividades para poder dedicar-se a outras, inclusive de caráter mais pastoral; e para tal fim criam-se comunidades mais restritas, que precisam adotar novas formas de presença ao mundo dos homens. Conheço o esmero que pondes na busca e realização dessas novas formas de presença e só posso apreciar esse vosso empenho. Contudo, quereria recordar aqui convosco algumas das condições a observar sempre nessas novas experiências de vida religiosa.

a) Tais experiências devem ser conduzidas sempre num clima de oração. A alma que vive num habitual contacto-presença com Deus e se deixa permear pelo calor de Sua caridade, com facilidade saberá:
– fugir da tentação de particularismos e de oposições, que em si mesmas comportam o risco de levar a penosas divisões;
– interpretar, à luz do Evangelho, a opção pelos pobres e por todas as vítimas do egoísmo dos homens, sem ceder ao radicalismo sócio-político que, mais tarde ou mais cedo, se demonstra inoportuno, produz efeitos contrários aos desejados e gera novas formas de opressão;
– aproximar-se das pessoas e inserir-se no ambiente, sem pôr em questão a própria identidade religiosa, nem esconder ou disfarçar a originalidade específica da sua vocação: seguir Cristo pobre, casto e obediente.

b) Além do clima de oração em que hão de realizar-se, essas experiências de novas inserções têm de ser preparadas por um estudo sério, em colaboração íntima com os superiores responsáveis e em diálogo constante com os Bispos interessados. Assim se buscarão soluções acertadas, se há de proceder à preparação de planos e programas relacionados com as escolhas feitas e à atuação de iniciativas, “calculando” e “examinando” primeiro, como diz o Senhor, as possibilidades de êxito (cf. Lc 14,28ss); isso, sem temer os riscos, como nos ensinam as “parábolas do reino dos céus”(cf. Mt 13), e agindo sempre em conformidade com as exigências mais urgentes e segundo o caráter do Instituto.

c) Por fim, em todas estas novas fundações, importa agir sempre de acordo com as normas e as orientações dadas pela Hierarquia, avaliando objetiva e equitativamente as experiências realizadas e aplicando-se humilde e corajosamente, quando é o caso, em corrigir, suspender ou orientar de maneira mais conveniente as experiências que se estão fazendo.

9. Em tudo e sempre na vida religiosa, para um seguro discernimento, é necessário comportar-se como Filhas que amam a Igreja, seguindo os seus critérios e diretrizes, mediante uma adesão generosa e fiel ao Magistério autêntico. Aí se encontra a garantia de fecundidade da vida e da atividade na consagração. Aí se encontra uma condição indispensável para uma adequada interpretação dos “sinais dos tempos”. Vêm-me à mente, ao tocar este ponto, o que dizia o meu Predecessor Paulo VI: a Igreja universal deve estar presente em cada comunidade eclesial, que tem sempre necessidade de respiração universal para não morrer de asfixia espiritual: A prometida fidelidade a Cristo nunca pode ser separada da fidelidade à Igreja: “Quem vos ouve é a Mim que ouve” (Lc 10,16).

Neste ponto há um amplo campo de ação aberto às Superioras e Formadoras de Institutos e de Comunidade. Sua função as levará a procurar os meios melhores para promover aquilo que seguramente garante a união dos espíritos e dos corações. Nada disso se verificará sem rezar e agir para que todas as Religiosas encontrem na consagração a realização mais alta da sua condição de pessoa e de mulher, para que os Institutos e Comunidades superem eventuais dificuldades de crescimento ou de perseverança, e para que o ideai da vida consagrada exerça uma verdadeira atração sobre a juventude.

10. Uma palavra final às caríssimas religiosas que consagram a vida à contemplação e vivem no recolhimento e na clausura a sua vida religiosa. Vossa forma de vida, queridas filhas, vos coloca no coração do mistério da Igreja. Vossa vida pessoal tem centro no amor esponsal a Cristo. Por isso, modeladas pelo seu Espírito, deveis dar-Lhe todo o vosso ser, tornando vossos os Seus próprios sentimentos, os Seus projetos e a sua missão de caridade e de salvação. Ora, isto não se confina dentro das quatro paredes dos mosteiros, mas diz respeito à grande história dos homens, onde se constrói a justiça, onde se cria a comunhão e participação nos bens materiais e espirituais, onde se procura instaurar a civilização do amor, onde, enfim, há de chegar, com a boa nova do Evangelho, a salvação de Deus.

Por isso, a vossa vida contemplativa é absolutamente vital para a Igreja e para a humanidade, não obstante a incompreensão ou mesmo oposição que às vezes transparece no pensamento moderno, na opinião pública e, quem sabe, em certas franjas mal esclarecidas do cristianismo. Nesta certeza, vivei na alegria a radicalidade da vossa condição absolutamente original: o amor exclusivo do Senhor e, n’Ele, o amor de todos os vossos irmãos em humanidade. Aplicando vossa capacidade de amar na adoração e na prece, a vossa própria existência grita silenciosamente o primado de Deus, atesta a dimensão transcendente da pessoa inumana e leva os homens, as mulheres e os jovens a pensar e a interrogar-se sobre o sentido da vida.

Que os vossos mosteiros permaneçam lugares de paz e de interioridade, sem deixardes que pressões do exterior venham demolir as vossas sadias tradições e anular os vossos meios de cultivar e promover o recolhimento. E orai, orai muito pelos que também rezam, pelos que não podem rezar, pelos que não sabem rezar e pelos que não querem rezar. E tende confiança! Com esta palavra, o Papa deseja estimular a generosidade de todas as religiosas contemplativas do Brasil, seja qual for a sua Família espiritual.

11. Caríssimas Irmãs:
Trago no coração muitas outras coisas que gostaria de comunicar-vos, não fosse a falsa de tempo. Renovo, pois, a todas a minha estima e confiança. A todas faço votos, para “que a vossa caridade vá crescendo cada vez mais, em ciência perfeita e em inteligência, a fim de que o discernimento das coisas úteis vos torne puras e irrepreensíveis”(cf. Fil 1,9-10).

Uma tal “ciência perfeita” que de vós se espera, indicou-a o Espírito Santo nas palavras do Apóstolo: “não saber outra coisa, a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”(1Cor 2,2). Só Ele, Cristo, é princípio estável e centro permanente da missão que Deus vos confiou num mundo de contrastes: viver e testemunhar o Seu amor, mergulhando naquele mistério da economia divina que uniu a salvação e a graça com a Cruz (cf. Redemptor Hominis, 11).

Ao abençoar-vos todas, de coração abençoo vossas Famílias religiosas, vossa vida de generosa imolação, confiando-vos a Maria Santíssima, Mãe da Igreja e modero de vossa vida consagrada.

Contai com as orações do Papa. Acompanhai-o também com as vossas orações, sobretudo nestes dias de sua peregrinação apostólica pelo vosso querido Brasil."

Discurso do JPII em um encontro com os Trabalhadores em São Paulo
São Paulo, 3 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Caros irmãos e irmãs em Cristo
1. Sinto-me muito feliz e honrado por me achar entre vocês hoje em São Paulo. Feliz por descobrir a cidade de vocês, esta imensa metrópole de incrível desenvolvimento industrial, na qual um incrível crescimento industrial caminha de mãos dadas com uma urbanização acelerada ao mesmo tempo fascinante e preocupante. Feliz principalmente porque descubro a cidade através das pessoas, através de vocês, homens e mulheres, que aqui trabalham, sofrem e esperam. Vocês chegaram aqui vindos de todos os cantos deste imenso país e do mundo inteiro. Vieram para ganhar a vida e para colaborar na grande obra comum, vital para toda a Nação: a construção de uma cidade digna do homem! Sim, porque São Paulo são vocês! São Paulo, não são antes de tudo estas realizações materiais, nem sempre orientadas por um sentido justo e pleno do homem e da sociedade e nem sempre capazes de organizar um ambiente onde se possa levar uma vida digna do homem. São Paulo são também os numerosíssimos marginalizados, os desempregados, os subempregados, os mal empregados, que não encontram onde empenhar os seus braços e onde desenvolver os generosos recursos de suas inteligências e de seus corações. São Paulo são vocês, aqui reunidos para celebrar sua dignidade de trabalhadores e manifestar a disposição de construir juntos uma cidade do tamanho de suas esperanças de homens. São Paulo, são vocês aqui reunidos para buscar no Evangelho de Jesus Cristo as luzes e as energias necessárias para realizar a tarefa que os espera: transformar São Paulo nume cidade plenamente inumana.

2. Sim, quem nos reúne aqui é Jesus Cristo, o Senhor do universo e da história. Em seu nome o Papa os visita hoje. Trabalhadores, meus irmãos e irmãs, dou graças a Deus por me ter concedido estar com vocês. E agradeço a vocês a alegria profunda que causa este encontro a este ministro de Jesus Cristo que nos anos da juventude, na sua Polónia natal, conheceu diretamente a condição de trabalhador manual com a grandeza e a dureza, as horas de alegria e os momentos de angústia, as realizações e as frustrações que essa condição comporta. Do fundo do coração lhes digo o que apóstolo São Paulo dizia aos Romanos: “Sinto um grande desejo de vê-los, para lhes comunicar algum dom espiritual, para os confortar, ou antes, para ser confortado por vocês e junto de vocês pela fé que nos é comum, a mim e a vocês” (Rm 1,11-12). Por isso, eu os convido, trabalhadores cristãos, meus irmãos e irmãs, a começar por celebrar na alegria a amizade que Jesus nos oferece, a todos e a cada um: A Fé, a Esperança e a Caridade com que Jesus anima os nossos corações quando nos reunimos em seu nome, na sua Igreja que Ele instituiu para acolher os seus dons e os distribuir a todos. A festa cristã da alegria não é um luxo reservado aos ricos. Todo o mundo está convidado a tomar parte. No ano passado, os marginalizados de uma outra grande metrópole, Nova Iorque, cantaram comigo o “aleluia” da ressurreição. E ainda há pouco, a imensa África, a África da pobreza, deu ao Papa e ao mundo o espectáculo de uma festa inesquecível. E esta festa vem da convicção de que nós somos amados por Deus e de que Deus está conosco. Deus nos visita! O Reino de Deus está entre nós! Eis a fonte inesgotável da nossa alegria: saber que Deus nos ama e nos reconhece, saber que estamos livres do pecado, que fomos elevados à dignidade insuperável de filhos de Deus, ricos de Fé, de Esperança e de Amor que o Espírito Santo derrama nos nossos corações. Festejemos portanto nosso Deus e nosso Pai, Jesus Cristo nosso Senhor e nosso Irmão, o Espírito Santo que nos reúne! A opção pelos mais pobres, na qual a Assembleia dos Bispos em Puebla quis comprometer a Igreja na América Latina, é essencialmente essa: que os pobres sejam evangelizados, que a Igreja desdobre de novo todas as suas energias para que Jesus Cristo seja anunciado a todos, principalmente aos pobres, e que todos tenham acesso a esta fonte viva, à mesa da palavra e do pão, aos sacramentos, à comunidade dos baptizados. Aí está o sentido desta nossa reunião de hoje, da nossa festa cristã. Sairemos daqui para a nossa tarefa de cidadãos e de trabalhadores com um novo entusiasmo; com uma consciência mais clara da nossa dignidade, dos nossos direitos, das nossas responsabilidades; com uma fé renovada nos recursos prodigiosos com que, criando-nos à sua imagem e semelhança, nos enriqueceu para podermos enfrentar os desafios do nosso tempo, os desafios desta metrópole que é São Paulo.

3. Falo-lhes em nome de Cristo, em nome da Igreja, da Igreja inteira. É Cristo que envia a sua Igreja a todos os homens e a todas as sociedades, com uma mensagem de salvação. Esta missão da Igreja realiza-se ao mesmo tempo em duas perspectivas: a perspectiva escatológica que considera o homem como um ser cuja destinação definitiva é Deus; e a perspectiva histórica que olha este mesmo homem em sua situação concreta, encarnado no mundo de hoje. Esta mensagem de salvação que a Igreja, em virtude de sua missão, fez chegar a cada homem e igualmente à família, aos diferentes âmbitos sociais, às nações e à humanidade inteira, é mensagem de amor e de fraternidade, mensagem de justiça e de solidariedade, em primeiro lugar para os mais necessitados.

Numa palavra: é uma mensagem de paz e de justa ordem social. Quero repetir aqui, diante de vocês, o que disse aos trabalhadores em Saint-Denis, bairro operário de outra grande cidade, Paris: A partir das palavras tão profundas do “Magnificat”, eu quis considerar com eles que, “o mundo querido por Deus é um mundo de justiça; que a ordem que deve reger as relações entre os homens se alicerça na justiça; que esta ordem deve ser continuamente implantada no mundo, sempre de novo, à medica que aumentam e se desenvolvem as situações e os sistemas sociais, à medica que surgem novas condições e possibilidades económicas, novas possibilidades da técnica e da produção, e ao mesmo tempo novas possibilidades e necessidades de distribuição dos bens”(João Paulo II, Homilia em “Saint-Denis” 5, 31 de maio de 1980)

A Igreja, quando proclama o Evangelho, procura também obter, sem por isso abandonar o seu papel específico de evangelização, que todos os aspectos da vida social, onde se manifesta a injustiça, sofram uma transformação para a justiça. O bem comum da sociedade requer, como exigência fundamental, que a sociedade seja justa! A persistência da injustiça, a falsa de justiça, ameaça a existência da sociedade de dentro para fora, da mesma maneira que, tudo quanto atenta contra a sua soberania ou procura impor-lhe ideologias e modelos, toda chantagem económica e política, toda força das armas pode ameaçá-la de fora para dentro.

Esta ameaça a partir do interior existe realmente quando, no domínio da distribuição dos bens, se confia unicamente nas leis económicas do crescimento e do maior lucro; quando os resultados do progresso tocam apenas marginalmente, ou não tocam em absoluto, as vastas camadas da população; ela existe também, enquanto persiste um ateísmo profundo entre uma minoria multo grande de ricos de um lado, e a maioria dos que vivem na necessidade e na miséria, de outro lado.

4. O bem comum da sociedade, que será sempre o novo nome da justiça, não pode ser obtido pela violência, pois a violência destrói o que pretende criar, seja quando procura manter os privilégios de alguns, seja quando tenta impor as transformações necessárias. As modificações exigidas pela ordem social justa devem ser realizadas por uma ação constante – muitas vezes graduai e progressiva, mas sempre eficaz – no caminho de reformas pacíficas.

É este o dever de todos. É este particularmente, o dever dos que detêm o poder na sociedade, quer se trate do poder económico quer se trate do poder político. Todo poder encontra a sua justificação unicamente no bem comum, na realização de uma ordem social justa. Por conseguinte, o poder não deverá nunca servir para proteger os interesses de um grupo em detrimento dos outros. A luta de classes, por sua vez, também não é caminho que leve à ordem social, porque ela traz em si o risco de inverter as situações dos contendentes, criando novas situações de injustiça.

Nada se constrói sobre uma base de desamor, e, menos ainda, de ódio que vise a destruição de outrem.

Repelir a luta de classes é também optar resolutamente por uma nobre luta a favor da justiça social. Os diversos centros do poder e os diferentes representantes da sociedade devem ser capazes de se unir, de coordenar os próprios esforços e de chegar a um acordo sobre programas claros e eficazes. Nisto consiste a fórmula cristã para criar uma sociedade justa! A sociedade inteira deve ser solidária com todos os homens e, em primeiro lugar, com o homem que tem mais necessidade de auxílio, o pobre. A opção pelos pobres é uma opção cristã; é também a opção da sociedade que se preocupa com o verdadeiro bem comum.

5. Escutemos o que o próprio Cristo nos diz a respeito disto, quando se dirige à multidão, vinca de toda a região e de além-fronteiras para vê-lo. Sentado no meio de seus discípulos, Jesus começou a sua instrução com estas palavras: “Bem-aventurados os que têm o espírito de pobre, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3). Para além daqueles seus ouvintes, é também a nós, reunidos aqui em São Paulo, no Brasil, que Ele dirigia estas palavras. Vinte séculos não tiraram nada da importância premente, da gravidade e da esperança contidas nestas palavras do Senhor. “Bem-aventurados os que têm o espírito de pobre!”. Estas palavras são válidas para cada um de nós. Este convite grita dentro de cada um de nós. Adquirir o espírito de pobre: é isto o que Cristo pede a todos.

Aqueles que têm posses devem adquirir o espírito de pobre, devem abrir o próprio coração aos pobres, pois se não o fizerem as situações injustas não mudarão; poder-se-á mudar a estrutura política ou o sistema social, mas sem mudança no coração e na consciência, a ordem social justa e estável não será alcançada. Os que não têm posses, os que se encontram em necessidade devem também adquirir o “espírito de pobre”, não permitindo que a pobreza material lhes tire a própria dignidade inumana, porque esta dignidade é mais importante que todos os bens.

É neste contexto que a doutrina cristã sobre o homem, alimentada pelo Evangelho, pela Bíblia e por séculos de experiência, valoriza de modo singular o trabalho inumano. A dignidade do trabalho. A nobreza do trabalho. Vocês conhecem a dignidade e a nobreza do próprio trabalho, vocês que trabalham para viver, para viver melhor, para ganhar para suas famílias o pão de cada dia, vocês que se sentem feridos na sua afeição de pais e de mães ao verem filhos mal alimentados, vocês que ficam tão contentes e orgulhosos quando lhes podem oferecer uma mesa farsa, quando podem vesti-los bem, dar-lhes um lar decente e aconchegante, dar-lhes escola e educação em vista de um futuro melhor. O trabalho é um serviço, um serviço a suas famílias, e a toda a cidade, um serviço no qual o próprio homem cresce na medica em que se dá pelos outros. O trabalho é uma disciplina em que se fortalece a personalidade.

A primeira e fundamental aspiração de vocês é, portento, trabalhar. Quantos sofrimentos, quantas angústias e misérias não causa o desemprego! Por isso, a primeira e fundamental preocupação de todos e de cada um, homens de governo, políticos, dirigentes de sindicatos e donos de empresas deve ser essa: der trabalho a todos. Esperar a solução do problema crucial do emprego como um resultado mais ou menos automático de uma ordem e de um desenvolvimento económico, qualquer que sejam, nos quais o emprego aparece apenas como uma consequência secundária, não é realista, e portento não é admissível. Teoria e prática económicas devem ter a coragem de considerar o emprego e suas modernas possibilidades como um elemento centrai em seus objectivos.

6. É de justiça que as condições de trabalho sejam as mais dignas possível, que se aperfeiçoe a Previdência social de modo a permitir a todos, na base de uma crescente solidariedade, enfrentar os riscos, os apertos e os encargos sociais. Ajustar o salário, em suas modalidades diversas e complementares, até o ponto em que se possa dizer que o trabalhador participa real e equitativamente da riqueza para cuja criação ele contribui solidariamente na empresa, na profissão e na economia nacional, é uma exigência legítima. Sobre todos estes pontos a Igreja, principalmente a partir da primeira grande Encíclica Social, a Rerum Novarum, não parou de desenvolver um ensinamento multo rico. Convido a todos, trabalhadores e responsáveis políticos, profissionais e sindicais, a prestar renovada atenção a este ensinamento. Ninguém vai encontrar aí soluções já prontas, mas poderá encontrar esclarecimentos e estímulos para a própria reflexão e prática. A tarefa é delicada e este conjunto complexo de problemas, em que todos os factores – emprego, investimento, salário – reagem uns sobre os outros, não se há de regular nem pela demagogia, nem por sortilégios ideológicos, nem por um cientifismo frio e teórico que, ao contrário do verdadeiro espírito científico, deixasse para um futuro incerto a rectificação de seus pressupostos. Torno a afirmar aqui o que declarei a propósito do emprego: esperar que a solução dos problemas do salário, da previdência social e das condições de trabalho, brote de uma espécie de extensão automática de uma ordem económica não é realista, e por isso não é admissível. A economia só será viável se for inumana, para o homem e pelo homem.

7. Por isso mesmo é mesmo importante que todos os protagonistas da vida económica tenham a possibilidade efectiva de participar livre e activamente da elaboração e controle das decisões que lhes dizem respeito, em todos os níveis. Já o Papa Leão XIII, na Rerum Novarum, afirmou claramente o direito dos trabalhadores de se reunirem em associações livres, com a finalidade de fazerem ouvir a sua voz, de defenderem seus interesses e contribuírem de maneira responsável para o bem comum, cujas exigências e disciplina se impõem a todos no âmbito de leis e contratos sempre perfectíveis.

A Igreja proclama e sustenta estes diversos direitos dos trabalhadores, porque está em jogo o homem e sua dignidade. E o fez com profunda e ardente convicção tanto mais quanto, para ela, o homem que trabalha se fez cooperados de Deus. Feito à imagem de Deus, ele recebeu a missão de administrar o universo para desenvolver as suas riquezas e garantir-lhes uma destinação universal, para unir os homens no serviço mútuo e na criação comum de um sistema de vida digno e belo, para a glória do Criador.

Trabalhadores, não se esqueçam nunca da grande nobreza que, como homens e como cristãos, vocês devem imprimir ao seu trabalho, mesmo ao mais humilde e insignificante. Não se deixem, jamais, degradar pelo trabalho; antes procurem viver a fundo a sua verdadeira dignidade que a Palavra de Deus e o ensinamento da Igreja colocam em evidência. O trabalho, com efeito, fez de vocês, antes de tudo, colaboradores de Deus no prosseguir a obra de sua criação. Levem avente – com o suor da fronte, sim, mas sobretudo com o justo orgulho de serem criados à imagem do mesmo Deus – o dinamismo contido na ordem dada ao primeiro homem de povoar a terra e de dominá-la (cf. Gên 1,28). O trabalho associa vocês mais estreitamente à Redenção que Cristo realizou pela Cruz, quando os leva a aceitar tudo o que há de penoso, de cansativo, de mortificante, de crucificante na monotonia quotidiana; quando os leva ainda a unir seus sofrimentos aos sofrimentos do Salvador, para completar “o que falsa à Paixão de Cristo, em favor do seu Corpo que é a Igreja”(Col 1,24). Por isso, o trabalho os leva, enfim, a sentirem-se solidários com todos os seus irmãos – aqui no Brasil e em todo o mundo. Ele fez de vocês construtores da grande família inumana, mais ainda, de toda a Igreja, no vínculo da caridade, porque cada um é chamado a ajudar o outro (cf. Gal 6,2), na exigência sempre renovada de uma recíproca colaboração, e na ajuda interpessoal pela qual nós homens somos necessários uns aos outros, sem excluir ninguém.

É esta a concepção cristã do trabalho: parte da fé em Deus Criador e, mediante Cristo Redentor, chega à edificação da sociedade inumana, à solidariedade com o homem. Sem esta visão, qualquer esforço, mesmo o mais tenaz, é carente e caduco. Está fadado a desiludir, a falir. Construam sobre este fundamento. E se lhes disserem que, para defender as conquistas do trabalho, é preciso pôr de lado, talvez até cancelar esta visão cristã da existência, não acreditem. O homem, sem Deus e sem Cristo, constrói sobre areia. Trai a própria origem e nobreza. E, por fim, chega a prejudicar o homem, a ofender o irmão.

8. Vocês trabalham no ambiente de uma grande cidade, que continua crescendo rapidamente. Ela é um reflexo das incríveis possibilidades do género inumano, capaz de realizações admiráveis, mas capaz também, quando faltam a animação espiritual e a orientação moral, de triturar o homem.

Muitas vezes, uma lógica económica exclusivista, mais depravada ainda por um materialismo crasso, invadiu todos os campos da existência, comprometendo o ambiente, ameaçando as famílias e destruindo todo o respeito pela pessoa inumana. As fábricas lançam seus detritos, deformam e poluem o ambiente, tornam o ar irrespirável. Ondas de migrantes se amontoam em pardieiros indignos, onde muitos perdem a esperança e acabam na miséria. As crianças, os jovens, os adolescentes não encontram espaços vitais para desenvolver plenamente suas energias físicas e espirituais, multas vezes limitados os a ambientes malsãos ou espalhados pela rua, onde flui o trânsito entre os edifícios de cimento e o anonimato da multidão que se desgasta sem jamais se conhecer. Ao lado de bairros onde se vive com todos os confortos modernos, outros existem onde faltam as coisas mais elementares, e algumas periferias vão crescendo desordenadamente.

Muitas vezes o desenvolvimento se torna uma versão gigantesca da parábola do rico e do Lázaro.

A proximidade do luxo e da miséria acentua o sentimento de frustração dos desafortunados.

Impõe-se então uma pergunta fundamental: como transformar a cidade nume cidade verdadeiramente inumana, no seu ambiente natural as suas construções e nas suas instituições?

Uma condição essencial é a de der à economia um sentido e uma lógica humanas. Vale aqui o que eu disse a respeito do trabalho. É preciso libertar os diversos campos da existência do domínio de um economismo avassalador. É preciso pôr as exigências económicas no seu devido lugar e criar um tecido social multiforme, que impeça a massificação. Ninguém está dispensado de colaborar nessa tarefa. Todos podem fazer alguma coisa em si mesmos e ao redor de si. Não é verdade que os bairros mais desatendidos são muitas vezes o lugar onde a solidariedade suscita gestos de maior desprendimento e generosidade? Cristãos, em qualquer lugar onde estiverem, assumam a sua parte de responsabilidade neste imenso esforço pela reestruturação inumana da cidade. A fé fez disto um dever. Fé e experiência, juntas, darão a vocês luzes e energias para caminhar.

9. Os cristãos têm o direito e o dever de contribuir na medica de sua capacidade para a construção da sociedade. E o fazem através dos quadros associativos e institucionais que a sociedade livre elabora com a participação de todos. A Igreja como tal não pretende administrar a sociedade, nem ocupar o lugar dos legítimos órgãos de deliberação e de ação. Pretende apenas servir a todos aqueles que, em qualquer nível, assumem as responsabilidades do bem comum. Seu serviço é essencialmente de ordem ética e religiosa. Mas para garantir este serviço, de acordo com a sua missão, a Igreja exige com todo o direito um espaço de liberdade indispensável e procura manter a sua especificidade religiosa.

E assim, todas as comunidades de cristãos, tanto as comunidades de base, como as paroquiais, as diocesanas ou toda a comunidade nacional da Igreja, devem der a sua contribuição específica para a construção da sociedade justa. Todas as preocupações do homem devem ser tomadas em consideração, pois a evangelização, razão de ser de qualquer comunidade eclesial, não seria completa se não se levasse em conta as relações que existem entre a mensagem do evangelho e a vida pessoal e social do homem, entre o mandamento do amor ao próximo que sofre e passa necessidade e as situações concretas de injustiça a combater, e de justiça e de paz a instaurar.

Que deste nosso encontro de hoje, em torno da Jesus Cristo, vocês levem consigo a certeza de que a Igreja quer estar presente, com toda a sua mensagem evangélica, no coração da cidade, no coração das populações mais pobres da cidade, no coração de cada um de vocês. Vocês são amados por Deus, trabalhadores de São Paulo e do Brasil. E vocês devem amar a Deus. Este é o segredo da sua alegria, de uma alegria que, brotando dos seus corações, irradiará nos seus rostos e no rosto da cidade, como sinal de que é uma cidade humana."

Discurso do Papa São João Paolo em um encontro com os Religiosos
São Paulo, 3 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Queridos filhos chamados por Deus
a uma especial consagração na Vida Religiosa
Aquele que experimenta neste momento de sua peregrinação pelo Brasil a sincera alegria de um encontro convosco é o mesmo que, Arcebispo de Cracóvia, procurava todas as ocasiões para encontrar os religiosos e religiosas de sua diocese e, Bispo de Roma, procura estar com eles quer recebendo-os em sua casa quer indo ao encontro nas visitas pastorais às Paróquias romanas. Faço-o por um duplo imperativo: porque convencido da eficácia dos religiosos na vida e na ação pastoral da Igreja em todos os seus níveis e porque profundamente consciente do valor inestimável da vida religiosa em si mesma.

1. Os religiosos na pastoral da Igreja

Que dizer a vós religiosos brasileiros – brasileiros por nascimento ou por adopção – da presença dos religiosos na acção pastoral da Igreja? Preparando-me interiormente para esta visita, debrucei-me com carinhosa atenção sobre a história da Igreja neste País e foi para mimo uma revelação descobrir quanto esta se acha, em toda sua extensão, vinculada – às vezes se diria identificada – com a incansável actividade missionária de um sem-número de religiosos de várias famílias. Religiosos são os primeiros apóstolos da terra apenas descoberta e podemos citar em homenagem a todos eles um dos maiores entre eles: aquele admirável José de Anchieta cuja beatificação realizei com íntima e particular satisfação há menos de duas semanas. Religiosos foram a maioria dos sacerdotes consagrados à evangelização dos índios, à sua educação no pleno respeito à sua identidade e, cada vez que necessário, à sua defesa mesmo com sacrifício pessoal.

Religiosos formam ainda hoje pouco mais da metade do clero brasileiro. E não sei de outro País que possa mencionar 193 religiosos entre os seus 343 bispos, entre os quais dois Cardeais da Santa Igreja, segundo estatística de 31-12-1979.

Que dizer-vos mais? Vossa presença é para a Igreja no Brasil, não um supérfluo facilmente dispensável, mas uma necessidade vital. Alguns pontos tornarão essa presença sempre mais eficaz:

– primeiro, que os religiosos sacerdotes se mostrem capazes de um leal e desinteressado entrosamento com os sacerdotes diocesanos cujas tarefas são chamados a partilhar não a título de excepção, mas de modo habitual;
– segundo, que os religiosos leigos aprendam sempre mais a inserir as próprias obras num plano de conjunto que é aquele de toda a Igreja, em nível quer diocesano, quer nacional;
– terceiro, que no espírito do documento “Mutuae Relationes”, os Superiores religiosos procurem, aceitem, cultivem diálogo franco e filial com os Pastores postos pelo Espírito de Deus para governar a sua Igreja. Neste sentido nunca se salientará demais a importância das relações entre a Conferência Nacional dos Bispos a quem compete elaborar e estabelecer os planos de pastoral para o País e a Conferência dos Religiosos que assume a tarefa de promover a vida velando para que esta se mantenha fiel às suas raízes mais profundas e ao carisma que a caracteriza.

2. A identidade da vida religiosa

E aqui tocamos no segundo aspecto: a identidade profunda da vida religiosa. Não é por ser útil à Pastoral que a Vida Religiosa tem um lugar definido na Igreja e um valor incontestável. O contrário é que é verdade: ela presta um serviço eficaz à pastoral porque e enquanto se mantém inabalavelmente fiel ao lugar que ocupa na Igreja e aos carismas que definem este lugar.

Impossível tentar aqui até mesmo um resumo de teologia da vida religiosa. Mas não será demais, quase como lembrança viva deste encontro com o Papa, recordar alguns aspectos.

O primeiro, que encontra o consenso universal e não é sequer objecto de debates, é que quando falamos de vida religiosa nos referimos a algo de muito preciso na experiência da Igreja ao menos no que concerne aos elementos essenciais.

Cada cristão tem a plena e legítima liberdade, segundo a própria consciência, de entrar ou não na vida religiosa. Mas não lhe cabe definir ou redimensionar, prescindindo da vida, da história e, repito, da bimilenar experiência da Igreja, o que é essencial na vida religiosa.

Este essencial foi há pouco tempo reafirmado pelo Concílio e por documentos consagrados à sua autêntica interpretação nesta matéria. Conheceis bem este essencial:

1) A vida religiosa é uma “schola dominici servitii”, segundo a bela fórmula de São Bento (S. Benedicti, Regula, Prol. 45), um aplicado, amoroso, perseverante aprendizado de quem só pretende uma coisa na vida: servir ao Senhor. Na perspectiva deste serviço se alinham todas as outras dimensões da vida religiosa tais como as sublinha o Concílio Vaticano II.

2) A vida religiosa, ensina o Concílio, não se coloca na Igreja no plano das estruturas institucionais (não é um grau hierárquico nem se acrescenta como um terceiro elemento entre os Pastores e os Leigos) mas na linha dos carismas e mais exactamente no dinamismo daquela santidade que é a vocação primordial da Igreja. A razão primeira pela qual um cristão se fez religioso não é para assumir na Igreja um posto, uma responsabilidade ou uma tarefa, mas para santificar-se. Esta é sua tarefa e sua responsabilidade, “o resto lhe será dado por acréscimo”. Este é seu serviço à Igreja: ela precisa desta escola de santidade para realizar concretamente sua própria vocação de santidade.

3) Se o testemunho que se espera do leigo é o da secularidade, da acção nas realidades temporais, o testemunho co-natural à vida religiosa em geral e a cada religioso em particular é o das bem-aventuranças vividas no quotidiano; o do Absoluto de Deus diante do qual tudo o mais, mesmo os mais importantes empenhos temporais, se tornam visceralmente relativos; é por conseguinte o testemunho do invisível e finalmente o da Parusia a ser vivida em esperança já nesta vida.

4) Para tudo isso revela-se importante na vida religiosa a consagração total que cada religioso fez de si mesmo a Deus pelos votos que actualizam na vida dele os conselhos evangélicos. Esta consagração total significará para ele a libertação mais profunda e genuína, mais plena, que o levará a maior comunhão com Deus e com os irmãos, maior participação na vida divina e na comunidade dos homens, a começar pela comunidade dos que com ele procura a Face de Deus.

Esta consagração total traz consigo, como consequência, uma disponibilidade total. A Igreja sempre experimentou, no curve de sua história, que podia contar com os religiosos para as mais delicadas missões.

5) De tudo o que precede decorre que um religioso não poderia não ser um homem de oração, um grande orante. Isto vale para os contemplativos, mas vale também para qualquer religioso.

À luz desse essencial, e aplicando concretamente alguns de seus aspectos, quero dizer-lhes, amados irmãos e filhos, umas poucas palavras de alento e de estímulo para vós.

Em primeiro lugar recordo que a Igreja em vários documentos recentes falou da renovação da vida religiosa. Creio supérfluo frisar que, para ser sadia e corresponder ao pensamento da Igreja e portento ao desígnio de Deus, essa renovação não pode absolutizar-se tornando-se finalidade de si mesma e prescindindo dos critérios válidos. Dois critérios, entre outros, aparecem como os mais importantes: o primeiro é que a vida religiosa (e concretamente cada comunidade religiosa) não se renova de verdade se o escopo da renovação é na prática a procura do mais fácil e mais cómodo, mas somente se esse escopo é a busca do mais autêntico e do mais coerente com as finalidades da mesma vida religiosa; o segundo critério é que a vida religiosa se renova para se tornar mais ainda caminho de santidade. Aqui se aplica de modo particularmente palpável a sentença do Senhor, de que “pelos frutos se conhece a árvore”. No que depende de nós teremos de fazer tudo para que não se possa dizer que a renovação da vida religiosa conduziu ao seu relaxamento e finalmente à sua dissolução.

A luz desses critérios, devo dizer-vos: realizai com humildade a desejada renovação da vida religiosa. Ela merece os mais sérios esforços das famílias religiosas e das Conferências de religiosos de todos os níveis.

Em segundo lugar gostaria de assinalar a originalidade da presença do religioso no mundo. Já alguma vez se esquematizou assim este ponto: há duas formas de presença ao mundo: uma física, direta, material, outra invisível e espiritual mas nem por isso menos real. Os leigos, para assegurarem sua vocação de presença física ao mundo, têm necessidade da forte selva que lhes vem justamente da presença espiritual dos religiosos e sentiriam falsa cela se, pela embriaguez do “mergulho no mundo” os religiosos acabassem por negar à Igreja a contribuição daquilo que lhes é próprio. Não é um convite à alienação; é antes um convite a pensar que na Igreja, segundo o conceito de São Paulo, continua a ser importante a nítida diferença (e não a confusão!) e a valiosa complementaridade (e não isolamento!) dos carismas e vocações. Não será jamais fecunda a longo alcance (mas o será mesmo numa linha de imediatismo?) uma presença de religiosos nos combates temporais se é a preço dos valores essenciais, mesmo os mais humildes, da vida religiosa.

Terceira reflexão: nume procura de entrosamento torna-se frequente a tentação de dissolver ao máximo, quase até à extinção, daquilo que caracteriza e dá um rosto à vida religiosa e aos religiosos. Parece evidente que isto não é positivo nem para a vida religiosa nem para o entrosamento: um sacerdote religioso imerso na pastoral ao lado de sacerdotes diocesanos, deveria mostrar claramente por suas atitudes que é religioso. A comunidade deveria poder percebê-lo. O mesmo se diria de um religioso não sacerdote ou de uma religiosa no respectivo entrosamento com leigos.

Ultima reflexão, na mesma linha da precedente: não é irreal nem remota em religiosos e religiosas a tentação de abandonar os traços característicos da própria família religiosa para se confundir com os outros e de deixar as obras que realizavam para dar-se ao que se convencionou chamar a “pastoral direta”. Os fatos parece que já começam a mostrar que a riqueza espiritual da Igreja e de seu serviço ao homem reside na variedade. Há empobrecimento e depauperamento cada vez que todos, sob pretexto de unidade ou impressionados por uma certa prioridade, se põem a fazer a mesma coisa. Oxalá os religiosos pudessem ajudar a Igreja a continuar presente nos mais vários campos da sua missão pastoral: educação, assistência, cuidado dos doentes, atendimento aos órfãos, exercício da caridade, etc.

Estou certo de que a comunidade inumana em geral, além da comunidade eclesial, será grata por isso à vida religiosa.

Não me resta senão abençoar-vos em nome do Senhor. Ao fazê-lo peço ao mesmo Senhor que vós sejais, no meio dos homens e para o bem destes, testemunhas e anunciadores das “mirabilia Dei” e das “investigabiles divitias Christi”."

Discurso do João Paolo II aos representantes da Comunidade Israelita
São Paulo, 3 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Muito me alegro por poder saudar, nos senhores, os representantes da comunidade israelita do Brasil, tão viva e operante em São Paulo, no Rio de Janeiro e noutras cidades. E agradeço-lhes de coração sua grande amabilidade em querer encontrar-se comigo, por ocasião desta viagem apostólica à grande nação brasileira. Para mim é uma feliz oportunidade para manifestar e estreitar ainda mais os laços que unem a Igreja católica e o Judaísmo, reafirmando assim a importância das relações que se desenvolvem entre nós, também aqui no Brasil.

Como os senhores sabem, a Declaração Nostra Aetate, do Concílio Vaticano II, em seu quarto parágrafo, afirma que é perscrutando o seu próprio mistério que a Igreja “recorda o vínculo que a une espiritualmente à descendência de Abraão”. Desta forma, a relação entre a Igreja e o Judaísmo não é exterior às duas religiões: é algo que se funda na herança religiosa distintiva de ambas, na própria origem de Jesus e dos Apóstolos, e no ambiente em que a Igreja primitiva cresceu e se desenvolveu. Se, apesar de tudo isso, nossas respectivas identidades religiosas nos dividam, por vezes dolorosamente, através dos séculos, isso não deverá ser obstáculo para que, respeitando essa mesma identidade, queiramos agora valorizar nossa herança comum e assim cooperar, à luz desta mesma herança, na solução dos problemas que afligem a sociedade contemporânea, necessitada da fé em Deus, da obediência à sua santa lei, da esperança ativa na vinda de seu Reino.

Fico muito contente por saber que este relacionamento e cooperação já se dão aqui no Brasil especialmente através da fraternidade Judaico-Cristã. Judeus e católicos se esforçam assim por aprofundar a comum herança bíblica, sem contudo disfarçar as diferenças que nos separam e de tal forma um renovado conhecimento mútuo poderá conduzir à uma mais adequada apresentação de cada religião no ensinamento da outra. Sobre esta base sólida poder-se-á logo construir, como já se vem fazendo, a tarefa da cooperação em benefício do homem concreto, da promoção de seus direitos, não poucas vezes conculcados, da sua justa participação na prossecução do bem comum, sem exclusivismos nem discriminações. São estes, aliás, alguns dos pontos apresentados à atenção da comunidade católica pelas “Orientações e Sugestões para a aplicação da Declaração conciliar Nostra Aetate” publicadas pela Comissão para as relações religiosas com o Judaísmo, em 1975, como também pelos parágrafos correspondentes do documento final da Conferência de Puebla (Cfr. Puebla, 1110. 1123).

Isto tornará vivo e eficaz, para o bem de todos, o valioso patrimônio espiritual que une os Judeus e os Cristãos.

Assim o desejo de todo o coração. E seja este o fruto deste encontro fraterno, com os representantes da Comunidade israelita do Brasil."

Discurso do João Paolo II aos representantes da Igreja Ortodoxa
São Paulo, 3 de Julho de 1980 - also in German, Italian & Spanish

"Amados irmãos em Cristo
1. Em nome do Senhor Jesus e dando graças por ele a Deus Pai (cf. Col 3,17) venho a este encontro convosco, dignos representantes da Igreja Ortodoxa no Brasil. Não preciso dizer-vos quanto fico feliz por esta oportunidade, no quadro de minha peregrinação apostólica pelo Brasil. Alegra-me observar pessoalmente que neste país que vos acolheu, vossas relações e vossa colaboração com a Hierarquia, o Clero e o povo católico vêm crescendo tanto mais quanto mais as duas Igrejas, Católica e Ortodoxa, se olham de novo à luz de Cristo e se redescobrem cada vez mais profundamente como Igrejas irmãs. Elas descobrem também as exigências que este fato comporta na acção pastoral de uma e outra.

2. Regressando de minha visita fraterna ao Patriarcado ecuménico, tive ocasião de ressaltar que a preocupação para com aquilo que, com muito acerto, se tem chamado o diálogo da caridade, devia tornar-se uma componente necessária dos programas pastorais de cada uma de nossas duas Igrejas, a católica e a ortodoxa O aprofundamento desta atitude fraternal, a intensificação das relações recíprocas e da colaboração entre as Igrejas criam o ambiente vital, se assim me posso exprimir, no qual pôde nascer e deve desenvolver-se o diálogo teológico até chegar a resultados que o povo cristão estará preparado para acolher. Ninguém está dispensado deste esforço. O Concílio Vaticano II o declarou com firmeza, no que concerne aos Católicos (cf. Unitatis Redintegratio, 4). O mesmo Concílio dedicou especial atenção à colaboração dos católicos com seus irmãos ortodoxos, que deixando o Oriente, vieram estabelecer-se em Países distantes da pátria de origem (cf. Ibid., 18). É justamente o que acontece aqui no Brasil, e por isso, católicos e ortodoxos são chamados a contribuir activamente para o bom êxito desta nova fase da nossa caminhada rumo à plena comunhão.

3. Também na situação brasileira, com uma urgência e uma amplidão que exigem a mais estreita colaboração entre as Igrejas, impõe-se que estas se coloquem juntas a serviço do homem. Estou certo de que não faltará essa colaboração. A luz e a força do Alto nos assistam sempre neste empreendimento, nos torne uns e outros fervorosos na oração, assíduos no conhecimento da outra Igreja, zelosos em conservar a própria identidade religiosa, respeitosos da identidade da outra.

Sem isso, ou não há diálogo ou o diálogo se revelará logo vazio e inconsistente senão falsificado.

Aqui renovo a expressão de minha admiração pelas grandes e notáveis tradições da Igreja Ortodoxa: a qualidade de seus doutores, a beleza majestosa de seu culto, o valor de seus santos, o fervor da vida monástica, como já o disse adequadamente o Concílio Vaticano II (cf. Ibid, 14-18).

Renovo a expressão de minha gratidão pelo encontro de hoje, e vos asseguro da minha profunda caridade fraterna, da minha respeitosa estima e da minha união na oração."

Homilia do Papa São João Paolo a Santa Missa na Basílica Nacional de Aparecida
Aparecida, 4 de Julho de 1980 - also in English, French, German, Italian & Spanish

“Viva a Mãe de Deus e nossa / sem pecado concebida! / Viva a Virgem Imaculada, / a Senhora Aparecida!”.

1. Desde que pus os pés em terra brasileira, nos vários pontos por onde passei, ouvi este cântico. Ele é, na ingenuidade e singeleza de suas palavras, um grito da alma, uma saudação, uma invocação cheia de filial devoção e confiança para com Aquela que, sendo verdadeira Mãe de Deus, nos foi dada por seu Filho Jesus no momento extremo da Sua vida (cf. Jo 19,26) para ser nossa Mãe.

Em nenhum outro lugar este canto adquire tanta significação e tem tanta intensidade quanto neste lugar onde a Virgem, há mais de dois séculos, marcou um encontro singular com a gente brasileira.

Com razão para aqui se voltam, desde então, os anseios desta gente, aqui pulsa, desde então, o coração católico do Brasil. Meta de incessantes peregrinações vindas de todo o País, está é, como já disse alguém, a “Capital espiritual do Brasil”.

É um momento particularmente emocionante e feliz em meu itinerário brasileiro, este em que convosco, representando aqui todo o povo brasileiro, tenho meu primeiro encontro com a Senhora Aparecida.

2. Li com religiosa atenção, preparando-me espiritualmente para esta romaria à Aparecida, a simples e encantadora narrativa da imagem que aqui veneramos. A inútil labuta dos três pescadores buscando o peixe nas águas do Paraíba, naquele longínquo 1717. O inesperado encontro do corpo e depois da cabeça da pequena imagem de cerâmica enegrecida pelo lodo. A pesca abundante que se seguiu ao achado. O culto, logo iniciado, a Nossa Senhora da Conceição sob as aparências daquela estátua trigueira, carinhosamente chamada “a Aparecida”. As graças de Deus abundantes em favor dos que aqui invocam a Mãe de Deus.

Do primitivo e tosco oratório – o “altar de paus” dos velhos documentos – à Capela que o substituiu e aos vários e sucessivos acréscimos, até à Basílica antiga de 1908, os templos materiais aqui erguidos são sempre obra e símbolo da fé do povo brasileiro e do seu amor para com a Santíssima Virgem.

Depois, são conhecidas as romarias, nas quais tomam parte, no decorrer dos séculos, pessoas de todas as classes sociais e das mais diversas e distantes regiões do País. Foram, no ano passado, mais de cinco milhões e quinhentos mil os peregrinos que por aqui passaram. O que buscavam os antigos romeiros? O que buscam os peregrinos de hoje? Aquilo mesmo que buscavam no dia, mais ou menos remoto, do Batismo: a fé, e os meios de alimentá-la. Buscam os sacramentos da Igreja, sobretudo a reconciliação com Deus e o alimento eucarístico. E voltam revigorados e agradecidos à Senhora, Mãe de Deus e nossa.

3. Multiplicando-se neste lugar as graças e benefícios espirituais, Nossa Senhora da Conceição Aparecida é solenemente coroada em 1904, e, há exatamente 50 anos, em 1930, é declarada Padroeira principal do Brasil. Mais tarde, em 1967, cabe a meu venerável Predecessor Paulo VI conceder a este Santuário a Rosa de Ouro, querendo com tal gesto honrar a Virgem e este lugar sagrado e estimular o culto mariano.

E chegamos aos nossos dias: diante da necessidade de um templo maior e mais adequado ao atendimento de romeiros sempre mais numerosos, o audacioso projeto de uma nova Basílica.

Durante anos de incessante trabalho, a imensa e corajosa empresa que foi a construção do imponente edifício. E hoje, superadas não poucas dificuldades, a esplêndida realidade que podemos contemplar. A ela ficarão ligados muitos nomes de arquitetos e engenheiros, de humildes operários, de generosos benfeitores, de sacerdotes consagrados ao Santuário. Um nome avulsa entre todos e simboliza todos: o do meu irmão Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, grande incentivador deste novo templo, casa materna e solar da Rainha, Nossa Senhora Aparecida.

4. Venho, pois, consagrar esta Basílica, testemunho da fé e devoção mariana do povo brasileiro; e o farei com comovida alegria, após a celebração da Eucaristia.

Este templo é morada do “Senhor dos senhores e Rei dos reis”(cf. Ap 17, 14). Nele, tal a Rainha Ester, a Virgem Imaculada, que “conquistou o coração” de Deus e em quem “grandes coisas” fez o Onipotente (cf. Est 5, 5; Lc 1, 49), não cessará de acolher numerosos filhos e interceder por eles: “Salva meu povo, eis o meu desejo”(cf. Est 7, 3).

O edifício material, que abriga a presença real, eucarística do Senhor, e onde se reúne a família dos filhos de Deus a oferecer com Cristo os “sacrifícios espirituais”, feitos de alegrias e sofrimentos, de esperanças e lutas, é símbolo também de um outro edifício espiritual, em cuja construção somos convidados a entrar como pedras vivas (cf. 1Pd 2, 5). Como dizia Santo Agostinho, “esta é, de fato, a casa das nossas orações: mas nós próprios somos casa de Deus. Somos construídos como casa de Deus neste mundo e seremos dedicados solenemente no fim dos tempos. O edifício, ou melhor, a construção fez-se com fadiga; a dedicação realiza-se com alegria”(cf. S. Agostinho, Sermo 336,1.6: PL 38,1471-72).

5. Este templo é imagem da Igreja. Igreja que, “à imitação da Mãe do seu Senhor, conserva pela graça do Espírito Santo virginalmente íntegra a fé, sólida a esperança e sincera a caridade” (Lumen Gentium, 64).

Figura desta Igreja é a mulher que o vidante de Patmos contemplou e descreveu no texto do Apocalipse há pouco escutado na segunda leitura. Nesta mulher, coroada de doze estrelas, a piedade popular através dos tempos viu também Maria, a Mãe de Jesus. De resto, como lembrava Santo Ambrósio e como declara a “Lumen Gentium”, Maria é ela própria figura da Igreja.

Sim, amados irmãos e filhos, Maria – a Mãe de Deus – é modero para a Igreja, é Mãe para os remidos. Por sua adesão pronta e incondicional à vontade divina que Lhe foi revelada, torna-se Mãe do Redentor (cf. Lc 1,32), com uma participação íntima e toda especial na história da Salvação. Pelos méritos de Seu Filho, é Imaculada em sua Conceição, concebida sem a mancha original, preservada do pecado e cheia de graça.

Diante da fome de Deus que hoje se adivinha em muitos homens, mas também diante do secularismo que, às vezes imperceptível como o orvalho, outras vezes violento como o ciclone, arresta a tantos, somos chamados a construir Igreja.

6. O pecado retira Deus do lugar centrai que Lhe é devido na história dos homens e na história pessoal de cada homem. Foi a tentação primeira: “E vos tornareis como Deus”(cf. Gen 3, 5). E depois do pecado original, prescindindo de Deus, o homem encontra-se submetido à tensão, esquartejado nas suas opções entre o Amor “que vem do Pai” e “o amor que não vem do Pai, mas do mundo”(cf. 1 Jo 2,15-16) e, pior ainda, o homem torna-se um estranho para si mesmo, optando pela “morte de Deus” que traz em si fatalmente também a morte do homem (cf. João Paulo II, Mensagem Urbi et Orbi para a Páscoa de 1980, 4).

Ao confessar-se “serva do Senhor” (cf. Lc 1,38) e ao pronunciar o seu “sim”, acolhendo “em seu coração e em seu seio” (cf. S. Agostinho, De Virginitate, 6: PL 40,399). O mistério de Cristo Redentor, Maria não foi instrumento meramente passivo nas mãos de Deus, mas cooperou na salvação dos homens com fé livre e inteira obediência. Sem nada tirar ou diminuir e nada acrescentar à ação daquele que é o único Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, Maria nos aponta as vias da Salvação, vias que convergem todas para Cristo, seu Filho, e para a sua obra redentora.

Maria nos leva a Cristo, como afirma com precisão o Concílio Vaticano II: “A função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; antes, manifesta a sua eficácia... e de nenhum modo impede o contato imediato dos fiéis com Cristo, antes o favorece” (Lumen Gentium, 60).

7. Mãe da Igreja, a Virgem Santíssima tem uma presença singular na vida e ação desta mesma Igreja. Por isso mesmo, a Igreja tem os olhos sempre voltados para Aquela que, permanecendo virgem, gerou, por obra do Espírito Santo, o Verbo feito carne. Qual é a missão da Igreja senão a de fazer nascer o Cristo no coração dos fiéis (cf. Ibidem, 65), pela ação do mesmo Espírito Santo, através da evangelização? Assim, a “Estrela da Evangelização”, como lhe chamou o meu Predecessor Paulo VI, aponta e ilumina os caminhos do anúncio do Evangelho. Este anúncio de Cristo Redentor, de sua mensagem de Salvação, não pode ser reduzido a um mero projeto inumano de bem-estar e felicidade temporal. Tem certamente incidências na história inumana coletiva e individual, mas é fundamentalmente um anúncio de libertação do pecado para a comunhão com Deus, em Jesus Cristo. De resto, esta comunhão com Deus não prescinde de uma comunhão dos homens uns com os outros, pois os que se convertem a Cristo, autor da Salvação e princípio de unidade, são chamados a congregar-se em Igreja, sacramento visível desta unidade salvífica (cf. Ibidem, 9).

Por tudo isso, nós todos, os que formamos a geração hodierna dos discípulos de Cristo, com total aderência à tradição antiga e com pleno respeito e amor pelos membros de todas as comunidades cristãs, desejamos unir-nos a Maria, impelidos por uma profunda necessidade da fé, da esperança e da caridade (cf. Redemptor Hominis, 22). Discípulos de Jesus Cristo neste momento crucial da história inumana, em plena adesão à ininterrupta Tradição e ao sentimento constante da Igreja, impelidos por um íntimo imperativo de fé, esperança e caridade, nós desejamos unir-nos a Maria. E queremos fazê-lo através das expressões da piedade mariana da Igreja de todos os tempos.

8. O amor e a devoção a Maria, elementos fundamentais na cultura latino-americana (cf. João Paulo II, Homilia no Santuário de Nossa Senhora de "Zapopán”, México, 30 de Janeiro de 1979), são um dos traços característicos da religiosidade do povo brasileiro. Estou certo de que os Pastores da Igreja saberão respeitar esse traço peculiar, cultivá-lo e ajudá-lo a encontrar a melhor expressão, a fim de realizar o rema: chegar “a Jesus por Maria”. Para isso não seria inútil ter presente que a devoção à Mãe de Deus contém uma alma, algo de essencial, encarnada em múltiplas formas externas. O que há de essencial é permanente e inalterável, permanece elemento intrínseco do culto cristão e, se retamente entendido e realizado, constitui na Igreja, como frisava meu Predecessor Paulo VI, “um excelente testemunho de sua norma de ação (lex orandi) e um convite a reavivar nas consciências a sua norma de fé (lex credendi). As formas externas são, por natureza, sujeitas ao desgaste do tempo e, como declarava o mesmo saudoso Paulo VI, precisam de uma constante renovação e atualização, realizadas aliás em total respeito à Tradição”(Paulo VI, Marialis Cultus, 24).

9. E vós, devotos de Nossa Senhora e romeiros de Aparecida, aqui presentes e os que nos acompanham pela rádio e pela televisão: conservai zelosamente este terno e confiante amor à Virgem, que vos caracteriza. Não o deixeis nunca arrefecer! Não seja um amor abstrato, mas incarnado. Sede fiéis àqueles exercícios de piedade mariana tradicionais na Igreja: a oração do Angelus, o mês de Maria e, de maneira toda especial, o Rosário. Quem dera renascesse o belo costume – outrora tão difundido, hoje ainda presente em algumas famílias brasileiras – da reza do terço em família.

Sei que, há pouco tempo, em lamentável incidente, despedaçou-se a pequenina imagem de Nossa Senhora Aparecida. Contaram-me que entre os mil fragmentos foram encontradas intactas as duas mãos da Virgem unidas em oração. O fato vale como um símbolo: as mãos postas de Maria no meio das ruínas são um convite a seus filhos a darem espaço em suas vidas à oração, ao absoluto de Deus, sem o qual tudo o mais perde sentido, valor e eficácia. O verdadeiro filho de Maria é um cristão que reza.

A devoção a Maria é fonte de vida cristã profunda, é fonte de compromisso com Deus e com os irmãos. Permanecei na escola de Maria, escuta) a sua voz, segui os seus exemplos. Como ouvimos no Evangelho, ela nos orienta para Jesus: “Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5). E, como outrora em Caná da Galiléia, encaminha ao Filho as dificuldades dos homens, obtendo d’Ele as graças desejadas.

Rezemos com Maria e por Maria: Ela é sempre a “Mãe de Deus e nossa”.

Senhora Aparecida, um filho vosso
que vos pertence sem reserva - totus tuus! -
chamado por misterioso Desígnio da Providência a ser Vigário de Vosso Filho na terra,
quer dirigir-se a Vós, neste momento.


Ele lembra com emoção, pela cor morena
desta Vossa imagem, uma outra representação Vossa,
a Virgem Negra de Jasna Gora!


Mãe de Deus e nossa,
protegei a Igreja, o Papa, os Bispos, os Sacerdotes
e todo o Povo fiel; acolhei sob o vosso manto protetor
os religiosos, religiosas, as famílias,
as crianças, os jovens e seus educadores!


Saúde dos Enfermos e Consoladora dos Aflitos,
sede conforto dos que sofrem no corpo ou na alma;
sede luz dos que procuram Cristo,
Redentor do Homem; a todos os homens
mostrai que sois a Mãe de nossa confiança.


Rainha da Paz e Espelho da Justiça,
alcançai para o mundo a paz,
fazei que o Brasil tenha paz duradoura,
que os homens convivam sempre como irmãos,
como filhos de Deus!


Nossa Senhora Aparecida,
abençoai este vosso Santuário e os que nele trabalham,
abençoai este povo que aqui ora e canta,
abençoai todos os vossos filhos,
abençoai o Brasil. Amém.

Consagração do povo brasileiro a Nossa Senhora Aparecida pelo Papa São João Paulo II
Aparecida, 4 de Julho de 1980 - also in English, French, German, Italian & Spanish

“Nossa Senhora Aparecida!
Neste momento tão solene, tão excepcional, quero abrir diante de Vós, ó Mãe, o coração deste povo, no meio do qual quisestes morar de um modo tão especial – como no meio de outras nações e povos – assim como no meio daquela nação da qual eu sou filho. Desejo abrir diante de Vós o coração da Igreja e o coração do mundo ao qual esta Igreja foi enviada pelo vosso Filho. Desejo abrir-Vos também o meu coração.

Nossa Senhora Aparecida! Mulher revelada por Deus, que haveríeis de esmagar a cabeça da serpente (cf. Gên 3,15) na vossa Conceição Imaculada! Eleita desde toda a eternidade para ser a Mãe do Verbo Eterno, o qual, pela anunciação do Anjo, foi concebido no vosso seio virginal como Filho do Homem e verdadeiro Homem!

Unida mais estreitamente ao mistério da redenção do homem e do mundo, ao pé da cruz, no Calvário!

Dada como Mãe a todos os homens, sobre o Calvário, na pessoa de João, Apóstolo e Evangelista!

Dada como Mãe a toda a Igreja, desde a comunidade que se preparava para a vinca do Espírito Santo, à comunidade de todos os que peregrinam sobre a terra, no decorrer da história dos povos e nações, dos países e continentes, das épocas e gerações! ...

Maria! Eu Vos saúdo e Vos digo “Ave” neste santuário, onde a Igreja do Brasil Vos ama, Vos venera e Vos invoca como Aparecida, como revelada e dada particularmente a ele! Como sua Mãe e Padroeira! Como Medianeira e Advogada junto ao Filho de quem sois Mãe! Como modelo de todas as almas possuidoras da verdadeira sabedoria e, ao mesmo tempo, da simplicidade da criança e daquela entranhada confiança que supera toda fraqueza e sofrimento!

Quero confiar-Vos de modo particular, este Povo e esta Igreja, todo este Brasil, grande e hospitaleiro, todos os vossos filhos e filhas, com todos os seu problemas a angústias, trabalhos e alegrias. Quero fazê-lo como Sucessor de Pedro e Pastor da Igreja universal, entrando nesta herança de veneração e amor, de dedicação e confiança que, desde séculos, fez parte da Igreja do Brasil e de quantos a formam, sem olhar as diferenças de origem, raça ou posição social, e onde quer que habitem neste imenso país. Todos eles, em este momento, voltados para Fortaleza, se interrogam: para onde vais?

O Mãe! Fazei que a Igreja seja para este povo brasileiro sacramento de salvação e sinal da unidade de todos os homens, irmãos e irmãs de adopção do vosso Filho e filhos do Pai do Céu!

O Mãe! Fazei que esta Igreja, e exemplo de Cristo, servindo constantemente o homem, seja a defensora de todos, em particular dos pobres e necessitados, dos socialmente marginalizados e espoliados. Fazei que a Igreja do Brasil esteja sempre a serviço da justiça entre os homens e contribua ao mesmo tempo para o bem comum de todos e para a paz social.

O Mãe! Abri os corações dos homens e dai a todos a compreensão de que somente no espírito do Evangelho e seguindo o Mandamento do Amor e as bem-aventuranças do Sermão da Montanha será possível construir um mundo mais humano, no qual será valorizada verdadeiramente a dignidade de todos os homens.

O Mãe! Dai à Igreja, que nesta terra brasileira realizou no passado uma grande obra de evangelização e cuja história é rica de experiências, que, com novo zelo e amor pela missão recebida de Cristo, realize as suas tarefas de hoje.

Concedei-lhe para este fim numerosas vocações sacerdotais e religiosas, para que todo o Povo de Deus possa beneficiar-se do ministério dos dispensadores da Eucaristia e das testemunhas do Evangelho.

O Mãe! Acolhei em vosso coração todas as famílias brasileiras! Acolhei os adultos e os anciãos, os jovens e as crianças! Acolhei também os doentes e todos aqueles que vivem na solidão!

Acolhei os trabalhadores do campo e da indústria, os intelectuais nas escolas e universidades, os funcionários de todas as instituições. Protegei-os a todos!

Não cesseis, ó Virgem Aparecida, pela vossa mesma presença, de manifestar nesta terra que o Amor é mais forte que a morte, mais poderoso que o pecado! Não cesseis de mostrar-nos Deus, que amou tanto o mundo, a ponto de entregar o seu Filho Unigénito, para que nenhum de nós pereça, mas tenha a vida eterna! (cf. Jo 3,16). Amém."

Encontro do Papa São João Paulo II com o Cardeal Carlos Motta
Aparecida, 4 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“Eminentíssimo Senhor Cardeal e amado Irmão
1. Minha visita a Aparecida não estaria completa se faltasse este encontro, mesmo breve. Vossa Eminência está ligado a este lugar sagrado não somente por quase vinte anos de pastoreio, mas também pelas vultosas obras que trazem a marca de sua atividade e a maior delas é certamente a majestosa Basílica que, com emoção de todos nós, tive a alegria de consagrar esta manhã. Com Vossa Eminência agradeço à Providência Divina que lhe concede a alegria de coroar junto a um Santuário mariano sua vida de sacerdote, começada junto a um outro Santuário mariano a então humilde igreja que, no alto da Serra da Piedade serve de escrínio à venerada imagem da Mãe das Dores, padroeira do Estado natal de Vossa Eminência, a querida Minas Gerais.

2. Às vésperas do dia 16 de julho em que, sob o olhar de Nossa Senhora do Carmo, Vossa Eminência celebrará 90 anos de fecunda existência, eu gostaria de evocar sua longa existência de homem da Igreja: Reitor do Seminário em Belo Horizonte, Bispo Auxiliar em Diamantina, Arcebispo de São Luís do Maranhão, Arcebispo de São Paulo por dois decênios, Cardeal da Santa Igreja, Arcebispo de Aparecida.

Quero ao menos associar-me a Vossa Eminência, e aos milhares de pessoas que receberam o benefício de sua ação de sacerdote e de bispo, numa fervorosa ação de graças. Seja portadora do nosso “Te Deum laudamus” a Virgem Aparecida, de cuja devoção Vossa Eminência foi ardente e sincero incentivador.

3. Possa a presença destes jovens que se preparam ao sacerdócio renovar constantemente no seu espírito a alegria e o fervor do seu exemplar ministério sacerdotal. Agradeço-lhe em nome de muitos pelo exemplo que Vossa Eminência sempre deu, de fidelidade à Sé Apostólica, de piedade sacerdotal, de amor a Deus e à Igreja.

Parabéns, Senhor Cardeal. Seja penhor de serenidade, esperança e conforto ao longo dos anos que o Senhor quiser lhe conceder a Bênção Apostólica que de todo o coração quero dar a Vossa Eminência."

Discurso do Papa São João Paulo II no encontro com os Seminaristas
Basílica de Aparecida, 4 de Julho de 1980 - also in French, Italian & Spanish

“Meus caros Seminaristas
1. Encontrando-me com vocês, esta tarde, no quadro de minha peregrinação à Aparecida, minha memória me reconduz espontaneamente ao meu próprio Seminário e ao tempo de minha formação para o Sacerdócio. Não me envergonho de dizer que me lembro com saudade daqueles anos de Seminário. Com uma comovida homenagem aos bons sacerdotes que com imenso zelo, entre não poucas dificuldades, me prepararam para ser padre, penso que foram anos decisivos para o ministério que o Senhor me reservava para o futuro. Por isso mesmo este encontro aqui à sombra do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, nesta atmosfera de cordialidade, de comunhão e de viva esperança, me traz emoção e alegria. Não preciso de muitas palavras para dizer-lhes minha grande afeição por vocês e o meu sincero desejo de alimentar e animar as suas santas aspirações, as suas certezas e os seus propósitos. Vocês ocupam um lugar multo especial no coração do Papa como no coração da Igreja. Em vocês, quero cumprimentar os aspirantes ao sacerdócio de todo o Brasil.

2. Vendo-os ao meu redor como vi antes tantos seminaristas no México, na Irlanda ou nos Estados Unidos, o meu pensamento, iluminado pela Fé, se dirige como que insensivelmente para a realidade misteriosa e visível ao mesmo tempo da Igreja de Deus. Jesus Cristo, Pastor Eterno, realizando a redenção da humanidade, constituiu o Povo da Nova Aliança. Para que a este Povo não faltassem guias e pastores, enviou os Apóstolos, como Ele próprio tinha sido enviado pelo Pai.

Por meio dos Apóstolos, Jesus Cristo, “Cabeça do Corpo, que é a Igreja”(Col 1,18), tornou participantes da sua consagração e da sua missão os sucessores deles, isto é, os Bispos. Estes, por sua vez, repartiram as funções do próprio ministério e as confiram em primeiro lugar aos Presbíteros.

Unidos aos Bispos na dignidade sacerdotal, os Presbíteros são consagrados pelo sacramento da Ordem para anunciar o Evangelho, guiar o Povo de Deus, celebrar a Liturgia, como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento (Lumen Gentium, 18. 28).

Meditando sobre esta disposição da vontade de Deus, que de tal modo constituiu a Igreja, obra de suas mãos e não invenção dos homens, compreendemos sempre melhor como na mesma Igreja, assim como não pode haver Pastores sem Povo, assim também não pode haver Povo sem Pastores. A continuidade da missão apostólica foi garantida por Aquele que fundou a Igreja com estas palavras: “Ide e ensinai a todos os povos... Eu estou convosco até o fim do mundo” (Lc 1,38). Para traduzir em realidade este mandato perene, o próprio Jesus Cristo continua a chamar os seus colaboradores no íntimo de suas consciências, enquanto que os Pastores da Igreja reconhecem a legitimidade desta vocação interior, com a vocação pública às Sagradas Ordens.

3. Mas o chamado divino, como aquele que o Anjo dirigiu à Virgem Maria no dia da Anunciação, respeita a liberdade e aguarda a resposta consciente: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.

Por isso, é preciso que o chamado pessoal seja esclarecido, para que a voz do Senhor não passe despercebida. É preciso que ele seja estimulado e protegido, para que a resposta livre não seja embaraçada pelas hesitações interiores, nem sufocada pelas hesitações interiores, nem sufocada pelas dificuldades do mundo. A realidade do mistério da eleição divina compreende, portanto, a responsabilidade da cooperação de cada um, e, ao mesmo tempo, a actuação discreta dos que devem acompanhar e ajudar a formação dos jovens.

4. O chamado de Deus, meus caros seminaristas, é verdadeiramente sublime, pois se refere ao serviço mais importante do Povo de Deus. É o sacerdote quem torna sacramentalmente presente entre os homens a Cristo, o Redentor do homem. “Dele depende tanto a primeira proclamação do Evangelho, que reúne a Igreja, como a incessante renovação da Igreja reunida” (Synodi Episcoporum, De Sacerdotio Ministeriali). Se viesse a faltar a presença e a acção daquele ministério que se recebe pela imposição das mãos, faltaria à Igreja a plena certeza da própria fidelidade e da própria continuidade visível. Anunciando o Evangelho, guiando a comunidade, perdoando os pecados e sobretudo celebrando a Eucaristia, o sacerdote torna presente Cristo-Cabeça no exercício vivo da sua obra redentora. Ele age “in persona Christi”, ele fez as vezes de Cristo, quando derrama e renova existencialmente nas almas a vida do Espírito.

5. É para esta missão e função que vocês se preparam no Seminário. Exorto-os pois a considerar em toda a sua importância este período que vocês estão vivendo. É importante pela formação doutrinal que vocês devem receber, para serem deveras mestres da verdade e educadores na fé do Povo de Deus. Mas importante sobretudo pela formação inumana e espiritual. O “homo Dei” que vocês deverão ser (cf. 1Tm 6,11) ou é gestado neste tempo de seminário ou não o será nunca mais. As virtudes evangélicas típicas do sacerdote é aqui no seminário que as aprendemos a viver. Não seja para vocês um tempo vão mas frutuoso.

Por outro lado, diante da grandeza da vocação sacerdotal, vocação insubstituível que empenha em profundidade aquele que a recebe, convido-os a tomar consciência da predilecção que ela significa da parte de Cristo Jesus. Elevemos ao “Senhor da messe” a nossa confiante oração, para que neste imenso Brasil muitos jovens tenham abertura de consciência para perceber a disponibilidade para acolher, entusiasmo para seguir o chamado amigo que Ele lhes dirige.

6. Nos últimos seis anos, foram abertos no Brasil quinze novos Seminários Maiores, do clero secular e regular. Só no ano passado, cinco Seminários Maiores e quatro Menores. Este atual aumento do número de vocações é um fenómeno reconfortante, fruto da aço da Providência e da generosa correspondência dos que são chamados. Mas o fato é que o número de sacerdotes é de apenas um para cada vinte mil habitantes, se se consideram apenas os sacerdotes do clero secular, e de um para dez mil, se se consideram também os do clero regular. Não há dúvida que é ainda multo pouco, diante das enormes e urgentes exigências dos fiéis. Por isso, é dever de todos nós rezar com fervor e perseverança ao Senhor de todos os dons.

Confio a Nossa Senhora Aparecida cada um de vocês e todos os jovens deste querido Brasil chamados ao Sacerdócio. Pedindo à Mãe da Igreja que os anime e fortaleça no testemunho de uma resposta alegre, coerente e generosa, dou-lhes de todo o coração a Bênção Apostólica."

Saudação do Papa JPII no encontro com o Cardeal Vicente Scherer
Porto Alegre, 4 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“1. Agradeço de coração ao amado Pastor desta Arquidiocese, o caríssimo Cardeal Vicente Scherer pelas nobres palavras que me dirigiu e nas quais reencontro as virtudes que nele já conheço: simplicidade, sinceridade, absoluta fidelidade ao Sucessor de Pedro.

Dessas palavras deduzo que esperáveis todos por este momento. Posso dizer-lhes que esperei eu também, ansiosamente, por este dia que, no correr de minha peregrinação pelo Brasil, viria encontrar-vos em Porto Alegre. Louvado seja Deus por esta oportunidade.

Ao lado do Eminentíssimo Cardeal Scherer saúdo seus Bispos Auxiliares. Saúdo meus irmãos Bispos da Província Eclesiástica do Rio Grande do Sul. Saúdo os sacerdotes, diáconos, religiosos, aqui presentes. Saúdo os fiéis de todas as procedências, idades e condições. Uma saudação particular aos que vieram de mais longe – do vizinho Estado de Santa Catarina, que não tive a possibilidade de visitar desta vez, da Argentina e do Uruguai – para ver o Papa. Eu sei que não é a minha pessoa que conta: conta a missão que o Senhor quis confiar-me. Sinto-me feliz de saber que, para além do Papa, é ao Sucessor de Pedro e portanto ao próprio Pedro, é ao Vigário de Cristo e portanto ao próprio Cristo, que vão as vossas homenagens. A Ele somente o louvor e a glória pelos séculos sem fim.

2. Venho pois como Pastor da Igreja universal, para conhecer de perto as ovelhas que o Bom Pastor, nos seus desígnios de amor, me confiou. Venho como Sucessor de Pedro, para dar continuidade à sua missão de confirmar os irmãos. Venho como Vigário de Jesus Cristo, portador de sua bênção e de sua paz.

Sei que a fé se encontra profundamente arraigada em vossa terra e é vivida com intensidade em vossos corações.

Sei também que o segredo da grande vitalidade nesta fé reside nas famílias cristãmente constituídas e nos missionários, sacerdotes de grande valor, que há mais de um século evangelizaram em profundidade esta região.

Para sermos testemunhos convincentes de Jesus Cristo, importa procurar uma autenticidade sempre maior, importa sermos firmes na fé. Ora, penso – e procurei explicá-lo em minha exortação apostólica “Catechesi Tradendae” que em nossos dias não há possibilidade de sobrevivência e irradiação da fé, sem um aprofundamento desta mesma fé. Vale dizer sem uma catequese adequada às circunstâncias mas sempre conforme com o sentir da Igreja. Não quero por isso, deixar passar esta oportunidade sem exortar-vos, vós Pastores, Bispos e Presbíteros; vós pais e mães de família; vós professores, a um corajoso e perseverante esforço de catequese para crianças, jovens e adultos.

3. Uma palavra de amizade ao Presbitério tão amplamente aqui representado. Não preciso de muitas palavras para dizer-vos que estais no coração do Papa: ele reza sempre por vós e para vós pede do Senhor a graça da fidelidade ao dom um dia recebido, para fazer de cada um de vós um “sacerdos in aeternum”. Vivei o mistério da unidade da Igreja, permanecendo unidos aos vossos Bispos, “como as cordas à cítara”, para retomar a expressiva comparação de Santo Inácio de Antioquia. Este é o segredo da fecundidade apostólica do presbítero.

E que dizer aos religiosos e religiosas: vós ocupais um lugar que é só vosso no Corpo de Cristo que é a Igreja. Sois a expressão e deveis ser a concretização da sua vocação de santidade. Deus abençoe vossa vida, fazendo-a frutificar no seu amor, o que será sem dúvida em benefício de vossos irmãos.

Aqui em vossa cidade pretendo encontrar-me com um grupo de vocacionados e com seus formadores.

Na grata expectativa deste encontro, basta-me por agora dizer-vos que a Igreja deve ter sempre na alma uma profunda compaixão: há uma multidão “cansada e abatida como ovelhas sem pastor”; e uma oração: “Manda, Senhor, operários para a tua messe” (Cf. Mt 9, 36-38).

Sei que vosso Estado é rico em vocações e, convosco, agradeço ao Senhor. Desejo que saibais sempre apreciar este dom, assumir estas vocações, ajudá-las a amadurecer no amor a Deus e na fidelidade incondicional à Igreja, para o bem de toda a comunidade.

Deus abençoe vossas famílias, portadoras de belas tradições, centros de irradiação de valores cristãos e celeiros de nutridas vocações.

4. Por fim, saúdo a todo o povo de Porto Alegre e do Estado do Rio Grande do Sul. Viveis aqui a harmonia do encontro de tantas raças, fundidas em autêntica brasilidade. Sois uma lição viva de que é possível ao homem viver em fraternidade com o seu semelhante.

Desta Arquidiocese que nasceu com o título e sob o patrocínio do Apóstolo São Pedro, o sucessor do mesmo Pedro cumprimenta a todos e para todos invoca as bênçãos de Deus, mas sobretudo, para os anciãos, os enfermos, os que sofrem no corpo ou na alma, para as criancinhas... A todos o Papa abraça com sincero afeto. Por todos o Papa reza, a todos os Papa abençoa.

Que a Virgem Maria, “Madre de Deus” – como a invocais com amor em vossa Catedral – vos ajude e vos conduza a seu Filho amado."

Discurso do Papa São João Paulo II em um Encontro Ecuménico
Porto Alegre, 4 de Julho de 1980 - also in German, Italian & Spanish

“Caríssimos irmãos no Senhor,
“Oh! como é bom e agradável estarem os irmãos reunidos”. (Sal 133,1)

1. É este sentimento que me domina a alma ao compartilhar com os senhores, representantes de muitas comunidades evangélicas no Brasil, este momento espiritual de oração e de encontro no Senhor. É Ele, com efeito, quem nos une com sua graça, e quem, por seu Santo Espírito, nos dá, a uns e outros, a força para proclamarmos diante do mundo e “publicamente, a Jesus Cristo como Deus e Senhor e único Mediador entre Deus e os homens, para glória do único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo” (Unitatis Redintegratio, 20).

Se muitas coisas ainda nos separam, no plano da fé e do agir cristão, isso, longe de deixar-nos indiferentes ou, ainda pior, de fechar-nos em nós mesmos, deverá levar-nos, e de fato já nos leva, a procurar mais intensa e mais fielmente a união plena, através de conversações e encontros, através do diálogo sincero e leal, através do testemunho comum dado em favor de Senhor de todos e, sobretudo, através da oração constante. A Semana da Unidade, que de há alguns anos se tornou usual em nossas Igrejas, é um momento inclusive de compartilhar esta oração. Não foi em vão que disse o Senhor: “Onde se acham dois ou três reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles (Mt 18, 20).

2. Sabemos que, em muitos cristãos do Brasil, existe também esta consciência dos elementos de união já existentes e esta vontade ardente de chegar à união que ainda esperamos. Graças a isso foi possível estabelecer aqui, entre algumas Igrejas e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, um projeto criando um Conselho Nacional das Igrejas com a finalidade de manter um quadro estável para o diálogo e a colaboração, para com o intuito de um incessante trabalho à procura da união entre os cristãos.

Congratulo-me por esta realização, que pode ser prelúdio de outras iniciativas na mesma direção.

Podem, assim, os cristãos dar, juntos, um renovado testemunho de sua fé no Senhor e de sua comum esperança, enquanto se esforçam também em comum, segundo a vocação específica dos discípulos de Cristo, para que as exigências dessa mesma fé, fonte de caridade e de justiça, se traduzam na vida concreta, particular e pública, de vossa nação.

Não posso, por isso, deixar de mencionar aqui o que se fez, no âmbito de colaboração entre cristãos, em favor dos direitos humanos e de sua plena vigência. E, ao dizer isto, refiro-me não só a certas e importantes iniciativas no plano da apresentação e fundamentação evangélica de tais direitos, mas também ao trabalho cotidiano, em tantos lugares e circunstâncias tão diversas, pela defesa e promoção de homens e mulheres, especialmente dos mais pobres e esquecidos, que a sociedade atual tende frequentemente a abandonar a si próprios e a marginalizar, como se não existissem ou como se sua existência não contasse. “O caminho da Igreja é, na verdade, o homem”, como pretendi explicar em minha primeira Encíclica “Redemptor Hominis” (n. 14). Desta forma, põem-se também em prática diversas orientações fundamentais do Documento de Puebla, recolhidas no capítulo sobre o diálogo e em outros textos.

3. Não desejo concluir este encontro fraterno sem recordar que, há poucos dias, celebram-se os quatrocentos e cinquenta anos da publicação da assim chamada Confissão de Ausburgo. Conheço bem a importância deste texto para muitas comunidades eclesiais, nascidas da Reforma, e são para mim motivo de sincera satisfação o interesse e a ressonância que esta celebração encontrou na Igreja Católica. O Senhor faça que isto contribua ainda mais para aclarar os caminhos para a união, de que falávamos no começo.

Caríssimos irmãos, nossa responsabilidade como cristãos é muito grande, diante de nosso comum Senhor, diante dos homens concretos, com os quais temos que tratar, e diante de nós mesmos.

Não a podemos ignorar nem, menos ainda, ser-lhe infiéis. Peçamos juntos a Nosso Senhor a graça de sermos, também nós, “testemunhas fiéis e verdadeiras”(Apoc. 1, 5; 3, 14), para que o possamos ser plenamente, um dia, na união perfeita, à imagem da Trindade divina (cf. Jo 17, 22-23) e para sua glória."

Homilia do Papa São João Paulo II na Santa Missa para os Catequistas
Porto Alegre, 5 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“Veneráveis Irmãos, filhos diletíssimos!
1. Laudetur Iesus Cristus! (Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!). É com estas palavras de saudação cristã que desejo dirigir-me a vós neste encontro marcado pela Providência no programa de minha viagem pelo Brasil, nesta hora de plenitude espiritual.

Agradeço-vos o conforto que me proporciona este vosso acolhimento tão afetuoso e cordial. Não vos detenhais, no entanto, em minha humilde pessoa. Elevem-se, antes, os vossos corações até Aquele que ela representa e serve, o Senhor Jesus Cristo. em seu nome que venho a vós. A Ele, que daqui a pouco baixará a este altar, toda a honra e glória, particularmente neste dia iluminado pelo suave e pacífico triunfo eucarístico em terras do Brasil.

Vindo ao encontro de um desejo vosso, talvez nem mesmo manifestado, quisera responder, antes de tudo, a algumas perguntas que, mais ou menos conscientemente, devem ter aflorado ao vosso coração: Por que o Papa veio de tão longe até nós? Quais os motivos que o levaram a isto?

Pois bem, filhos diletíssimos, a razão é esta: vim para conhecer-vos melhor, para escutar-vos, para entrar em diálogo convosco, para mostrar-vos que a Igreja está perto de vós e partilha os vossos problemas, as vossas dificuldades e sofrimentos, as vossas esperanças. Sou o primeiro Papa que chega a esta terra belíssima. Então, vim ainda para agradecer convosco ao Senhor pelo dom inestimável que vos foi concedido, a fé católica. O vosso maravilhoso país, onde a natureza derramou imensas riquezas, é um país jovem, aberto ao futuro, de impressionante pujança em todos os setores da vida humana. A vossa riqueza maior, porém, é o patrimônio religioso e moral da vossa tradição cristã. Este patrimônio não só merece ser conservado a todo custo, mas, mais do que isto, deve inserir-se no movimento ascensional da Nação, deve ser a sua alma, a fim de que, como tem sido católico o substrato da vossa história de ontem, assim seja também cristãmente vivo e operante o espírito de vossa sociedade de hoje.

Cumprindo a missão recebida por Pedro e seus sucessores, vim para confirmar-vos na fé. Ouvimos na segunda leitura que Paulo percorria as cidades já evangelizadas, exortando os cristãos a observarem a doutrina apostólica e confirmando-os na fé recebida (cf. At 16, 4-5). Peço a Deus que esta minha viagem apostólica tenha para vós o mesmo sentido e obtenha o mesmo resultado.

Por isso, filhos diletíssimos, os melhores votos que posso fazer-vos, a diretriz que desejo deixar-vos como lembrança desta minha viagem, são as palavras de São Pedro às comunidades da Igreja nascente. Permanecei firmes na fé (1Pd 5, 9): firmes na adesão interior, plena e sincera ao Evangelho; e firmes na proclamação exterior, isenta de qualquer intemperança ou desrespeito para com as opiniões alheias, mas franca, corajosa, coerente, perseverante, digna da fé dos vossos pais.

2. Sois uma Nação que hoje se encontra em fase de transformação febril. E isto traz consigo não pequenas mutações, bem o sabeis, não só quanto ao aspecto exterior do País, mas ainda mais quanto ao interior da vida e dos costumes do povo.

Estarão os cristãos do Brasil preparados a enfrentar o choque provocado por esta passagem das velhas às novas estruturas econômicas e sociais? A sua fé estará em condições de permanecer inabalável?

Em outros tempos, a muitos bastava um padrão modesto de instrução elementar e aquela sincera religiosidade popular, enraizada tão profundamente com suas várias expressões no contexto social e cultural de vossa Nação.

Hoje não é mais assim. A difusão da cultura, o espírito crítico, a publicidade dada a todas as questões, os debates, exigem um conhecimento mais completo e aprofundado da fé. A própria religiosidade popular deve ser alimentada com explicitação sempre maior da verdade revelada e liberada dos elementos que a fazem parecer inautêntica. Ela precisa do alimento sólido de que fala São Paulo. Em outras palavras: Impõe-se um esforço sério e sistemático de catequese. Eis o problema que hoje se põe diante de vós em toda a sua gravidade e urgência.

Providencialmente, este esforço já está sendo realizado em vosso País. Tal esforço corresponde à tarefa fundamental da Igreja, à sua missão primária e específica. “Evangelizados pelo Senhor no seu Espírito – assim se expressaram os vossos Bispos em Puebla – fomos enviados para levar a Boa Nova a todos os irmãos, especialmente aos pobres e esquecidos”(Puebla, 164).

Trata-se de uma incumbência grandiosa, à qual todos somos chamados a dar a nossa contribuição.

Um edifício é constituído de muitas pedras; sua construção é o fruto conjunto de quem o ideou e de quem lhe executou os planos.

3. Assim acontece com a Igreja, como a vemos hoje: o grande artífice é Deus, que a idealizou e continua a vivificá-la; mas as pedras são aqueles que serviram como instrumentos dóceis e prontos para a ação do Espírito Santo e que transmitiram esta maravilhosa herança da fé. Cabe agora a nós continuá-la e ampliá-la, para que se torne realidade o advento do Reino de Deus.

Que serviço mais belo que o do catequista que anuncia a Palavra divina, que se une com amor, confiança e respeito ao próprio irmão, para ajudá-lo a descobrir e realizar os desígnios providenciais de Deus sobre ele?

Mas trata-se também de uma tarefa extremamente árdua e delicada, porque a catequese não é simples ensino, mas é transmissão de uma mensagem de vida, como jamais será possível encontrar em outras expressões do pensamento humano, mesmo sublimes.

Quem diz “mensagem”, diz algo mais do que doutrina. Quantas doutrinas de fato jamais chegam a ser mensagem!

A mensagem não se limita a propor idéias: ela exige uma resposta, pois é interpelação entre pessoas, entre aquele que propõe e aquele que responde.

A mensagem é vida. Cristo anunciou a Boa Nova, a salvação e a felicidade: “Bem-aventurados os pobres em espírito, bem-aventurados os mansos, bem-aventurados os perseguidos...”(cf. Mt 5,3-11); e ainda: “Deixo-vos a minha paz, dou-vos minha alegria” (cf. Jo 14, 27; 15, 11).

As multidões escutavam-no porque viam nele a esperança e a plenitude da vida (cf. Jo 10, 10).

Além disso, é preciso respeitar esta mensagem divina, pois o homem não é juiz da palavra e da obra de Deus (cf. Catechesi Tradendae, 17. 29. 30. 49. 52. 58. 59). Deve respeitá-la mantendo-se fiel, antes de tudo, a Cristo, à sua verdade, a seu mandato - sem isso haveria alteração, traição - e ao homem, destinatário da palavra e da mensagem do Senhor. E não ao homem abstrato, imaginário, mas ao homem concreto que vive no tempo, com seus dramas, suas esperanças. É a este homem que se deve anunciar o Evangelho, a fim de que nele e por ele receba do Espírito Santo a força para realizar-se plenamente, na integridade do seu ser e dos seus valores.

A eficácia da catequese, por conseguinte, dependerá em grande parte desta sua capacidade de dar um sentido, o sentido cristão a tudo aquilo que constitui a vida do homem em seu tempo, homem entre os homens, cidadão entre cidadãos.

4. Quanto ao tema da catequese, sabeis que o pensamento da Igreja foi amplamente apresentado na recente Exortação Apostólica Catechesi Tradendae. Não pretendo repetir o que foi dito neste documento. Todavia quisera chamar a atenção para alguns pontos que mais de perto tocam as necessidades da Igreja no Brasil.

Antes de mais nada: a catequese na família. Nos primeiros anos de vida da criança, lançam-se a base e o fundamento do seu futuro. Por isso mesmo, devem os pais compreender a importância de sua missão a este respeito. Em virtude do batismo e do matrimônio são eles os primeiros catequistas de seus filhos: de fato, educar é continuar o ato de geração. Nesta idade, Deus passa de modo particular “através da intervenção da família” (Sacrae Congregationis Pro Clericis, Directorium Catechisticum Generale, 79).

As crianças têm necessidade de aprender e de ver os pais que se amam, que respeitam a Deus, que sabem explicar as primeiras verdades da fé (cf. Catechesi Tradendae, 36), que sabem apresentar o “conteúdo cristão” no testemunho e na perseverança “de uma vida de todos os dias vivida segundo o Evangelho”(Ibidem, 68).

O testemunho é fundamental. A palavra de Deus é eficaz em si mesma, mas adquire sentido concreto quando se torna realidade na pessoa que anuncia. Isto vale de modo particular para as crianças que ainda não têm condições para distinguir entre a verdade anunciada e a vida daquele que a anuncia. Para a criança não há distinção entre a mãe que reza e a oração; mais ainda, a oração tem especial valor porque é a reza da mãe.

Não aconteça, diletíssimos pais que me ouvis, que vossos filhos cheguem à maturidade humana, civil e profissional, ficando crianças em assuntos de religião. Não é exato dizer que a fé é uma opção a fazer-se em idade adulta. A verdadeira opção supõe o conhecimento; e nunca poderá haver escolha entre coisas que não foram sábia e adequadamente propostas.

Pais catequistas, a Igreja tem confiança em vós, ela espera muito de vós.

Quero, além disso, recomendar vivamente a catequese paroquial. A paróquia é o lugar em que a catequese pode desdobrar toda a sua riqueza. Nela, a escuta da palavra se associa à oração, à celebração da Eucaristia e dos outros sacramentos, à comunhão fraterna e ao exercício da caridade. Nela, o mistério cristão é anunciado e vivido. Urge que cada paróquia se torne um lugar onde a catequese ocupa a maior das atenções e reencontre “a própria vocação, que é a de ser uma casa de família, fraternal e acolhedora, onde os batizados e os confirmados tomam consciência de ser Povo de Deus”(Ibidem, 67).

Há ainda o ensino religioso nas escolas.

Na escola, o cidadão se forma através da cultura e da preparação profissional. A educação da consciência religiosa é um direito da pessoa humana. O jovem exige ser encaminhado para todas as dimensões da cultura e quer também encontrar na escola a possibilidade de tomar conhecimento dos problemas fundamentais da existência. Entre estes ocupa o primeiro lugar o problema da resposta que ele deve dar a Deus. impossível chegar a autênticas opções de vida, quando se pretende ignorar a religião que tem tanto a dizer, ou então quando se quer restringi-la a um ensino vago e neutro e, por conseguinte, inútil, por ser destituído de relação a modelos concretos e coerentes com a tradição e a cultura de um povo.

A Igreja, ao defender esta incumbência da escola, não tem pensado nem pensa em privilégios: ela propugna por uma educação integral ampla e pelos direitos da família e da pessoa.

5. Finalmente, quero lembrar a grande contribuição que nos vem dos meios de comunicação social.

Não podemos deixar de admirar seu enorme desenvolvimento. Por eles, a cultura chega a todos os recantos, já não há barreiras de espaço e de tempo. Penetram estes meios na intimidade dos lares e chegam aos lugares mais humildes e distantes.

São muitas as vantagens que oferecem: informam com rapidez, instruem, divertem, irmanam os homens, juntam à expressão racional a imagem, o símbolo, o contacto pessoal; a palavra se conjuga com a expressão estética e artística.

Seu poder é tal que dá força àquilo de que falam, e diminui o que silenciam.

Podem ter os seus riscos como os da cultura nivelada e, por conseguinte, reduzida; da passividade e da emotividade e, por conseguinte, do depauperamento de senso crítico; da manipulação e, por conseguinte, do impulso à evasão e ao hedonismo.

Estes defeitos, no entanto, não estão ligados à técnica e seus meios, e sim ao homem que deles se serve. A catequese, que até agora teve expressão sobretudo escrita, é convocada a exprimir-se sempre mais também através destes novos instrumentos. A tarefa é grande e de muita responsabilidade: é preciso agir nos meios de comunicação e ao mesmo tempo educar para o uso destes instrumentos (cf. Inter Mirifica, 3). Construiremos a Igreja também à medida que soubermos trabalhar neste campo.

6. Filhos diletíssimos, pouco valor teria uma catequese, mesmo substanciosa e segura, se não for transmitida com eficiência de expressão e apoio daqueles subsídios didáticos que hoje se apresentam sempre mais ricos e sugestivos. A catequese exige uma “ars docendi” especial, uma pedagogia própria. Para possui-la não basta a informação comum, muitas vezes aproximativa e empírica, como a pode ter qualquer sacerdote ou religioso ou qualquer leigo que tem instrução religiosa.

Muitos elementos culturais, didáticos e sobretudo morais são necessários, para dar ao catequista o prestígio e a eficiência que o devem qualificar. Não há, porventura, aqui o perigo que, na falta de tais exigências, o ensino catequético não só fique infrutífero, mas por vezes até nocivo? Por isso verificamos com grande satisfação que também entre vós aparecem e se multiplicam as escolas de catequese, para possibilitar aos catequistas uma preparação doutrinal, didática e espiritual progressivamente atualizada. Assim compreendereis que eu, cheio de viva esperança acompanhada de insistente oração, formule os meus votos calorosos pelo feliz e fecundo êxito de todas estas acertadas iniciativas.

O Evangelho de hoje nos falou através de símbolos de vida e de crescimento, lento talvez, mas constante: é a semente que, lançada à terra, se desenvolve até à espiga; é o grão de mostarda que chega a se tornar arbusto em que as aves do céu encontram abrigo (cf. Mc 4, 1-2.26-32). Que cada um de vós medite bem sobre o sentido dessas palavras do Senhor e, vivendo sua vocação e missão específicas na Igreja, tenha em si mesmo essa vida e participe desse crescimento, para ajudar também os outros a crescer em fé firme e amadurecida.

Diletíssimos filhos, falei-vos com afeto profundo; dei-vos algumas diretivas, mas sobretudo quis encorajar-vos. Que o Senhor vos abençoe no caminho que com alegria louvavelmente empreendestes. Recomendo-vos todos à proteção de Maria Santíssima, “Mãe e modelo dos catequistas”(Catechesi Tradendae, 73)."

Discurso do Papa JPII aos Aspirantes as Sacerdócio e Seus Formadores
Porto Alegre, 5 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“Caríssimos Filhos,
1. Não vos surpreendereis certamente se vos revelo que este encontro era um dos mais desejados entre tantos que a Providência me concede ter nesta grande Nação. De fato é um conforto poder encontrar-me com vocês, jovens, dispostos a seguir Jesus Cristo, que chama para o dom total de si no testemunho de amor a Ele e de serviço aos irmãos; convosco, sacerdotes e religiosos, que tendes a responsabilidade da formação daqueles que se preparam para o Sacerdócio, para a vida religiosa ou para um compromisso direto na atividade apostólica. De vós depende em boa medida o futuro da Igreja no Brasil.

“Graça e paz a vós da parte de Deus Pai e da do Senhor Jesus Cristo” (2Tess 1,2).

Muito obrigado pelo entusiasmo e cordialidade com que me destes as boas-vindas e que me sensibilizam. mais uma manifestação da tradicional hospitalidade brasileira que tenho experimentado ao longo destes dias.

Em cada momento desta minha peregrinação pastoral pela vossa terra, com o coração voltado para Fortaleza e sintonizado com o povo de Deus no Brasil, eu me interrogo: para onde vais? E a boca fala da abundância do que vai no coração. Em todas as etapas da minha romaria para o Congresso Eucarístico Nacional, a pergunta foi e é atual: atual ao encontrar-me com as famílias e os sacerdotes no Rio de Janeiro, atual ao encontrar-me com religiosos e religiosas em São Paulo e atual ao encontrar-me com o mundo do trabalho, com os operários, em São Paulo. Aqui, porém, neste encontro convosco, ela me parece de particular atualidade. Efetivamente, de vós depende, em boa medida, o futuro da Igreja nesta grande, bela e promissora Nação brasileira. Nela o povo de Deus peregrino e os homens em geral se sentem interpelados e desejam alguém que lhes indique as metas e o caminho para responder com acerto à pergunta: para onde vais?

E vós, não sois ou quereis ser esse alguém?

2. É para vocês minha primeira mensagem, caríssimos jovens, que guardam no coração como poderoso impulso o segredo do chamamento particular que Cristo lhes dirige. Tenham sempre consciência da predileção que esta iniciativa do Mestre divino significa: toda vocação faz parte de um desígnio divino muito amplo, em que cada um dos chamados tem grande importância. O próprio Cristo, Verbo de Deus, o “Chamado” por excelência, “não se arrogou por Si a honra de se tornar sumo sacerdote, mas recebeu-a d’Aquele que lhe disse: "Tu és meu Filho, eu hoje te gerei"(Sal 2,7); e em outra passagem, igualmente diz: "Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec (Sal 110,4)". (Hb 5,5)”

A vocação é, pois, um mistério que o homem acolhe e vive no mais íntimo do seu ser. Dom e graça, ela depende da soberana liberdade do poder divino e, na sua realidade plena, foge à nossa compreensão. Não temos explicações a exigir ao Doador de todos os bens – “por que me fizestes assim?”(cf. Rm 9,20) – pois Aquele que chama é também “Aquele que é”(cf. Ex 3,14).

De resto, a vocação de cada um se funde até certo ponto, com o seu próprio ser: pode-se dizer que vocação e pessoa tornam-se uma coisa só. Isto significa que na iniciativa criadora de Deus entra um particular ato de amor para com os chamados, não apenas à Salvação, mas ao ministério da Salvação. Por isso, desde a eternidade, desde quando começamos a existir nos desígnios do Criador e Ele nos quis criaturas, também nos quis chamados, predispondo em nós os dons e as condições para a resposta pessoal, consciente e oportuna ao apelo de Cristo ou da Igreja. Deus que nos ama, que é Amor, é também “Aquele que chama”(cf. Rm 9,11).

Por isso, diante de uma vocação adoramos o mistério, respondemos com amor à iniciativa de amor, dizemos sim ao apelo.

3. No entanto, vocês sabem bem que na origem de toda vocação está sempre Jesus Cristo, suprema encarnação do Amor de Deus; no amor de Cristo, a vocação encontra o seu porquê. Ele mesmo o explicou: “Não fostes vós que me escolhestes a Mim; fui Eu que vos escolhi e vos constitui, para irdes e produzirdes frutos...”(Jo 15,16). Deixem-me repetir como dito só para vocês o que escrevi há pouco: “Eu, o Papa, sou o humilde e apaixonado servidor daquele mesmo amor pelo qual era movido Cristo, quando chamava os discípulos para o Seu seguimento” (João Paulo II II, Discurso sobre o Dia de Reflexão sobre as Vocações, 4, 19 de abril de 1980).

No fundo quem nos chama é o Pai (Jo 15,1), o agricultor e nos atrai Aquele que Ele enviou. Seu chamado (cf. Jo 6,44). prolonga em nós a obra de amor começada na criação. Mas é sempre Cristo – diretamente ou pelo seu “sacramento universal da Salvação” que é a Igreja – quem torna perceptível o chamamento divino para um trabalho que é colaboração pessoal com Ele. Assim Ele fez com os primeiros Apóstolos: “Chamou a Si os que Ele quis e eles foram-se para junto d’Ele”(Mc 3,13; cf. Mc 6,7).

A resposta depende da generosidade do coração de quem é chamado, pois Aquele que chama deixa sempre a liberdade de opção: “Se queres...”(cf. Mt 19,21). Neste encontro com vocês, agradecido, levanto o espírito ao Deus que sempre nos ama e dá conforto e esperança (cf. 2Tess 2,16) e imploro que “a caridade de vocês cresça mais e mais, no conhecimento perfeito e em toda a percepção, para poderem discernir o que é melhor”(Fil 1, 7-8). Não se deixem perturbar, como o jovem do Evangelho. Vale a pena trocar “muitos bens” por “um tesouro no céu”.

Nesta altura não posso deixar de fazer-lhes a cada um em particular o insistente convite que costumo fazer em idênticas circunstâncias a outros jovens possuídos pelo mesmo ideal: ponham-se à escuta do Senhor, o grande Amigo. Ele quer fitá-los nos olhos e falar-lhes ao coração, na intimidade da oração pessoal (cf. Ap 3,20), da oração comunitária (cf. Mt 18,20) ee da Liturgia, pois Ele “está sempre presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas” (Sacrosanctum Concilium, 7). Podem estar certos de que Ele os iluminará e ajudará a descobrir e a amar o sentido e o valor da vocação. E quem sabe se hoje, neste encontro “em seu nome”, Ele não quer dizer a vocês alguns dos seus segredos? Se assim for, “não endureçam os seus corações”(cf. Hb 3,8). Somente na disponibilidade à voz de Deus poderão encontrar a alegria de uma total auto-realização.

4. Ao lado de vocês, como ministros de Cristo e intérpretes das suas inspirações interiores, estão aqueles a quem a Igreja confiou a delicada tarefa da sua formação. Ao dirigir o meu pensamento para eles, é-me grato evocar, antes de mais nada, a longa tradição no empenho pela formação sacerdotal em terras brasileiras, com alguns marcos de todos conhecidos: remonta às incipientes experiências nos Colégios da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, passando pelo período que já se designou por “Era dos Conventos” e pelos alternados momentos de provação e florescimento, até se chegar à primitiva organização eclesiástica. No século dezoito, aparecem os Seminários propriamente ditos, tendo deixado um nome que ecoa na história do Brasil, entre outros, os de Mariana, Olinda e o Caraça.

Neste ponto, como não reconhecer os méritos e manifestar apreço pelo importante papel desempenhado pelas Ordens e Congregações Religiosas?

Depois, já com Seminários do tipo preconizado pelo Concílio de Trento instaurados em muitas partes do imenso território, continuou a processar-se a formação de sucessivas levas de Sacerdotes. Um bom número deles, neste último século, foi aperfeiçoar os estudos e a formação em Roma, primeiro no Colégio Pio Latino-Americano e, num segundo tempo, no Colégio Pio-Brasileiro, ou então nas Casas romanas dos institutos religiosos, valiosos meios para manter os tradicionais vínculos entre o Brasil católico e a Cátedra de São Pedro, na comunhão da Igreja universal.

5. Perante estas gloriosas tradições do passado, impõe-se ao coração do Papa sempre preocupado pela “sollicitudo omnium ecclesiarum”(2Cor 11,28): uma pergunta: na hora atual, decisiva para o seu destino e para o mundo, terá o Brasil Seminários, Casas religiosas ou outras Instituições eclesiásticas, terá sobretudo os reitores e mestres capazes de prepararem sacerdotes e religiosos à altura dos problemas postos por uma população em contínuo aumento e com exigências pastorais cada vez mais vastas e complexas?

A pergunta toca um ponto fundamental da vida eclesial. Detenho-me por alguns instantes a falar deste assunto a vós que tendes, por títulos diversos, a responsabilidade dos Seminários e das Casas de formação. A experiência secular e a ponderada reflexão da Igreja demonstram a absoluta necessidade destas estruturas de formação para a preparação dos sacerdotes e dos religiosos. O Concílio Vaticano II confirmou que o caminho seguido pela Igreja através dos séculos é o caminho certo e que, por isso, não pode ser abandonado.

A formação de um sacerdote e de um religioso não pode ser abandonada à improvisação. a graça de Deus que inspira a vocação e é a graça de Deus que gera o sacerdote e o religioso. Mas esta graça é concedida na Igreja e para a Igreja: compete portanto à Igreja examinar e comprovar a autenticidade de um apelo e acompanhar a sua maturação até à meta das Ordens e dos Votos sagrados. Ora, para a Igreja, em base à sua tradição e experiência, tudo isto não pode ser plenamente realizado sem uma Instituição chamada com nome altamente significativo de Seminário, e outras análogas Instituições para a formação religiosa.

6. O Seminário e as outras Instituições educativas precisam certamente de atualização. A Igreja sabe disto e esta é a sua contínua preocupação. Ela não ignora que a realidade muda segundo tempos e lugares. Ela reflete sobre a realidade e segue a realidade que traz em si os sinais da Providência divina. Por isso ela propõe normas precisas e assim procura ajudar os responsáveis da formação sacerdotal e religiosa no seu árduo trabalho, que para ser eficaz, deve ser sempre desenvolvido na Igreja, com a Igreja e para a Igreja.

Por esta razão, os meus venerados Predecessores preocuparam-se, com admirável solicitude, em enfrentar os temas da formação sacerdotal e religiosa, como era exigida pelas necessidades pastorais modernas. Pela mesma razão, a Santa Sé não tem deixado de evocar, comentar e explicitar as exigências apontadas pelo Concílio, mediante uma série de documentos, nos quais os responsáveis da formação sacerdotal e religiosa devem ver um renovado testemunho de confiança, de compreensão e de amor.

7. Enquanto vos falo, tenho em mente as dificuldades que perturbam o mundo moderno e se repercutem na vida da Igreja. Dificilmente seriam poupados os Seminários e outras Instituições de formação eclesiástica. A própria proposta da vida sacerdotal e religiosa encontrou obstáculos, não poucas vezes, naqueles mesmos que deviam anunciá-la corajosamente ou podiam acolhê-la generosamente.

Fossem as dificuldades ainda maiores do que as que conhecemos, o nosso sagrado dever continua a ser o de evangelizar o Povo de Deus sobre a grandeza divina do Sacerdócio ministerial e sobre o altíssimo ideal da vida consagrada. Por este motivo, caríssimos sacerdotes e religiosos, convido-vos a meditar de novo a Constituição “Lumen Gentium” e os Decretos “Presbyterorum Ordinis” e “Perfectae Caritatis” do Concílio Vaticano II. Convido-vos de modo particular a reler a Carta que escrevi a todos os sacerdotes da Igreja na Quinta-Feira Santa de 1979, para reafirmar a sagrada doutrina da Igreja sobre o sacerdócio ministerial, que é participação do sacerdócio de Cristo, mediante a Ordem sagrada, e dom de Cristo à Sua e nossa comunidade (cf. João Paulo II, Carta aos Sacerdotes na Quinta-feira Santa, 3 e 4, 8 de abril de 1979).

Se nos mostramos intimamente convencidos desta verdade, se a comunicamos integralmente ao Povo de Deus, se dela damos testemunho com a nossa vida, então já as dificuldades dos nossos tempos não nos causarão medo.

8. Reafirmados estes princípios fundamentais que nascem da fé, permiti-me uma alusão a alguns aspectos práticos, que merecem prudente consideração para o bem da Igreja e da vida sacerdotal religiosa.

A Igreja deseja que se procurem os meios e os métodos mais adequados à formação do sacerdote e do religioso de hoje. As diretrizes emanadas do Concílio e, depois, da Santa Sé, orientam-se todas neste sentido. O Concílio sugeriu com muita razão dividir as comunidades seminarísticas muito numerosas. Dispôs as coisas para que os aspirantes ao sacerdócio possam manter contactos com a comunidade e prestar ajuda à atividade pastoral nos lugares onde se realiza a sua formação. Não se pode duvidar do valor pedagógico destas orientações.

Contudo, passado um período mais do que suficiente de experiência, temos todos o dever de reexaminar algumas iniciativas, tomadas certamente com boas intenções, mas que podem deformar as orientações do Concílio e levar a resultados enganosos e prejudiciais. Que é que se deve já corrigir ou completar, por exemplo, nas várias fórmulas, nem sempre felizes, come que se pretende substituir os Seminários, especialmente nas chamada “pequenas comunidades”? Quais são os eventuais resultados positivos e quais as deficiências de uma formação de futuros sacerdotes exclusivamente no âmbito das comunidades em que deverão depois realizar o seu ministério?

Como evitar que se reduza ao mínimo o programa dos estudos e do “curriculum” seminarístico, com evidente dano da específica formação intelectual e espiritual que compete ao novo ministro de Deus? É preciso, sobretudo da parte dos Bispos lucidez e coragem para orientar claramente todos os pontos concernentes à formação dos novos ministros, particularmente dos Presbíteros.

Podemos alegrar-nos por observar que as normas previdentes do Concílio Vaticano II voltam a ser tomadas na devida consideração, assumidas, postas em prática, enquanto são redimensionadas, relativizadas e, quando é o caso, abandonadas experiências que ou não deram fruto, ou se revelaram negativas.

9. Mas sobretudo importa-me realçar que neste trabalho continua a ser fundamental a ação dos sacerdotes e religiosos, sejam eles superiores, professores, ou Mestres de noviços. A vossa missão é maravilhosa, mas difícil. Os Pastores das Dioceses e os responsáveis pela Vida Religiosa terão refletido e rezado antes de vos escolherem e vos confiarem um dos ministérios mais delicados que existem na Igreja: formar os futuros formadores do Povo de Deus!

Assumida esta missão, deveis sentir-vos responsáveis pela vossa preparação pessoal. O Concílio insistiu neste ponto (cf. Optatam Totius, 5). O Primeiro Sínodo dos Bispos deu orientações precisas. Os vossos Bispos e Superiores religiosos vos ajudarão, mas o vosso continuo aperfeiçoamento espiritual, intelectual e pastoral depende de vós, da consciência do vosso dever.

A vossa preparação intelectual deve beber na fonte pura que é Cristo, Mestre dos mestres, Pastor das nossas almas, Modelo supremo de todo o educador e de toda a educação. A vossa preparação intelectual deve estar sempre em dia, em plena fidelidade ao Magistério e à Tradição viva da Igreja, em humilde e afetuoso acolhimento da Palavra de Deus que supera toda sabedoria humana. A vossa atualização pastoral só terá a lucrar com a vossa inserção no Presbitério diocesano: a experiência deste vos enriquece e vós o enriquecereis com a vossa experiência.

Com esta preparação completa, a vossa missão será desempenhada com fadiga mas também com alegria, sob a bênção de Deus que não deixa sem auxílio a quem Lhe oferece a sua colaboração incondicionada. Assim preparados, encontrareis a luz e a força para exercer uma ação de autêntica pedagogia evangélica.

Guiareis os aspirantes a vós confiados para que conquistem o primado do espiritual, aquele primado que os sustentará depois nas fadigas do ministério apostólico e na fidelidade aos compromissos tomados perante a Igreja. Guiá-los-eis para que descubram com clareza a sua vocação, para que fortifiquem o próprio caráter e aceitem o sacrifício de uma vida totalmente consagrada a Deus e à Igreja. Guiá-los-eis na formação de uma cultura sólida, sadia e aberta, como hoje se requer de quem há de ser por sua vez mestre do Povo de Deus. Guiá-los-eis na aquisição da ciência e sabedoria pastoral, que é proclamação da Palavra de Deus, celebração dos mistérios divinos, cuidado espiritual da comunidade e das almas em particular. Numa palavra: os vossos discípulos irão haurir à vossa riqueza, como vós ides haurir à riqueza inesgotável do coração de Cristo.

10. Esta é, Filhos caríssimos, a exortação que me sai do fundo da alma, esta a indicação que desejo confiar a cada um de vós: ponde generosamente à disposição de Cristo a vossa mente, o vosso coração e as vossas energias. Digo-o a vós, superiores e educadores, que na dedicação quotidiana ao vosso cargo delicado sois chamados a ser sinal e instrumento do serviço de Cristo que edifica o seu Corpo. Digo-o a vocês, que responderam ao chamamento e aceitaram pôr-se a caminho seguindo as pegadas de Cristo, para serem amanhã testemunhas do Seu amor entre os seus irmãos.

Mas o meu pensamento e a minha exortação dirigem-se também às famílias cristãs, que o Concílio Vaticano II indicou como “primeiro seminário” da vocação (cf. Optatam Totius, 2): compete a vós criar no próprio seio aquele clima de fé, de caridade e de oração, que oriente os filhos para se confrontarem, numa atitude de generosa disponibilidade, com a iniciativa de Deus e com o seu plano sobre o mundo.

Ao lado da família tem papel importante a escola, em que os professores, especialmente católicos, devem sentir a obrigação não só de enriquecer a mente dos alunos com os dados da cultura, mas também tornar-lhes o animo sensível ao apelo dos valores éticos e à fascinação entusiasmante dos grandes ideais.

Uma palavra especial para a Paróquia, que a este respeito tem um contributo sempre determinante. Nela, de fato, os jovens vivem a sua experiência cristã, nela ouvem a proclamação da Palavra de Deus e participam da celebração dos sinais da salvação, e nela se encontram ainda com o testemunho das diversas vocações e dos diversos ministérios. É evidente, por isso, a importância que revestem as associações, os grupos e os movimentos eclesiais, para não falar da pessoa dos sacerdotes colocados à frente do cuidado pastoral da Comunidade, como normal instrumento do chamamento de Deus a um serviço mais generoso para a vinda do Reino. Exorto, portanto, cada um dos elementos da Comunidade cristã a tomar em conta as próprias responsabilidades neste setor essencial da vida da Igreja.

Cristo tem necessidade da contribuição de todos para fazer chegar a outros corações a palavra que “nem todos podem compreender”(cf. Mt 19,11), isto é, a palavra do convite à doação sem reservas à causa do Reino.

Ao renovar a cada um o testemunho da minha gratidão, da minha confiança e do meu afeto, confio à Virgem Santíssima Aparecida as vossas intenções e os vossos propósitos. A Ela peço, em particular, que tome sob a sua maternal proteção, a vocês jovens, neste período decisivo da sua vida e os conduza, com mão segura, ao encontro com Cristo: com Aquele que os ama, que os chama, que espera e que será a alegria de vocês, hoje e sempre."

Discurso do Papa JPII com a Comunidade da Polonia d de outros Paises
Curitiba, 5 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“Caríssimos irmãos e irmãs!
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!

1. Quisera que a minha saudação cristã, perante esta simpática assembleia, ressonasse com uma intensidade de amor semelhante à da palavra de São Pedro, de quem sou humilde sucessor, certa vez em Jerusalém. Diante de numerosos ouvintes, “provenientes de todas as nações que há debaixo do céu” (Cf. Act 2, 5), em seu primeiro discurso, São Pedro proclamava que Jesus é o Senhor, o Messias; e todos, por milagre, o entendiam “na própria língua” do país de origem.

Desejaria, pois, que cada um dos presentes pudesse captar, não já prodigiosamente na língua do país de origem mas com toda a própria capacidade de entender, o significado da aclamação e o afeto que a acompanha como saudação. Sim, também eu quero proclamar o Senhor Jesus Cristo, saudando-vos cordialmente, a todos e a cada um pessoalmente, brasileiros de nascimento ou brasileiros de adoção. E, em vós, saúdo todos os diversos grupos étnicos, espalhados e harmoniosamente integrados neste querido Brasil, imenso e belo.

2. Por Jesus Cristo, Senhor nosso, quereria convosco e por vós dar graças a Deus: pela alegria deste encontro, pelo que sois e pelo que representais; depois, reafirmar grato apreço.

Efetivamente, vós, como aqueles que ouviam São Pedro outrora, em Jerusalém, também provindes de várias nações; e, com lembrança mais ou menos viva da pátria distante e com peculiares características atávicas, aqui representais a ecumenicidade, hospitalidade e cordialidade deste País que vos acolheu e onde formais um só Povo brasileiro. Graças a Deus!

E agora, neste encontro de família – a família brasileira, a família humana e a família dos filhos de Deus – vós representais bem a universalidade da Igreja. E o Papa, aqui convosco, como sucessor de São Pedro “visível fundamento da unidade de todos os fiéis” da mesma Igreja, alegra-se pela vossa profissão de unidade. E desejaria deixar-vos uma recordação, a perpetuar a amizade deste encontro: uma recordação que leveis sempre convosco, que leveis no coração e que esteja bem presente em toda a vossa vida. E qual?

3. Esta simples mensagem: Jesus Cristo, nosso irmão em humanidade, é o Senhor. Prometeis trazer sempre convosco esta lembrança? Certamente. E por isso vos manifesto a minha grata satisfação.

Sim, irmãos e irmãs, Jesus Cristo é o Senhor: Ele é a única orientação do espírito, a única direção da inteligência, da vontade e do coração para todos nós; Ele é o Redentor do Homem; Ele é o Redentor do mundo; n’Ele está a nossa salvação e “não há salvação em nenhum outro” fora d’Ele (Cfr. Act 4, 12).

Ele nos ensinou, com o exemplo e com palavras que o caminho da salvação é o amor: primeiro e sobre todas as coisas, o amor de Deus; e porque Deus cuida paternalmente de todos e quis que os homens constituíssem uma só família e se tratassem como bons irmãos, temos que nos amar uns aos outros, como Jesus Cristo nos amou e nos ensinou. Ele é o Senhor!

Que a comunidade humana e cristã que constituís, em exemplar bom entendimento e comunhão de brasilidade, seja sempre mais iluminada pelo amor de Deus e do próximo e continue a prosperar, com as bênçãos divinas!

4. E agora, a vós irmãos e irmãs de origem portuguesa, que aqui tendes segunda pátria, quero dizer particularmente:

Estou certo de que, com o vosso trabalho, como imigrantes aqui pusestes ao serviço desta comunidade nacional as vossas nobres tradições e qualidades humanas e cristãs. Conservai como principal tesouro dessas tradições a fé cristã de vossos maiores. E que o vosso sentido dos deveres para com Deus e a vossa arraigada devoção a Nossa Senhora continuem a ser força de vida religiosa pessoal e luz para o vosso testemunho de cristãos!

E com estes votos de perseverante fidelidade a Cristo e à Igreja, pelos aqui presentes exprimo minha estima e desejo aos imigrantes portugueses no Brasil as melhores felicidades e os abençoo de coração."

Homilia do Papa São João Paulo II na Santa Missa em Curitiba
domingo 6 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“Amados irmãos no Episcopado e no Presbiterado,
queridos filhos e filhas, religiosos e leigos.
1. Como agradecer à Providência Divina que me dá a graça deste encontro com a população de Curitiba e com peregrinos vindos de todo o Paraná e do vizinho Estado de Santa Catarina? Sirva de agradecimento a Eucaristia que quisestes colocar no centro do encontro como sua alma e sua inspiração.

Ora, nesta Eucaristia acabam de ressoar duas páginas do Novo Testamento que um Papa, Sucessor do Apóstolo Pedro, não pode ouvir sem íntima trepidação, sem que se reabra nele como uma chaga a consciência da própria pequenez diante da missão recebida - mas tampouco sem uma renovada confiança n’Aquele em quem tudo pode (cf. Fl 4,13) .

Uma contém o episódio de Cesaréia de Filipe: a inequívoca confissão de Pedro (Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo) à qual responde a misteriosa e prodigiosa confissão de Cristo (Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei a minha Igreja!). Ao longo de 2.000 anos, 264 vezes esta mesma palavra foi dita aos ouvidos e à consciência de um homem frágil e pecador. 264 vezes um novo Pedro foi colocado ao lado do primeiro para ser pedra de alicerce da Igreja. Último no tempo a mim foi repetida a promessa de Cesaréia de Filipe e é na função de Pedro que me acho em meio a vós. Com que mensagem?

Aquela mesma que brota da outra página lida na presente Liturgia. Pedro, o ardente mas timorato, o amigo, o renegado, o arrependido, acabava de receber o Espírito Santo. E pela força do Espírito ele anuncia a uma Jerusalém repleta de peregrinos: “Este homem que entregastes crucificando-o, Deus o ressuscitou e O constituiu Senhor”. Tudo quanto Pedro dirá até à última confissão numa encosta do Vaticano, que coroa a de Cesaréia de Filipe, se reduz a estas frases. Tudo quanto deve dizer o Sucessor de Pedro talvez esteja contido nestas simples palavras: “Deus O constituiu Senhor”(cf. At 2, 23-34.36).. no fundo o que o Papa sente: o doce e urgente dever de anunciar, por onde passa, com a força e o fervor de quem anuncia uma boa nova.

2. Mas o Sucessor de Pedro encontra aqui e agora um novo título de semelhança com seu longínquo primeiro Predecessor naquela sua pregação referida na leitura desta Liturgia. Este Estado do Paraná, esta Cidade de Curitiba onde me encontro, retrata bem a Jerusalém da manhã de Pentecostes pela imensa variedade de raças daqueles que ouvem anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo. Ali - segundo a fascinante enumeração dos Atos dos Apóstolos - Partos, Medos, Elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judéia, da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia, da Panfília, do Egito. Aqui caldeados pela terra que os acolheu mas presentes e reconhecíveis de algum modo nos rostos de seus filhos, netos e bisnetos - portugueses, italianos, ucrainos, alemães, japoneses, romenos, espanhóis, sírios, libaneses - para não falar daqueles, numerosos, que trazem nas veias um sangue igual ao meu, sangue polonês!

Inúmeras vezes, bem antes que eu imaginasse vir até aqui e previsse este encontro, eu já conhecia este aspecto do Paraná, ponto de chegada de inúmeras correntes migratórias, ponto de encontro de irmãos vindos dos mais longínquos quadrantes.

Neste fenômeno, que a fria etiqueta de imigração define tão pobremente, esconde-se uma admirável riqueza de aspectos humanos e - por que não? - evangélicos.

3. Primeiro entre todos, a acolhida franca e generosa que, apenas nascido para a independência política, este País começou a oferecer aos mais diversos povos. Quando difíceis conjunturas históricas fizeram descer sobre vários países da Europa o espectro da fome, imensas glebas do sul do Brasil são oferecidas aos braços dispostos ao seu cultivo mas sobretudo um novo lar é dado a quem acorria. Quando numa nação o excesso populacional veio a criar problemas graves de espaço vital, o Brasil soube abrir seus espaços quase ilimitados com prodigalidade e inteligência.

Há uma arte na acolhida, há um jeito de receber, coisas estas que é impossível codificar nas leis e normas da imigração mas que o Brasil, graças às qualidades de seu povo, conhece e aplica perfeitamente. Haverá países em que a assimilação e integração do imigrado se faça com igual naturalidade? Com maior naturalidade do que aqui, é impossível. Não creio ter visto em outro lugar os imigrados e seus filhos e netos sentirem-se tão apaixonados da terra que acolheu a eles ou os antepassados, tão “bairristas” do Brasil, ao mesmo tempo que não renegam os países de origem.

Quero pois, como filho de uma Pátria de onde vieram tantos filhos para aqui, render uma sentida homenagem à ampla e inconfundível hospitalidade deste País.

4. E aqui vem o segundo aspecto. Acolhido sem reticências nem preconceitos, o imigrante retribuiu imediatamente a hospitalidade recebida. Nenhum exagero em dizer que o Brasil moderno, que eu já pude ver pulsar de vitalidade em Brasília, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre e vejo pulsar aqui, é produto também do trabalho resoluto mas livre e alegre de centenas de milhares de imigrantes. Penso que ao lado de São Paulo e do Rio Grande do Sul, o Paraná é um magnífico exemplo disso. E não há dúvida de que a operosidade do imigrante somado-se à dos brasileiros de longa data, só podia enriquecer com um sentido novo o progresso do País. Seria demais falar de um cunho profundamente solidário e fraternal deste progresso?

Não quero silenciar no curso desta Eucaristia um preito de afeição aos imigrantes que ajudaram a construir o Paraná - e o Brasil. Não foi sempre risonho o quadro da sua vinda para cá. Foi muitas vezes de sofrimentos e agruras a história de cada família e de cada leva que aqui chegou. Não terá faltado nenhum dos espinhos que costumam cercar a saída da própria pátria em busca de outra.

Malgrado tudo, aqueles homens e mulheres souberam aclimatar-se na nova terra, construir um novo lar, criar famílias cuja pobreza material ia de par com altíssimos valores humanos, morais e religiosos. Souberam sobretudo amar sua nova pátria e trabalhar por ela. Dar-lhe filhos e netos de primeiríssima qualidade no sacerdócio, nas artes, na política, na literatura.

5. O terceiro aspecto é o que hoje se apresenta aos meus olhos: a prodigiosa integração na miscigenação de que o Brasil dá exemplo. Tive ocasião de dizê-lo mas repito-o de bom grado por causa da admiração - e da emoção - que o fato suscita em mim: de todas as belezas de vosso País não sei se levarei no coração imagem de beleza mais tocante e significativa do que a da concórdia, da alegria descontraída, do senso de autêntica fraternidade com que convivem aqui as mais variadas raças.

6. Celebrando aqui, sob a invocação de Pentecostes recordado na primeira leitura, a Eucaristia que é sacramento da unidade e da fraternidade dos discípulos de Cristo mas que é também germe de unidade e fraternidade no mundo, eu quero fazer um pedido a vós e um pedido por vós.

Por vós eu peço a Deus com o maior fervor, que não venha nunca a arrefecer mas antes se alente e cresça a profunda integração racial que existe entre vós. Que nesta fraternidade entre os vários povos não falte uma especial solidariedade com vossos irmãos indígenas. Que haja ainda entre vós abertura para acolher muitos outros grupos humanos necessitados de uma nova pátria porque privados das suas.

A vós eu peço, com afeto de pai e confiança de irmão, que conserveis sempre este aspecto de vosso ser. E este meu pedido alarga-se em votos por que neste nosso mundo onde há ainda tanta discriminação os homens se compreendam sempre melhor, se aceitem uns aos outros por aquilo que têm em comum, a fim de crescer a solidariedade, o amor e a fraternidade entre os povos e se consolidarem as bases da paz.

Receba a Virgem Maria, Nossa Senhora Aparecida, a oração do Papa neste sentido."

Discurso do Papa São JPII ao Clero da Diocese de Salvador da Bahia
Salvador, domingo 6 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“Senhor Cardeal Arcebispo, Senhor Arcebispo Coadjutor Dom João de Souza Lima,
Senhor Bispo Auxiliar Dom Tomás Murphy, Meus irmãos no Episcopado e no Sacerdócio ministerial,
Religiosos e Religiosas, Queridos irmãos e irmãs!

1. A tradicional hospitalidade baiana de que sou objeto nesta hora, para meu gáudio e felicidade, não podia exprimir-se melhor do que na palavra eloquente e sincera de vosso Arcebispo, o caríssimo Cardeal Avelar Brandão Vilela. Agradecendo-lhe e à toda a Bahia quero expressar-lhes o meu “muito obrigado” pela acolhida que me reserva.

Pisando este solo, tenho viva consciência de um encontro marcado com as nascentes mais puras do Brasil. No litoral baiano desembarcaram os descobridores. Não muito longe daqui a voz, embargada de emoção, de Frei Henrique de Coimbra pronunciou, pela primeira vez na terra apenas descoberta, as palavras da consagração. Aqui foi criada a primeira Diocese brasileira. Esta cidade foi a primeira capital da Pátria, quando esta nasceu para a independência. Creio que posso dizer, sem desdouro para as outras regiões do País, que aqui tocamos com as mãos a brasilidade no que lhe é mais essencial.

Por todos estes títulos quero, nesta oportunidade, saudar cordialmente o povo desta cidade e de todo o Estado.

2. “Crescei na graça e no conhecimento de nosso Salvador”(2Pd 3,18), exortava o primeiro Papa, dando a Jesus – como faz frequentemente – este nome de Salvador, que foi dado à vossa cidade. Com estas mesmas palavras eu vos saúdo. E com palavras de São Paulo, faço votos e rezo para que “desponte a benignidade de nosso Deus Salvador e seu amor para com os homens”(cf. Tt 3,4). A benignidade do Salvador para os Pastores desta Arquidiocese e de todas as Dioceses sufragâneas. Para os fiéis destas várias Igrejas Particulares. Para os Governantes e responsáveis pelo bem-comum no Estado, nesta Capital e em todas as cidades. Para os que exercem responsabilidades. Para as famílias, sobretudo para as que padecem tribulação ou estão no luto. Para os jovens e crianças como para os anciãos. Para os doentes e os que são sós. A benignidade e a “caridade do Salvador” para todos vós e todos os vossos caros.

3. Seja-me permitida uma saudação particular ao Presbitério de cada uma das Dioceses locais, cuja imagem desejo ver nos Sacerdotes aqui presentes. Ministros de Cristo Sacerdote, chamados a agir “in persona Christi”, vivei também como se o próprio Cristo vivesse em vós. a única forma de serdes autênticos educadores na fé, pastores e guias para os fiéis que às vezes em altas vozes mas quase sempre numa súplica sem palavras, vos pedem orientação para a própria vida, luz para o seu caminho.

Uma saudação também para os seminaristas. Amai vossa vocação como o dom mais precioso que vos foi concedido. Cultivai-a com a oração e o fervor do espírito, preparando-vos com zelo, para o dia em que Cristo porá em vós o sinete da consagração sacerdotal.

4. Acolhei todos vós, filhos caríssimos, as saudações e votos do Papa com a afeição que ele neles coloca. E seja a Bênção Apostólica que de coração vos concedo, o penhor da graça divina que vos faça “viver sensata, justa e piedosamente, aguardando a nossa bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador” (Tt 2,12-13)."

Discurso do Papa JPII às Autoridades e ao Povo de Salvador da Bahia
Baía de Todos os Santos, domingo 6 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“Caríssimos irmãos e irmãs,
1. Chegado a esta vossa cidade, que se debruça, magnífica, sobre a baía de Todos os Santos, é com imensa alegria que contemplo a vossa tão numerosa assembleia, reunida nesta praça.

Saúdo o vosso Cardeal Avelar Brandão Vilela, seu Arcebispo Coadjutor, o seu Bispo Auxiliar, os seus mais próximos colaboradores. Saúdo as Autoridades Estaduais e Municipais. Saúdo os sacerdotes, os religiosos e as religiosas aqui presentes. Saúdo esta multidão inteira na qual vejo filhos e irmãos muito caros. Procuro vossos rostos um por um, aperto vossas mãos e ofereço-vos um abraço. Na Igreja não somos massa amorfa e anónima. Não somos números impessoais e desconhecidos uns dos outros. Somos Povo de Deus. Somos amados, um por um, Pelo Pai, no Filho, por meio do Espírito Santo. Somos pessoas capazes de corresponder ao apelo do amor eterno deste Deus, que desde sempre nos conheceu e nos predestinou para sermos conformes à imagem do seu Filho; que nos chamou, nos justificou, e nos glorificou (cf. Rm 8,30);. Somos, por isso, irmãos, que nos amamos e formamos um só corpo.

Eu te saúdo, pois, Povo de Deus que estás em Salvador da Bahia. Saúdo esta Igreja, eternamente amada pelo Senhor, com as mesmas palavras de São Paulo, que a Liturgia fez próprias: “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Amor do Pai, a comunhão do Espírito Santo esteja com todos vós”(cf. 2Cor 13,13).

2. Este encontro é dedicado aos “construtores da sociedade pluralista de hoje”, vindos aqui, a título especial, como sinal da realidade extraordinariamente rica de forças humanas, intelectuais e sociais, que o Brasil representa no mundo. Saúdo-vos, portanto, de modo particular, irmãos e irmãs, que fazeis da construção da sociedade, o vosso ideal, a vossa honra, o vosso labor quotidiano. Todo homem é construtor da sociedade em que vive. O Concílio Ecuménico do Vaticano II pôs em evidência esta verdade: “Compete aos leigos – disse o Concílio – assumir como tarefa própria, a instauração da ordem temporal, e nela agir directamente e de modo concreto, guiados pela luz do Evangelho e do pensamento da Igreja e movidos pela caridade cristã; como cidadãos, cooperar com os demais concidadãos, segundo a específica competência e sob a própria responsabilidade; procurar, antes de tudo e em todas as coisas, o Reino de Deus”(Apostolicam Actuositatem, 7).

Vejo em todos vós os construtores do Brasil de hoje e de amanhã. Se o Brasil chegou ao limiar do século XXI como uma Nação cheia de promessas, foi graças ao esforço de grupos de indivíduos que, assumindo a diversidade inerente a esta terra imensa, procurando o próprio aperfeiçoamento e o bem-estar devidos a si mesmos, às famílias e aos seus concidadãos, contribuíram para a construção da própria comunidade, da sua Cidade e da Nação. De igual modo, sois chamados a edificar o futuro da vossa Pátria, um futuro de paz, de prosperidade e de concórdia, um futuro que somente será garantido quando todos os cidadãos, segundo as próprias responsabilidades e com uma única comum preocupação, souberem criar e manter relações sociais baseadas no respeito do bem comum, que põe no centro de tudo o Homem, criatura de Deus.

Ao realçar vigorosamente esta realidade, eu me dirijo a todos e a cada um de vós, aos presentes e aos distantes: trabalhadores e industriais, profissionais e estudantes, economistas e artistas, homens da ciência e da técnica, artesãos e jornalistas, políticos e camponeses, habitantes das grandes e pequenas cidades. Sois todos, de certo modo e em certa medida, os construtores da sociedade pluralista de hoje!

A própria expressão já diz quais são a complexidade e a riqueza do mundo moderno, no seu dinamismo, na sua vitalidade, na sua ascensão contínua para um nível mais alto. Felicidade a vós, homens e mulheres que construís o mundo de hoje e de amanhã!

3. Que rumo segue o mundo? Para onde vai? Não vos falo aqui como economista ou sociólogo, mas em força do mandato e missão de Pastor Universal daquela Igreja que o meu inesquecível predecessor Paulo VI definiu “perita em humanidade”.

Se o quadro grandioso, de força e capacidade criativa e construtiva do homem, que a sociedade moderna apresenta, suscita em nós espanto e admiração, não é menos espantoso o quadro da alienação a que a sociedade foi muitas vezes reduzida. Na minha primeira vinda ao vosso continente, senti a necessidade de dizer aos Bispos latino-americanos reunidos em Puebla: “Talvez uma das mais notáveis debilidades da civilização atual esteja numa inadequada visão do homem. A nossa è, sem dúvida, a época em que mais se tem escrito e falado sobre o homem, a época dos humanismos e do antropocentrismo. E no entanto, paradoxalmente. é também a época das profundas angústias do homem com respeito a sua própria identidade e destino, do rebaixamento do homem a níveis antes insuspeitados, época de valores humanos conculcados como jamais o foram antes”(João Paulo II, Discurso à III Conferência Geral do Episcopado da América Latina 9, 28 de Janeiro de 1979).

Não é necessário repetir, porque todos os conheceis bem, os danos que trouxe ao homem a auto-suficiência de uma cultura e de uma técnica fechadas ao transcendente, a redução do homem a mero instrumento de produção, vítima de ideologias preconcebidas ou da fria lógica das leis económicas, manobrado para fins utilitaristas e interesse de grupos, que ignoraram e ignoram o bem verdadeiro do homem.

A própria palavra “pluralismo” traz no seu seio um perigo. Numa sociedade que gosta de definir-se “pluralista” existe, de fato, uma diversidade de crenças, de ideologias, de ideias filosóficas. Reconhecer contudo, esta pluralidade não me exime – nem a nenhum cristão que adira ao Evangelho – de afirmar a base necessária, os princípios indiscutíveis que devem sustentar toda atividade orientada para a construção de uma sociedade que deve responder às exigências do homem, tanto a nível dos bens materiais quanto dos bens espirituais e religiosos, uma sociedade fundada sobre um sistema de valores que a defendam das manipulações do egoísmo individual ou coletivo.

4. Consciente da missão universal que me trouxe nestes dias para o meio de vós, tenho o dever de proclamar bem alto a Palavra de Deus: “Se o Senhor não constrói a casa, em vão trabalham os construtores (Sal 126,1)!”.

É a resposta que a Igreja deve dar, hoje sobretudo: não se edifica a sociedade sem Deus, sem a ajuda de Deus. Seria uma contradição. É Deus a garantia de uma sociedade à medida do homem: primeiro porque Ele imprimiu no íntimo do homem a suprema nobreza de sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26ss); depois, porque Jesus Cristo veio recompor esta imagem deturpada pelo pecado, e, como “Redentor do Homem”, o restituiu à dignidade irrenunciável da sua origem. As estruturas externas – Comunidades e Organismos internacionais, Estados, Cidades, atividades de cada homem – devem realçar esta realidade, dar lei o espaço necessário; de outro modo, elas ruem, ou se reduzem a uma fachada sem alma.

A Igreja, fundada por Cristo, indica ao homem de hoje o caminho a seguir para construir a cidade terrena, prelúdio – embora não isento de antinomias e contradições – da cidade celeste. A Igreja indica o modo de construir a sociedade em função do homem, no respeito ao homem. Sua tarefa é inserir em todos os campos da atividade humana o fermento do Evangelho. em Cristo que a Igreja é “perita em humanidade”.

Percorrendo a história da vossa pátria, não posso deixar de observar que a Igreja, cumprindo nos séculos passados a sua missão, contribuiu para fazer esta mesma história, para determinar os valores que constituem a herança cultural do povo brasileiro. A Igreja está de tal modo ligada ao vosso povo que, eliminá-la, seria mutilar o seu patrimônio sócio-cultural. Por isso ela deve continuar colaborando na construção da vossa sociedade, reconhecendo e alentando as aspirações de justiça e de paz que encontra nas pessoas e no povo, na sua sabedoria e nos seus esforços de promoção. Neste ponto a Igreja pretende respeitar as atribuições dos homens públicos. Não tem pretensão de intrometer-se na política, não aspira a participar na gestão dos assuntos temporais. A sua contribuição específica será a de fortalecer as bases espirituais e morais da sociedade, fazendo o possível para que toda e qualquer atividade no campo do bem-comum se processe em sintonia e coerência com as diretrizes e exigências de uma ética humana e cristã.

5. Esse serviço, tendo embora como objecto a realidade concreta, a tarefa concreta realizada em comum, é antes de tudo um serviço de formação das consciências: proclamar a lei moral e suas exigências, denunciar os erros e os atentados à lei moral, à dignidade do homem em que se baseia, esclarecer, convencer.

É o que observei no já citado discurso em Puebla: “Deve-se colocar particular cuidado na formação de uma consciência social em todos os níveis e em todos os setores. Quando aumentam as injustiças e cresce dolorosamente a distancia entre pobres e ricos, a Doutrina Social, de uma forma criativa e aberta aos amplos campos de presença da Igreja, deve ser precioso instrumento de formação e ação” (João Paulo II, Discurso à III Conferência Geral do Episcopado da América Latina 9, 28 de Janeiro de 1979).

Em sua doutrina social, a Igreja não propõe um modelo político ou econômico concreto, mas indica o caminho, apresenta princípios. E o faz em função de sua missão evangelizadora, em função da mensagem evangélica que tem como objectivo o homem em sua dimensão escatológica, mas também no contexto concreto de sua situação histórica, contemporânea. Ela o faz porque acredita na dignidade do homem, criado à imagem de Deus: dignidade que é intrínseca a cada homem, a cada mulher, a cada criança, seja qual for o lugar que ocupe na sociedade.

Todo homem tem o direito de esperar que a sociedade respeite sua dignidade humana e lhe permita manter uma vida de acordo com esta dignidade. No discurso que pronunciei perante a Organização dos Estados Americanos (OEA), no dia 7 de outubro do ano passado, propus o homem como o único critério que dá sentido e direção a todos os compromissos dos responsáveis pelo bem-comum, seja ele um simples cidadão, ou alguém investido de poder.

Propus como critério o homem concreto, com estas palavras: “Quando se fala do direito à vida, à integridade física e moral, à alimentação, à habitação, à educação, à saúde, ao trabalho, à participação responsável na vida da nação, fala-se da pessoa humana. É esta pessoa humana que se encontra frequentemente ameaçada e faminta, sem casa e sem trabalho decentes, sem acesso ao patrimônio cultural de seu povo ou da humanidade e sem voz para fazer ouvir suas angústias. É preciso dar uma vida nova à grande causa do desenvolvimento integral e devem fazê-lo exactamente aqueles que, de uma maneira ou de outra, já gozam destes bens; e que devem se pôr a serviço de todos aqueles – e são tão numerosos em vosso continente! – que estão privados destes mesmos bens em uma medida por vezes dramática”(João Paulo II, Discurso à Organização dos Estados Americanos (OEA) 5, 6 de outubro de 1979).

6. Colocar o homem no centro de toda atividade social, portanto, quer dizer sentir-se preocupado por tudo aquilo que é injustiça, porque ofende a sua dignidade. Adoptar o homem como critério quer dizer comprometer-se na transformação de toda situação e realidade injustas, para torná-las elementos de uma sociedade justa.

Esta foi a mensagem que dirigi às Autoridades deste Pais; esta a mensagem que apresentei aos trabalhadores de São Paulo. Esta é também a mensagem que vos apresento hoje, a vós construtores da sociedade que me ouvis aqui, em São Salvador da Bahia!

Toda sociedade, se não quiser ser destruída a partir de dentro, deve estabelecer uma ordem social justa. Este apelo não é uma justificação da luta de classes – pois a luta de classes é destinada à esterilidade e à destruição – mas é um apelo à luta nobre em prol da justiça social na sociedade inteira!

Vós todos, que vos chamais os construtores da sociedade, tendes nas mãos um certo poder, por causa de vossas posições, de vossas situações e de vossas atividades. Empregai-o a serviço da justiça social. Rejeitai o raciocínio inspirado pelo egoísmo coletivo de um grupo, de uma classe ou baseado na motivação do proveito material unilateral. Recusai a violência como meio de resolver os problemas da sociedade, pois a violência é contra a vida, é destruidora do homem. Vosso poder, seja ele político, econômico ou cultural, aplicai-o a serviço da solidariedade que abrange todo o homem, e, em primeiro lugar, aqueles que são os mais necessitados, e cujos direitos são mais frequentemente violados. Colocai-vos do lado dos pobres, coerentes com o ensinamento da Igreja, do lado de todos os que são, de alguma maneira, os mais desprovidos dos bens espirituais ou materiais, dos quais eles têm direito.

“Bem-aventurados os pobres em espírito”(Mt 5,3). Bem-aventurados os que na carência sabem salvaguardar sua dignidade humana; mas bem-aventurados também aqueles que não se deixam possuir por seus bens, que não permitem que o seu sentido de justiça social seja sufocado pelo apego às suas posses. Verdadeiramente bem-aventurados os pobres em espírito!

7. Propondo-vos esta mensagem de justiça e de amor, a Igreja é fiel à sua missão e tem a consciência de servir ao bem da sociedade. Ela não considera que seja tarefa sua entrar nas atividades políticas, mas ela sabe que está a serviço do bem da humanidade. A Igreja não combate o poder, mas proclama que é para o bem da sociedade e para a salvaguarda de sua soberania, que o poder é necessário; e só isso o justifica. A Igreja está convencida de que é seu direito e seu dever promover uma pastoral social, isto é, exercer uma influência, através dos meios que lhe são próprios, para que a vida da sociedade se torne mais justa, graças à ação conjunta, decidida mas sempre pacífica, de todos os cidadãos.

Dirijo-me portanto a todos aqueles que são, em algum setor da sociedade, construtores desta mesma sociedade e aos quais chega minha palavra – palavra de Igreja – aqui em Salvador ou em qualquer parte do Brasil.

A vós, principalmente, que tendes responsabilidades especiais por vossa posição e poder de cristãos.

A vós líderes e militantes políticos, quero recordar que o ato político por excelência é ser coerente com uma vocação moral e fiel a uma consciência ética que, para além dos interesses pessoais ou de grupos, visa a totalidade do bem comum de todos os cidadãos.

A vós, educadores, que tendes a função de explicitar, junto aos jovens e em diálogo com eles, os valores com os quais se tornarão por sua vez construtores da sociedade, peço que assenteis a vossa atividade sobre fundamentos sólidos e inculqueis nos jovens o senso da dignidade da pessoa humana.

A vós, empregadores, comerciantes e industriais, eu vos exorto a incluir nos vossos planos e projetos o homem em primeiro lugar, este homem que, por seu trabalho e pelo produto dos seus braços e da sua inteligência é construtor da sociedade, primeiro da própria família e depois, das comunidades mais amplas. Não vos esqueçais de que todo homem tem direito ao trabalho, não só no meio urbano e nas grandes concentrações industriais, mas também no meio rural.

A vós, homens de ciência, a vós, técnicos, tenho o dever de lembrar: a ética tem sempre a primazia sobre a técnica e o homem sobre as coisas.

A vós, trabalhadores, devo dizer: a construção da sociedade não é tarefa só daqueles que controlam a economia, a indústria ou a agricultura. também com o vosso suor que construís a sociedade, para os vossos filhos e para o futuro. Se tendes o direito de dizer a vossa palavra sobre a atividade econômica e industrial, tendes também o dever de orientá-la segundo as exigências de lei moral, que é justiça, dignidade e amor.

A vós, especialistas em comunicação, o meu pedido: não acorrenteis a alma das massas com o poder que tendes, filtrando as informações, promovendo exclusivamente a sociedade da abundância, acessível apenas a uma minoria. Fazei-vos antes os porta-vozes do homem, de suas legítimas exigências e de sua dignidade. Sede instrumentos de justiça, de verdade e de amor. Defender o que é humano é permitir ao homem o acesso à plena verdade.

8. Sim, irmãos e irmãs, construir a sociedade é antes de tudo tomar consciência, não no sentido exclusivo de tomar conhecimento dos resultados de uma certa análise da situação e dos males da sociedade, mas na plena acepção da palavra, isto é, formar a própria consciência segundo as exigências da lei de Deus, da mensagem de Cristo sobre o homem, da dimensão ética de toda empresa humana.

Construir a sociedade é comprometer-se, tomar o partido da consciência, dos princípios da justiça, da fraternidade, do amor, contra os intentos do egoísmo, que mata a solidariedade, e do ódio, que destrói.

Construir a sociedade é ultrapassar as fronteiras, as divisões, as oposições, para trabalhar juntos. O homem tem em si a abertura para o outro. E Cristo nos interpela de modo contundente: “Quem é o meu próximo?”. Nenhuma obra durável e verdadeiramente humana é possível se não é feita por todos, na colaboração de todas as forças vivas da sociedade, no intercâmbio entre todos os homens e mulheres sem distinção de posição social ou de situação econômica.

Construir a sociedade é, enfim, converter-se continuamente, rever as próprias atitudes, para detectar os preconceitos estéreis e descobrir os próprios erros, a fim de se abrir aos imperativos de uma consciência formada à luz da dignidade de cada pessoa humana, tal como foi revelada e confirmada por Jesus Cristo. abrir o coração e o espírito para que a justiça, o amor e o respeito à dignidade e aos destinos do homem penetrem no pensamento e inspirem a atuação.

9. Para a construção de um mundo à medida do homem, a Igreja, “perita em humanidade”, oferece a própria colaboração. Mas também solicita a vossa, plena, sincera, generosa, sem segundas intenções.

Depende de vós todos e de cada um que o futuro do Brasil seja um futuro de paz, que a sociedade brasileira seja uma convivência na justiça. Creio que é chegada a hora de todo homem e toda mulher deste imenso país tomar uma resolução e empenhar decididamente as riquezas do próprio talento e da própria consciência para dar à vida da nação uma base que há de garantir um desenvolvimento das realidades e estruturas sociais na justiça. Alguém que reflete sobre a realidade da América Latina, tal como se apresenta na hora atual, é levado a concordar com a afirmação de que a realização da justiça neste Continente está diante de um claro dilema: ou se faz através de reformas profundas e corajosas, segundo princípios que exprimem a supremacia da dignidade humana, ou se faz – mas sem resultado duradouro e sem benefício para o homem, disto estou convencido – pelas forças da violência. Cada um de vós deve sentir-se interpelado por este dilema. Cada um de vós deve fazer a sua escolha nesta hora histórica.

Irmãos e irmãs. Meus amigos! Não tenhais medo de olhar para a frente, de caminhar para a frente, rumo ao ano 2000! Um mundo novo deve surgir, em nome de Deus e do homem! Não recueis! A Igreja espera muito de vós. “Queres, junto comigo, construir o mundo, elevá-lo, torná-lo melhor e mais digno de ti e de teus irmãos, que são os meus irmãos?”. Não frustreis a expectativa de Cristo!

Não desiludais as esperanças do homem vosso contemporâneo!

Neste esforço imane, mas estupendo, sabei que o Papa está convosco, reza por vós, vos traz no coração e, em nome de Cristo, vos abençoa!"

Encontro do Papa São João Paulo II com os Leprosos
Salvador da Bahia, 7 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

“Filhos e filhas caríssimos
1. A vossa presença desperta na minha alma um sentimento particular, algo daquela emoção e daquele afeto que Nosso Senhor Jesus Cristo experimentou, durante o ministério da vida pública, para com os doentes que de todas as partes acorriam para ouvir a sua palavra de Salvação e ser curados de suas enfermidades.

Entre tantos episódios de cura narrados pelos quatro Evangelistas, vos lembrareis decerto daquele que descreve São Lucas: o homem doente que de rosto em terra Lhe suplicava: “Senhor, se queres, podes limpar-me”. Jesus estende a mão, toca-o e lhe diz: “Quero; fica limpo”. E desaparecem todas as marcas da doença (Cf. Lc 5, 12-13).

O humilde Vigário de Cristo está hoje no meio de vós com a mesma intensidade de afeto com que o Messias divino acolhia e abençoava as multidões e, de modo especial, as pessoas aflitas pela enfermidade que aflige a vós também.

2. Comentam muitos que a purificação externa do corpo era o símbolo de uma transformação interior: o renascer de uma pureza, de uma confiança, de uma coragem que vêm do Alto. O Papa gostaria que seu contacto convosco vos trouxesse estes inapreciáveis sentimentos interiores. Ele vos exorta a não vos deixardes abater nem pelo medo nem pela falta de confiança. A não cederdes à tentação do isolamento. A unirdes a confiança nos progressos da medicina a uma atitude de constante e confiante oração.

3. Em nome daquele mesmo Jesus, que eu hoje represento diante de vós, exorto-vos também a utilizardes bem e valorizardes o sofrimento que trazeis impresso no vosso corpo e no vosso espírito. Recordai-vos sempre de que a dor nunca é vã, nunca é inútil. Antes, precisamente no momento em que fere a vossa existência, limitando-a na sua afirmação humana, se é elevada a uma dimensão sobrenatural, ela pode ao mesmo tempo sublimar e resgatar essa existência para um destino superior que ultrapassa o limiar da situação pessoal para atingir a sociedade inteira, tão necessitada de quem saiba sofrer e oferecer-se pela sua redenção. Se aplicardes à vossa dor estas grandes intenções, que superam o nível puramente humano, colaborareis com Cristo no plano da salvação e sereis capazes de difundir ao redor de vós maravilhosos exemplos de força moral, que somente quem sofre com esta fé na alma pode comunicar aos outros.

4. Confio muito na vossa lembrança, no vosso auxílio e na vossa oração, não só pelo bom êxito desta viagem apostólica no Brasil, mas também por todas as solicitudes que trago no meu coração de Pastor da Igreja universal.

Com estes pensamentos, saudando-vos com benevolência e exprimindo meu alto apreço por aqueles que cuidam de vós e vos assistem, confio-vos à materna proteção da Santíssima Virgem, de quem sei que sois muito devotos, e concedo-vos de todo o coração a Bênção Apostólica."

Discurso do Papa JPII durante uma visita à Favela dos Alagados
Salvador (Bahia), 7 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Caríssimos amigos, irmãos e irmãs em Cristo
1. Este encontro com vocês, me traz grande alegria; o calor da sua acolhida me impressiona e me comove. Saudando a todos, com afeto em Cristo Senhor, elevo a Deus um pensamento agradecido, por me ter permitido vir até aqui, visitar o lugar onde vivem e sobretudo ver vocês.

Quando viajo em minhas visitas pastorais, com a missão de representar Cristo diante de toda a Igreja esparsa pelo mundo, lembro-me sempre de que o mesmo Cristo exigiu de São Pedro e, por conseguinte, daqueles que viessem a ocupar o lugar dele, na “Igreja que preside à assembléia universal da caridade” (S. Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos, “Inscriptio”, 1,1-2, 2: Funk, 1, 213), uma profissão de amor. Amor a este Cristo, sem o qual é impossível apascentar bem os fiéis cristãos, que Ele chamava os “cordeiros” e as “ovelhas”. E o amor ao próximo, e em primeiro lugar aos irmãos na fé. Por este amor, todos saberão que somos seus discípulos (cf. Jo 13, 35).

Em obediência a este mandamento, eu faço o possível por encontrar-me com todos: ricos e pobres, os que vivem com comodidade, ao menos relativa, e os que têm grandes dificuldades para viver. A todos quero falar e testemunhar o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, para que creiam n’Ele e possam chegar à Salvação.

Mas os menos favorecidos de bens da terra, porque têm mais necessidade de ajuda e conforto, ocupam sempre um lugar especial nesta preocupação de ser fiel e continuar a missão de Cristo: “anunciar aos pobres a Boa Nova” da salvação de Deus (cf. Lc 4, 18).

Considero como dito a vocês tudo aquilo que dizia ao visitar a favela do Vidigal no Rio de Janeiro. Eu me sinto interpelado, como a Igreja se sente interpelada, pela proclamação das bem-aventuranças por parte do Cristo Senhor e me sinto comprometido para fazer algo, para que os homens todos sejam interpelados por tal proclamação, mobilizados para a grande tarefa de promoção de maior justiça, a construção de uma sociedade sempre mais justa, por isso mesmo mais humana. A justiça, porém, novo nome do bem comum, como já tive ocasião de dizer, só se consolidará sobre a base da conversão das mentes e das vontades: fazer que cada homem tenha coração de pobre: “Bem-aventurados os pobres de espírito”(Mt 5,3).

2. Assim estou aqui porque quero ser fiel ao espírito de Cristo e porque amo a vocês, como são e como se apresentam. Todos são pessoas humanas e meus irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo.

Pensei em tantos bairros pobres de Salvador e de todo o Brasil, que gostariam de receber a visita do Papa. O Papa teria um prazer especial em fazer esta visita a cada casa ou barraco onde vivem famílias ou pessoas humildes, às vezes em dura pobreza. Não sendo possível fazê-lo, quero que a visita que agora lhes faço seja também um símbolo, como se entrando aqui eu estivesse penetrando em todos os bairros iguais a este.

Dizia que aproximando-me de vocês eu encontro pessoas humanas: seres que possuem uma inteligência sedenta da verdade e uma vontade que deseja o amor, filhos de Deus, almas redimidas por Cristo, e portanto seres ricos de uma dignidade que ninguém pode machucar sem ferir o próprio Deus. Assim, vocês apreciam, certamente, quem lhes dá conforto, alento, coragem e esperança; quem os ajuda a crescer e desenvolver-se em sua capacidade de pessoas humanas e a superar os obstáculos à própria promoção; quem os ajuda a amar em um mundo de ódio e a ser solidários em um mundo terrivelmente egoísta. Mas é claro que vocês têm consciência de não serem somente objeto de benemerências mas pessoas ativas na construção do próprio destino e da própria vida. Queira Deus que sejamos muitos a oferecer a vocês uma colaboração desinteressada para que se libertem de tudo quanto de certo modo os escraviza, mas em pleno respeito àquilo que vocês são, em pleno respeito ao seu direito de serem os primeiros autores da própria promoção humana. Minha maior alegria, foi a de saber de várias fontes, que há em vocês, entre outras, duas grandes qualidades: vocês têm, graças a Deus, o sentido de família, e vocês possuem um grande senso de solidariedade para se ajudarem uns aos outros, quando é preciso.

Continuem a cultivar esses bons sentimentos, a ser muito amigos de todos, mesmo daqueles que, por qualquer motivo, parece lhes fecham o coração. Vocês sejam corações sempre abertos!

3. Vejam: só o amor conta – não é demais repetir isso – só o amor constrói. Vocês têm de lutar pela vida, fazerem tudo para melhorar as próprias condições em que vivem, é um dever sagrado, porque essa é também a vontade de Deus. Não digam que é vontade de Deus que vocês fiquem numa situação de pobreza, doença, má habitação que contraria, muitas vezes, a sua dignidade de pessoas humanas. Não digam: “É Deus quem quer”. Sei que isso não depende só de vocês. Não ignoro que muita coisa deverá ser feita por outros para acabar com as más condições que afligem vocês ou para melhorá-las. Mas vocês é que têm de ser sempre os primeiros no tornar melhor a própria vida em todos os aspectos. Desejar superar as más condições, dar as mãos uns aos outros para juntos buscar melhores dias, não esperar tudo de fora mas começar a fazer todo o possível, procurar instruir-se para ter mais possibilidades de melhoria: estes são alguns passos importantes na caminhada de vocês.

Assim, deste lugar e neste momento, em nome de vocês como seu irmão em humanidade, só com o poder do amor e a força do Evangelho de Jesus Cristo, eu peço a todos aqueles que podem ou devem ajudar que deixem entrar no próprio coração o eco das angústias dos corações de vocês, vendo faltar o alimento, a roupa, a casa, a instrução, o trabalho, os remédios, enfim tudo aquilo que é necessário para alguém viver como pessoa humana. E que esse meu clamor suscite um diálogo, mesmo que seja silencioso, um diálogo de amor, que se exprime com atos de ajuda e de partilha entre irmãos. Deus, Pai de nós todos, verá com agrado e abençoará tal bondade, como Jesus prometeu: “Dai, e vos será dado” (Lc 6, 38).

Com este apelo às consciências, desejo encorajar o desejo de vocês, que é também o meu, de melhorarem seu nível de vida, para sempre se tornarem: mais homens, com toda a sua dignidade; mais irmãos de todos os homens, na família humana; e mais filhos de Deus, sabendo e praticando o que isso quer dizer. E com grande afeto, abençoo a todos vocês, às suas famílias e a todos aqui dos Alagados, bem como a todos os presentes. O Papa reza por todos; rezem também por ele, principalmente nestes dias em que está no Brasil."

Homilia do Papa São João Paulo II na Santa Missa em Salvador
Salvador da Bahia, 7 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Arcebispo Cardeal Avelar Brandão Vilela,
Senhor Arcebispo Coadjutor Dom João de Souza Lima,
Senhor Bispo Auxiliar Dom Tomás Murphy,
Meus irmãos no Episcopado e no Sacerdócio ministerial,
Amados irmãos e irmãs, religiosos e leigos
1. Há quase 480 anos, cercado pelo grupo dos descobridores e talvez por índios aturdidos e curiosos, Frei Henrique de Coimbra celebrava a Santa Missa sobre as areias da praia logo batizada como Porto Seguro. Hoje, quisestes que o Sacrifício Eucarístico celebrado pelo Papa aqui em Salvador fosse uma rememoração daquela primeira Missa no Brasil. Isto confere ao presente rito um caráter singular e uma dimensão nova. São as raízes históricas do Brasil que nesta celebração se deixam ver.

Neste contexto, as leituras que ouvimos proclamar, trazem uma mensagem e pedem a nossa meditação.

O texto de São Mateus retrata um instante decisivo da Igreja. É o momento em que o Ressuscitado, ao termo de sua vida terrena, deve voltar ao Pai. Ficam os Apóstolos e fica a Igreja, nascida do poder dado ao Verbo encarnado e por Ele transmitido aos Apóstolos. Qual a missão dela e deles? “De todos os povos fazei discípulos” – ordena o Senhor Jesus – ensinai a viver segundo o Evangelho. Batizai em nome do Deus Uno e Trino. Sabei que eu me vou, mas permaneço convosco até o fim (cf. Mt 28, 18-20).

O Apóstolo Paulo reflete sobre esta missão, tendo diante dos olhos a vida concreta de uma Igreja entre outras. Ele as vê una e múltipla. Múltipla na diversidade dos carismas, dos ministérios e atividades – una no único Espírito que suscita a diversidade. Múltipla na variedade de raças, de condições sociais, de proveniência dos que são chamados a compô-la – una porque um só o Batismo que a todos introduz na Igreja. Múltipla como múltiplos são os membros – una à imagem da unidade do corpo.

A Igreja vem meditando estes textos e estas mensagens desde os seus albores, mas tem consciência de que ainda não os aprofundou como desejaria (e será que os aprofundará algum dia?). Em diferentes situações concretas ela relê esses textos e perscruta esta mensagem no desejo de descobrir neles uma aplicação nova. Tomamos contacto com eles mais uma vez nesta expressiva celebração eucarística.

Quisestes que a missa do Papa em sua passagem por esta Cidade seja uma rememoração de outra Missa: aquela que foi a primeira celebrada na terra apenas descoberta. Que vos dizer, então?

2. A primeira observação a fazer é que, enquanto a maioria dos povos vieram a conhecer a Cristo e ao Evangelho depois de séculos de sua história, as nações do continente latino-americano e, entre elas de modo especial o Brasil, nasceram cristãs. As caravelas que no dia 3 de abril 1500 aportavam à baía de Porto Seguro, traziam, também, os primeiros missionários e evangelizadores, os filhos de São Francisco. Desembarcados Pedro Álvares Cabral e os primeiros colonizadores, foi erguida uma Cruz e rezada a Primeira Missa, a que já estiveram presentes, admirados, alguns indígenas. Deu-se às novas terras o nome de Terra de Santa Cruz. Esses fatos, na aurora do Brasil, haveriam de marcar, profundamente, a história já agora cinco vezes secular da nova nação que nascia para o Ocidente.

Idêntico fenômeno verificou-se por toda a América Latina, como se lê nas conclusões de Puebla:
“A América Latina constitui o espaço histórico em que se dá o encontro de três universos culturais: o indígena, o branco e o africano, que foram enriquecidos, posteriormente, por diversas correntes migratórias. Aí se dá, ao mesmo tempo, uma convergência de maneiras diferentes de ver o mundo, o homem e Deus, e de reagir frente a eles. Forjou-se uma espécie de mestiçagem latino-americana...” (Puebla, 307).

O certo é que apóstolos, como o Padre José de Anchieta, que tive a alegria de incluir no catálogo dos Beatos da Igreja, no passado dia 22 de junho, colocaram-se decididamente ao lado das populações indígenas, aprendendo-lhes a língua, assemelhando-lhes os gostos, adaptando-se à sua mentalidade, defendendo-lhes, a vida e, simultaneamente, anunciando-lhes a verdade salvífica de Jesus Cristo, convertendo-os para o Evangelho, batizando-os e integrando-os na Igreja.

3. Surge, assim, o catolicismo brasileiro, resultado, como o próprio Brasil, de um dos caldeamentos mais importantes da história humana. Aqui se mesclaram, durante três séculos, o índio, o europeu e o africano e, a partir do século passado, a eles vieram somar-se o sangue e as culturas dos árabes, como os cristãos maronitas, dos migrantes japoneses asiáticos, hoje constituindo uma grande comunidade, predominantemente católica. Neste sentido o Brasil oferece um testemunho altamente positivo. Aqui vai sendo construída com inspiração cristã uma comunidade humana multi-racial. Um verdadeiro tapete de raças, como afirmam os sociólogos, amalgamadas todas pelo vínculo da mesma língua e da mesma Fé.

Definem-se desse modo, a largos passos, as características deste povo jovem, dinâmico, laborioso, grande esperança da Igreja. Um povo de profunda religiosidade, como provam não só o nome de tantos Estados – São Paulo, Espírito Santo, Santa Catarina – e de tantas capitais – Belém, São Luiz, Salvador – ou a sua notável devoção à Mãe de Deus, invocada sob vários títulos, mas, especialmente, sob o título de Nossa Senhora Aparecida; as concorridas festas populares do Círio de Nazaré, do Senhor do Bonfim, do Divino; as participadíssimas procissões do Encontro, do Senhor Morto, do Senhor Ressuscitado, dos Santos Padroeiros; mas também a adesão dos fiéis aos seus Bispos e sacerdotes, ao Papa, Vigário de Cristo e Sucessor de Pedro.

Essas são outras tantas provas da grande religiosidade dos brasileiros, católicos na maioria absoluta dos seus filhos e filhas.

Entretanto, é preciso olhar mais para a frente que para trás. É preciso tirar do passado as lições para o futuro. É preciso promover o verdadeiro progresso, processo de desenvolvimento integral, salvando a todo custo os sagrados valores da Fé, da Moral e da Família. Esse é, queridos filhos e filhas, o grande desafio que deveis enfrentar. Essa é a vossa tarefa, irmãos no Episcopado, sacerdotes, religiosas e leigos católicos. Esforçai-vos por não desmerecer as esperanças que o Papa deposita em vós. Sede dignos dos missionários que vos evangelizaram, dignos dos cristãos que vos precederam na Fé.

4. Sei que se discutem também entre vós, como na África há pouco visitada por mim, os rumos exatos do processo de aculturação. Sim, é sagrada e digna de respeito em seus elementos essenciais, a cultura de cada povo. Mas é importante, também, lembrar os direitos de Deus, da Igreja e do Evangelho. Como, igualmente, o fundamental direito de todo homem aos benefícios da redenção operada por Cristo Jesus. “Todo homem deve poder encontrar-se com Cristo”, lembrava eu na Encíclica “Redemptor Hominis” (n. 13). Todo homem, aliás, necessita de Cristo, também Ele homem perfeito e salvador do homem. Cristo é a luz que, integrada nas mais diversas culturas, as ilumina e eleva por dentro. A verdadeira Fé não está em contradição nem mesmo com os valores religiosos da religião de cada povo, pois revela-lhes a verdadeira face de Deus, que é Pai. A Fé cristã respeita as expressões culturais de qualquer povo, desde que sejam verdadeiros e autênticos valores. Mas deixar de transmitir a todos os homens o íntegro depósito da Fé, seria uma infidelidade à própria missão da Igreja. Seria não reconhecer aos homens um fundamental direito seu: o direito à verdade.

É claro que o anúncio da Fé supõe uma adaptação à mentalidade dos que são evangelizados. De nenhum modo, porém, implica essa adaptação uma incompleta expressão e anúncio do Evangelho.

Somos guardiães da Palavra de Deus e, portanto, não temos direito de mutilá-la em nossas pregações a quem quer que seja. Nem se diga que a evangelização deverá, necessariamente, seguir ao processo de humanização. O verdadeiro apóstolo do Evangelho é o que vai humanizando e evangelizando ao mesmo tempo, na certeza de que, quem evangeliza, também civiliza.

Assim deverá continuar sendo. Estejam sempre lembrados os missionários e evangelizadores deste querido Brasil, que o seu compromisso principal é com o Evangelho, sendo competência e dever primário do Estado oferecer a todo brasileiro as condições exigidas por uma vida digna, resultado da conveniente satisfação de todas as necessidades primárias da existência. À Igreja compete apenas subsidiariamente a solução dos problemas de ordem temporal.

A Igreja deseja entrar em contato com todos os povos e todas as culturas. Ela mesma deseja enriquecer-se com os valores verdadeiros das mais diversas culturas. A liturgia é um dos campos - não certamente o único - para esse intercâmbio entre a Igreja e as culturas. Nesse sentido, a experiência mostra, de modo convincente, que é possível salvaguardar religiosamente aquelas verdades e expressões culturais que a legítima autoridade eclesiástica propõe como de instituição divina, e respeitar com amorosa e atenta fidelidade os textos e ritos que a mesma legítima autoridade deliberadamente exclui da criatividade dos indivíduos e grupos - comentadores, animadores litúrgicos, presidentes de assembléias eucarísticas, celebrantes principais dos sacramentos - e ao mesmo tempo dar à celebração um cunho de encarnação no ambiente em que ela se celebra. A sabedoria com que os presidentes e celebrantes cumprem o seu papel é de extrema importância.

Desse intercâmbio permanente e fecundo hão de beneficiar-se tanto a cultura indígena, quanto a negra e a européia, como também - por que não dizê-lo -, a própria Igreja em vosso País.

5. E aqui cabe uma referência, ainda que breve, a um tema de relevo. Vários documentos da Igreja Universal, da Igreja na América Latina e das vossas Igrejas Particulares, têm tratado do problema da religiosidade popular. Lembro a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (n. 48), de meu predecessor Paulo VI, os Documentos de Medellín, as Conclusões de Puebla (cf. Puebla, 444-469) e a minha Encíclica “Redemptor Hominis” (nn.13 e 14). Verifico com alegria, que mesmo no Brasil realizam-se pesquisas, escrevem-se ensaios e faz-se um esforço sempre maior, no sentido de respeito à religiosidade popular que, aliás, é também ela, expressão de uma dimensão profunda do homem. É a própria alma do povo que aflora nas expressões e manifestações da religiosidade popular, algumas de grande singeleza. No mais profundo da religiosidade popular, encontra-se sempre uma verdadeira fome do sagrado e do divino.

É preciso, pois, não desprezá-la, não ridicularizá-la. É preciso cultivá-la e servir-se da religiosidade popular para a melhor evangelização do povo. As manifestações religiosas populares, purificadas dos seus desvalores, de toda superstição e magia, é, sem dúvida um meio providencial para a perseverança das massas em sua adesão à Fé dos seus antepassados e à Igreja de Cristo.

“Como toda a Igreja, a religião do povo deve ser evangelizada sempre de novo. Na América Latina, depois de quase 500 anos de pregação do Evangelho e do batismo generalizado de seus habitantes, esta evangelização há de apelar para a "memória cristã de nossos povos". Será um esforço de pedagogia pastoral, em que o catolicismo popular seja assumido, purificado, completado e dinamizado pelo Evangelho. Isso implica, na prática, retomar o diálogo pedagógico, a partir dos últimos elos que os evangelizadores de outrora deixaram no coração de nosso povo. Para tanto requer-se conhecer os símbolos, a linguagem silenciosa, não verbal, do povo, com o fim de conseguir, num diálogo vital, comunicar a Boa Nova mediante um processo de reinformação catequética” (Puebla, 457).

6. Visitando o Estado da Bahia e a vossa bela cidade de Salvador, berço da nação brasileira e ponto de partida da evangelização do vosso grande País, saúdo, de todo coração, aos vários grupos étnicos que aqui se encontraram e fundiram: os indígenas, os homens de cor, os europeus de Portugal e de outras nações, os orientais e os asiáticos. Perseverai com grande constância na estrada percorrida até hoje. Sede fiéis à vossa missão histórica na América Latina e no Mundo.

Estais demonstrando com êxito como a lei fundamental do cristianismo, a fraternidade, pode levar à convivência harmoniosa e construtiva do futuro os mais diferentes povos. Estais demonstrando como a força de vontade aliada à Fé cristã, pode construir uma democracia marcada de humanismo e de fraternidade.

De vossas raízes históricas se pode dizer portanto, que elas nos transmitem duas lições: a de uma cultura impregnada, desde o primeiro momento de sua existência, pelos valores da Fé e da capacidade que tem esta Fé para integrar raças e etnias as mais diversas. Não sem razão dizem os estudiosos do Brasil que, juntamente com a língua, é a fé católica da maioria do vosso povo um eminente fator dessa integração que desafia o obstáculo das enormes distancias, das difíceis comunicações, das diversidades climáticas.

Queira Deus que a diversidade na unidade evocada pelos textos desta Missa se realize com a possível perfeição em todos os níveis de vossa comunidade nacional. Para tanto o Senhor vos cubra com suas bênçãos."

Homilia do Papa JPII na Santa Missa dedicada aos Trabalhadores Rurais
Recife, 7 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Queridos irmãos e irmãs, vocês especialmente, camponeses do Nordeste
e, representados por vocês, os camponeses de todo o Brasil

1. Minha primeira palavra, muito simples mas que responde a um impulso do coração, é de saudação muito cordial a vocês.

Saúdo os que estão aqui, à custa de não sei quantos sacrifícios. Vocês vieram certamente trazidos pela fé e desejosos de ver e escutar o Vigário de Nosso Senhor Jesus Cristo. Este gesto não me surpreende porque sei há muito tempo do grande espírito religioso que é o de vocês.

Saúdo os que não puderam vir apesar do grande desejo. Espero que minha voz possa chegar a eles ao menos pelo rádio.

Por mim teria prazer em cumprimentá-los de um a um, mas vocês compreendem que é totalmente impossível. Fiquem sabendo ao menos, como se eu o dissesse a cada um em particular, que o Papa tem muita consideração por vocês, sabe e aprecia o que vocês fazem, os ama como verdadeiros filhos e está feliz com este encontro.

2. E por que este encontro com camponeses do Nordeste? Primeiro, porque eles desempenham um papel de enorme importância na sociedade brasileira em nossos dias e merecem uma palavra de estímulo e encorajamento daquele que recebeu a missão de Pastor universal da Igreja. Depois, porque eles enfrentam situações particularmente dolorosas de marginalização - penúria, subalimentação, insalubridade, analfabetismo, insegurança - e precisam daquela palavra de conforto, de esperança e de orientação que um pai deve de modo particular aos filhos mais abandonados e mais provados pela vida. Eu não poderia passar pelo Brasil sem dirigir-lhes estas palavras.

3. Não é segredo para ninguém que o mundo atravessa atualmente uma hora difícil de sua história. Problemas graves golpeiam todos os setores da vida dos povos e das Nações, e, de modo particular, o setor agrícola. Como tive ocasião de dizer por ocasião de minha visita à Sede da Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura, o setor agrícola é um setor “mantido, por um tempo demasiadamente longo, à margem do progresso dos níveis de vida, um setor atingido de maneira particularmente dolorosa pela rápida e profunda mutação sócio-cultural do nosso tempo. Isto põe em evidência as injustiças herdadas do passado; desestabiliza homens, famílias e sociedades, acumula as frustrações e obriga a migrações frequentemente maciças e caóticas”(João Paulo II, Discurso aos diretores da FAO, 2; 12 de Novembro de 1979).

Acompanho com infinito interesse os esforços convergentes de todas as boas vontades, e não tenho deixado passar uma ocasião sequer de apoiá-los com a oração, com a palavra, com meu empenho pessoal na esperança de que também no domínio da agricultura, esses esforços cheguem às melhores soluções em vista do bem pessoal de cada homem, no respeito às exigências do bem comum.

As considerações que passo a fazer no quadro deste nosso encontro são ditadas por um só propósito: partindo da missão própria da Igreja e do papel que lhe cabe, refletir quanto possível à luz do magistério desta mesma Igreja no campo social e ajudar assim a “estabelecer a comunidade humana segundo a Lei divina”(cf. Gaudium et Spes, 42). Deste modo, com a força do Espírito, que é a única de que dispõe, em pleno respeito à autonomia do domínio temporal mas consciente de suas responsabilidades, a Igreja não quer omitir-se quando se trata de fazer que “a vida humana se torne cada vez mais humana” e de conscientizar “para que tudo aquilo que compõe esta mesma vida corresponda à verdadeira dignidade do homem”(Redemptor Hominis, 14).

4. Uma reflexão séria e serena sobre o homem e a convivência humana em sociedade, iluminada e robustecida pela Palavra de Deus e pelo ensinamento da Igreja desde as suas origens, nos diz que a terra é dom de Deus, dom que Ele faz a todos os seres humanos, homens e mulheres, que Ele quer reunidos em uma só família e relacionados uns com os outros em espírito fraterno (Gaudium et Spes, 24). Não é lícito, portanto, porque não é segundo o desígnio de Deus, gerir este dom de modo tal que os seus benefícios aproveitem só a alguns poucos, ficando os outros, a imensa maioria, excluídos. Mais grave ainda o desequilíbrio, e mais gritante a injustiça a ele inerente, quando esta imensa maioria se vê condenada por isso mesmo a uma situação de carência, de pobreza e de marginalização.

O próprio direito de propriedade, em si mesmo legítimo, deve, numa visão cristã do mundo, cumprir a sua função e observar a sua finalidade social (Aos índios mexicanos em Cuilapán, México, 29 de Janeiro de 1979). Assim, no uso dos bens possuídos, a destinação geral que Deus lhes deu e as exigências do bem comum prevalecem sobre vantagens, comodidades e, por vezes, mesmo necessidades não primárias de origem privada. Isto é verdade também – como tive oportunidade já de dizê-lo – quando se fala do mundo rural e do cultivo da terra, pois a terra foi posta por Deus à disposição do homem. No primeiro capitulo do Gênesis (texto que acabamos de escutar) Deus diz: “Tomai posse da terra... eu vos dou as plantas... e as árvores que trazem sementes... Isto será vosso alimento”(Gn 1, 29). A terra é do homem porque ao homem Deus a confiou e, por seu trabalho ele a domina (cf. Gn 1, 28). Não é pois admissível que no desenvolvimento geral de uma sociedade, fiquem excluídos do verdadeiro progresso digno do homem precisamente os homens e as mulheres que vivem em zona rural, aqueles que estão prontos a tornar a terra produtiva graças ao trabalho de suas mãos, e que têm necessidade da terra para alimentar a família.

Há quinze anos atrás, o Concílio Vaticano II – a Igreja tomando consciência de si mesma e do mundo – proclamava, referindo-se exatamente à questão que nos interessa: “Em muitas regiões, dadas as peculiares dificuldades no setor agrícola... importa ajudar os que se dedicam à agricultura, para que não fiquem reduzidos à condição de cidadãos de segunda ordem” (Gaudium et Spes, 66). E não é impensável que se vejam reduzidos a condições ainda bem menos nobres.

Não basta efetivamente dispor de terra em abundância, como sucede aqui no vosso querido Brasil, quer-se uma legislação justa em matéria agrária, para se poder dizer que temos uma sociedade a corresponder à vontade de Deus, quanto à terra e às exigências da dignidade da pessoa humana, de todas as pessoas humanas que a habitam. É preciso que a legislação seja atuada eficazmente e sirva o bem de todos os homens e não apenas interesses de minorias ou individuais.

Também aqui à abundância de terras e a uma legislação adequada há de juntar-se mais do que boa vontade, uma sincera conversão do homem ao homem na sua plenitude transcendente. O homem do campo, identifica-se com o seu trabalho e com o chão, do qual faz brotar o sustento de tantos também nas grandes cidades. Aí lança raízes profundas, que marcam indelevelmente o seu ser.

Arrancá-lo do seu torrão, empurrando-o para um êxodo do incerto, em direção das grandes metrópoles, ou não assegurar os seus direitos à legítima posse da terra, é desrespeitar seus direitos de homem e de filho de Deus. É introduzir um perigoso desequilíbrio na sociedade. Além do mais, o integral desenvolvimento acertado e humano saberá sempre garantir em igualdade de condições, tanto o crescimento técnico e industrial de uma Nação, como uma atenção prioritária às questões agrícolas tão indispensáveis em nossos dias no quadro de uma sociedade independente, harmoniosa e justa. Neste aspecto, limito-me a chamar a atenção para as diretrizes dadas pelo meu predecessor João XXIII, na encíclica “Mater et Magistra”: para onde vais?: fiz esta pergunta nas várias etapas de minha viagem apostólica pelo Brasil. Quero repeti-la também aqui, para vocês e com vocês, para todos aqueles que detêm uma parcela de responsabilidade pelo mundo rural e pelo bem comum; para onde vais?

Que a resposta seja uma atitude corajosa, firme, inspirada pelos lídimos valores cristãos em defesa pela promoção dos direitos do homem, do homem do campo, também ele partner na vida e construção de uma sociedade cada dia mais justa e por isso mesmo mais humana.

No pensamento da Igreja, considerar que a organização social está a serviço do homem e não ao contrário, é um princípio fundamental. Este princípio vale para todos e sempre. Vale principalmente para aqueles que são mandatados pela sociedade para garantir o bem de todos. As iniciativas que eles tomam, no tocante ao setor agrícola, devem ser iniciativas em favor do homem, seja no plano legislativo, seja no domínio judiciário, seja ainda no plano da salvaguarda dos direitos dos cidadãos. Uma situação na qual a população, também a da zona rural, vê que sua dignidade humana é desrespeitada, leva à ruína, pois deixa o campo aberto a outras iniciativas, inspiradas estas pelo ódio e pela violência.

5. Os trabalhadores da terra, como os trabalhadores de qualquer outro ramo da produção, são e devem permanecer sempre, aos próprios olhos e aos olhos dos outros, no plano dos conceitos e na ordem prática, antes de tudo pessoas humanas: devem ter possibilidades de realizar as virtualidades contidas em seu ser, as possibilidades de “ser mais” homem, e, ao mesmo tempo, ser tratado de acordo com a sua dignidade humana. Sendo “o trabalho para o homem, e não o homem para o trabalho”, é exigência fundamental e plenamente respeitosa da sua dignidade, que ele possa tirar do mesmo trabalho os meios necessários e suficientes para fazer frente, com decência, às próprias responsabilidades familiares e sociais.

Jamais o homem é mero “instrumento” de produção.

Assim no seio de uma mesma comunidade política bem ordenada, justiça e humanidade não se coadunam nem se conciliam “com um certo abuso da liberdade por parte de alguns, abuso ligado precisamente a um modo de comportar-se consumístico, não controlado pela ética, enquanto isso limita simultaneamente a liberdade dos outros, isto é daqueles que sofrem notórias carências e se vêem empurrados para condições de ulterior miséria e indigência” (cf. Redemptor Hominis, 16), numa versão gigantesca da parábola bíblica do rico e do pobre Lázaro (cf. Lc 16,19-31).

Nesta parábola, Cristo não condena o rico porque é rico, ou porque veste luxuosamente. Ele condena fortemente o rico que não leva em consideração a situação de penúria do pobre Lázaro, que deseja tão somente alimentar-se das migalhas que caem da mesa do festim. Cristo não condena a simples posse de bens materiais. Mas as suas palavras mais duras dirigem-se para aqueles que usam sua riqueza de maneira egoísta, sem se preocupar com o próximo, a quem falta o necessário.

Com estas palavras, Cristo coloca-se do lado da dignidade humana, do lado daqueles cuja dignidade não é respeitada, do lado dos pobres. “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus”(Mt 5,3). Sim, bem-aventurados os pobres, os pobres de bens materiais que conservam, no entanto, sua dignidade de homem. Bem-aventurados os pobres, aqueles que, por causa de Cristo, têm uma especial sensibilidade por seu irmão ou sua irmã que padece necessidade; por seu próximo que é vítima de injustiças; por seu vizinho que sofre tantas privações, inclusive a fome, a falta de emprego ou a impossibilidade de educar dignamente seus filhos.

Bem-aventurados os pobres, os que sabem se desapegar de suas posses e de seu poder, para colocá-los a serviço dos necessitados, para se comprometer na busca de uma ordem social justa, para promover as mudanças de atitudes necessárias a fim de que os marginalizados possam encontrar lugar à mesa da família humana.

No que diz respeito aos bens de primeira necessidade – alimento, vestuário, habitação, assistência médico-social, instrução de base, formação profissional, transporte, informação, possibilidades de se distrair, vida religiosa – impõe-se que não haja estratos sociais privilegiados. Que entre os ambientes urbanos e ambientes rurais não se verifiquem desigualdades clamorosas, e quando estas se criam, haja uma pronta aplicação dos meios adequados para que sejam eliminadas ou reduzidas até onde for possível. Nisto todos e cada um hão de sentir-se comprometidos: pessoas, grupos sociais e poderes públicos a todos os níveis.

6. Aos trabalhadores da terra, como aos demais trabalhadores, não podem ser negados por nenhum pretexto, o direito de participação e comunhão, com senso de responsabilidade, na vida das empresas e nas organizações destinadas a definir e salvaguardar os seus interesses e mesmo na árdua e perigosa caminhada rumo à indispensável transformação das estruturas da vida econômica, sempre em favor do homem.

Uma tal presença ativa dos trabalhadores nestes diversos níveis em sociedade, a que os liga a sua atividade, pressupõe sempre uma economia ao serviço do homem, com toda a verdade do seu ser pessoal. Assim, para superar contrastes que surgem cada vez que se confunde liberdade com instinto do interesse individual e coletivo, ou com instinto de luta e de domínio, quaisquer que sejam as cores ideológicas que os polarizem, para que tal participação dos trabalhadores seja eficaz e construtiva, impõe-se uma prévia conversão das mentes, das vontades e dos corações: a conversão ao homem, à verdade do homem. Conhecer e aceitar a verdade é a condição básica da liberdade: “Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” (Jo 8,32).

7. Na linguagem bíblica o pensamento de Deus a respeito da relação homem-terra se exprime nestes termos: “Tomou o Senhor Deus o homem e o pôs no jardim do Éden, para cultivá-lo e guardá-lo” (Gn 2,15). Noutra passagem se lê que ao primeiro casal humano disse: “... Povoai a terra, submetei-a e dominai” sobre a criação (cf. Gn 1,28).

Ora, “dominar” e “cultivar” a terra deveria ser o princípio sempre observado por todos os homens na administração deste dom de Deus; o princípio que dita a linha de ação absolutamente obrigatória para todos aqueles que são responsáveis e interessados na questão da terra: pessoas investidas de públicos poderes, técnicos, empresários e trabalhadores.

Sucede, no entanto, que “o homem parece não dar-se conta muitas vezes de outros significados do seu ambiente natural, fora daqueles que servem para os fins de um uso ou consumo imediatos.

Quando, ao contrário, era vontade do Criador que o homem comunicasse com a natureza como "senhor" e "guarda" inteligente e nobre, e não como "desfrutador" e "destrutor" sem respeito algum”(Redemptor Hominis, 15).

Perante os recursos imensos e belezas maravilhosas desta grande Nação, nasce espontaneamente o grito da alma: cultivai e guardai o vosso querido Brasil! Aproveitai e dominai esses recursos, fazei que eles rendam mais em favor do homem, do homem de hoje e de amanhã. Aqui, quanto ao uso do dom de Deus que é a terra, deve-se pensar muito nas gerações futuras, deve-se pagar um tributo de austeridade, para não debilitar, reduzir ou, pior ainda, tornar insuportáveis as condições de vida das futuras gerações. Exigem-no a justiça e a humanidade!

8. Uma última palavra, especialmente para aqueles que, quando trabalham, têm a felicidade de caminhar à luz de Cristo. O trabalho é fator de produção, fonte de bens econômicos, meio de ganhar a vida, etc. Mas ele deve ser concebido e vivido também como dever, como amor, como fonte de honra e como oração.

Isto é válido para todos os trabalhadores, naturalmente, mas de um modo especial para vocês, trabalhadores da terra. Vocês são chamados a prestar um serviço aos homens-irmãos, em contato com a natureza, colaborando diretamente com Deus, Criador e Pai, para que este nosso planeta – a Terra – seja cada vez mais conforme aos seus desígnios, o ambiente desejado para todas as formas de vida: a vida das plantas, a vida dos animais e a vida, sobretudo, dos homens. Vejam, “ao Senhor pertence a terra e quanto ela contém, o universo e quantos o habitam” (Sl 23, 1). Façamos tudo o que estiver ao nosso alcance, como “seus guardas inteligentes e nobres”, para que sempre, servindo ao homem, “toda a terra adore a Deus, O celebre e cante o Seu nome” (Sl 65, 4).

Falei a vocês com o coração aberto, consciente de que a Igreja, fiel ao seu Senhor, sabe que deve abrir-se às realidades humanas, interpretá-las à luz do Evangelho e impregnar, com a mesma Boa Nova, essas realidades, procurando levar os homens a modificar – quando for o caso – os critérios de julgar, os valores preferidos, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida, que se apresentam em contraste com os desígnios de Deus (cf. Evangelii Nuntiandi, 19).

9. É sabido que neste País se estão estudando e pondo em prática iniciativas de vasto alcance para o setor agrícola. Queira Deus que um humanismo cristão as ilumine sempre: um verdadeiro senso do homem. Este homem é cada um de vocês e cada um dos que vocês aqui representam, com a sua dignidade de pessoa e de filho de Deus. Impõem-se presteza e profundidade para enfrentar uma situação sobre a qual o silêncio de vocês fala com muita eloquência. Não deixem que se rebaixe nunca a dignidade moral e religiosa de vocês com a aceitação de sentimentos como o ódio ou o desejo de violência. Amem a paz! Levantem os olhos para o seu Pai e Senhor de todos: é Ele que a cada um dará a recompensa do que é e faz.

Por vocês e com vocês, queridos irmãos camponeses, em seu nome e em nome de Deus eu peço aos outros nossos irmãos: que se procure a colaboração e a concórdia; que todos os responsáveis e interessados pelo bem de cada homem – poderes públicos a nível nacional, estadual e local, grupos, organizações e todos os homens de boa vontade, com a especifica contribuição da Igreja no desempenho da própria missão – busquem e apliquem as medidas reais, adequadas e eficazes, para satisfazer os direitos do homem do campo, para ajudá-lo. Nisto quem tem mais, mais se deve sentir obrigado a cooperar.

Somos a família dos filhos de Deus. Como irmão quero dizer-lhes, amados camponeses do Brasil, que vocês valem muito. Conservem as suas riquezas humanas e religiosas: o amor da família, o sentido da amizade e da lealdade, a solidariedade com os mais necessitados entre vocês, o respeito pelas leis e por tudo o que é legítimo na convivência civil, o amor à boa harmonia e à paz, a confiança em Deus e a abertura para o sobrenatural, a devoção a Nossa Senhora, etc. Por Ela, por Nossa Senhora, aqui diante de sua Veneranda imagem que se apresenta sob o título para vós tão querido – Nossa Senhora do Carmo – peço a Deus que a todos assista, conforte e ajude.

Amém."

Discurso do Papa JPII às Autoridades e ao Povo do Piauí
Aeroporto de Teresina, 8 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Veneráveis Irmãos no Episcopado, Excelentíssimas Autoridades, Amados filhos e filhas do Piauí e dos Estados vizinhos

1. As circunstâncias exigem que seja breve este nosso encontro, mas vós o tornais particularmente intenso. Intenso nos sentimentos de afeto filial, de alegria e entusiasmo que me estais manifestando. Intenso na emoção, contentamento e gratidão que crescem dentro de mim. Por minha parte não tenho porque esconder esses sentimentos e vos digo logo que vos considero filhos muito queridos e me sinto felicíssimo por estar, por uns momentos que seja, entre vós.

2. Conheço a sinceridade e a seriedade da vossa fé católica. Acolho pois a homenagem que me tributais como dirigida ao Apóstolo do qual sou humilde Sucessor e que ouviu dos lábios de Nosso Senhor as tremendas e significativas palavras: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”(Mt 16,18); como dirigida ao próprio Jesus Cristo do qual sou indigno Vigário à frente de sua Igreja.

3. Minha missão como Pastor da Igreja Universal, vós o sabeis, é de anunciar aos homens de nosso tempo a Boa Nova da salvação da qual a mesma Igreja é depositária. É uma mensagem de paz e de esperança, de justiça e de fraternidade, de solidariedade e de amor. Mas essa mensagem se revelaria bem depressa vazia e inconsistente se ela não proclamasse afinal que só no Senhor Jesus se realiza a Salvação definitiva, pois a não ser n’Ele, a paz e a esperança, a justiça e a fraternidade, a solidariedade e o amor correm o perigo de perder o próprio conteúdo e de voltar-se contra o homem. É bem verdade o que diz um importante documento do Concílio Vaticano II: que o homem é para si mesmo uma pergunta sem resposta, que só Deus dá resposta às questões do homem (Gaudium et Spes, 21) e que “só no mistério do Verbo Encarnado se ilumina o mistério do homem”(Gaudium et Spes, 22). Para os problemas fundamentais do homem, suas incertezas e angústias, suas interrogações e suas buscas, a Igreja tem uma via Ninguém é obrigado a abraçar e seguir essa via, mas é meu dever apontá-la e propô-la Eu vos agradeço por saberdes ver em mim principalmente isso: o mensageiro da salvação em Jesus Cristo.

4. Sei, por sua peculiar situação geográfica e pelas condições climatéricas, que este vosso Estado padece de modo crônico o flagelo da seca. Esta é, entre outras várias e complexas, uma das razões pelas quais ele se encontra entre os menos favorecidos e desprovidos do Brasil. Vós conheceis o drama da emigração em busca de melhores condições com os indescritíveis sacrifícios, as dolorosas situações humanas, pessoais e familiares, os desequilíbrios, o desenraizamento que esta emigração costuma produzir. (Quem sabe se muitos dos que aqui estão já foram alguma vez retirantes). Vós experimentais em muitas de vossas casas as agruras da subalimentação, da doença, das mortes prematuras.

5. Em minha passagem entre vós eu quisera ser um pálido, mas autêntico reflexo do próprio Senhor Jesus que passou Ele também entre os homens atento a todos, sem discriminações ou exclusivismos, porque portador de uma mensagem de salvação para todos, mas solícito especialmente pelos pobres e pequenos, pelos sofredores.

Àqueles de entre vós que pudestes conquistar os bens espirituais do saber, que dispondes de posses materiais, de conforto e bem-estar, que num ou noutro setor ocupais postos de decisão, não posso silenciar um pedido que vem do coração: assumir plenamente, sem reserva e sem retorno, a causa de vossos irmãos que se debatem na pobreza. Esta é frequentemente tão deprimente e paralisante que é impossível reerguer-se e fugir dela só com as próprias forças. Não haja nenhum (Jo 5,7), em meio à massa dos pobres desta região, que possa dizer, pensando em irmãos mais favorecidos, a frase cortante do paralítico do Evangelho: “Eu não tenho ninguém”, ninguém que me ponha de pé e me faça caminhar. Quem dera que os poderes públicos deste Estado, de mãos dadas com todas as forças vivas no domínio da iniciativa privada, com a ajuda específica da Igreja, dêm por fim aos pobres as possibilidades de escapar ao círculo da pobreza para aceder ao mais-ser almejado por meus predecessores, sobretudo João XXIII e Paulo VI.

Aos outros, oprimidos pela pobreza, quero dizer antes de tudo uma palavra de conforto: que se sintam amados e estimados pela Igreja e, na Igreja, em modo especial pelo Papa, assim como os ama e estima o próprio Jesus, Filho de Deus, o qual, ao estabelecer as bases do Seu reino neste mundo, não hesitou em proclamar “Bem-aventurados” os que têm um coração de pobre (cf. Mt 5,3).

Mas também uma palavra de esperança: não se deixem abater ou destruir pelas condições atuais mas conservem sempre acesa a esperança de um amanhã melhor. E sobretudo uma palavra de estímulo: certos da ajuda de muitos irmãos, mas sem abdicar das próprias capacidades, façam tudo para superar a má pobreza e seu cortejo de malignidades, não para aspirar à riqueza da iniquidade, mas à dignidade de filhos de Deus.

6. E agora meus votos para vós, querido Piauí e piauienses: que desponte bem depressa para vós a aurora do desenvolvimento integral que, de certo modo já se anuncia. Que venha o progresso, não o que ameaça sufocar o homem, mas o que eleva e dignifica este homem. Não o que corre o risco de aumentar as injustiças mas o que instaura e consolida a justiça. Que, superada toda forma de isolamento, vossa terra venha a inserir-se nos benefícios de uma comunidade política, social e economicamente bem qualificada. Que, eliminados os desequilíbrios, gozeis dos frutos da equidade.

7. Com vossa têmpera forte e caráter provado, sei que não vos iludis pensando que a luta contra as inclemências do clima e das condições sociais seja fácil: é árdua e por vezes ingrata. Os menos aguerridos perdem o animo. Desejo e espero que o esforço convergente de muitos vos ajude a vencer os obstáculos. É para vós de uma forma ao mesmo tempo patética, desafiadora e estimulante, a palavra do Senhor: “Dominai a terra” (Gen 1, 28).

8. Vossa fé e piedade sejam um novo impulso no vosso esforço em vista de um pleno desenvolvimento. Esta fé nos diz que não é vontade de Deus que seus filhos vivam uma vida sub-humana. Vontade de Deus é que cada homem atinja o melhor possível sua plena estatura humana. Voltai-vos pois para Ele, pai bom e providente (cf. Mt 6,25 e 7,11), para buscar n’Ele não um álibi à inércia e à passividade, mas a coragem para continuar vossos esforços. Aquele que na sua Providência faz crescer a erva do campo e alimenta as aves do céu (cf. Mt 6, 25) não dispensa as providências do homem e seu trabalho, antes os associa constantemente ao mistério da criação. É dever do homem recorrer a medidas concretas e eficazes para a promoção e o desenvolvimento solidário de todos. A solidariedade que deve cada vez mais substituir as ideologias do egoísmo, da prepotência e do interesse de pessoas e grupos, levará todos quantos têm uma parcela de responsabilidade político-social a ir ao encontro dos que necessitam de ajuda. Esta solidariedade, valiosa já no plano humano, cresce no plano cristão ao considerar que todos os homens são iguais aos olhos de Deus: filhos deste Deus (Jo 3,2) a Quem chamam de Pai (Gal 4,6) e portanto irmãos uns dos outros, Deus os ama tanto que não recusou entregar seu Filho único para que não pereçam, mas tenham a vida eterna (Jo 3,16).

9. Queridos filhos, vós sois estes filhos de Deus por Ele amados com um amor sem limites. Encorajados por este amor, ponde em ação todas as energias em vista de vosso próprio crescimento sem ódio, sem inúteis e estéreis ressentimentos, sem a violência que não constrói mas com audácia e generosidade. Estou certo de que podeis contar, neste sentido, com a leal colaboração desta Igreja da qual fazeis parte ativa vós mesmos.

Piauí!

Homens do Estado do Piauí, ao serviço de quem se acham as várias estruturas a diversos níveis, nas quais vos inseris: conservai um “coração de pobre”, para acolher todo o auxílio que, estou certo, todo o Brasil, todos os estados do Brasil, todos os homens do Brasil, convosco unidos numa única nação, não vos deixarão de dar; o Senhor Jesus, o mesmo que proclamou “bem-aventurados os pobres em espírito”(Mt 5,3), dizia sempre: “vós sois todos irmãos” (Mt 23,8).

10. Agora prossigo minha peregrinação para encontrar outros irmãos vossos. Gostei e gostarei sempre do Piauí. Levo comigo a saudade deste encontro e a lembrança de todos vós. E, exortando-vos a viver como homens e como cristãos na prática do bem (cf. 1Pt 2,15) sob o olhar de Deus e a proteção de Maria Santíssima, nossa Mãe, deixo-vos a minha bênção. De volta a vossos lares aqui em Teresina, no interior do Piauí, no Maranhão e, quem sabe em outros Estados, levai esta bênção do Papa para todas as vossas famílias, especialmente os anciãos, as crianças, os doentes, os que estão na aflição.

“Nosso Senhor Jesus Cristo e Deus, nosso Pai, ... consolem os vossos corações e os tornem firmes em toda sorte de boas obras”(cf. 2Ts 2,16ss)."

Visita do Papa São João Paulo II ao Leprosário de Marituba
Belém (Pará), 8 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Queridos filhos
1. Desde que anunciei minha viagem ao Brasil e durante a preparação desta viagem, recebi de várias Colônias de hansenianos deste País um bom número de cartas convidando-me para uma visita. Deus sabe quanto gostaria de fazê-lo. Vindo aqui a Marituba, encontrando-vos e saudando-vos com afeto de pai, é como se visitasse nesta hora todas as colônias dos hansenianos do Brasil. Chegue a eles minha palavra para dizer-lhes quanto os estimo, quanto penso neles e rezo por eles.

Bendito seja Deus que nos concede a graça deste encontro. de fato uma graça para mim poder, como o Senhor Jesus de Quem sou ministro e representante, ir ao encontro dos pobres e doentes pelos quais Ele teve verdadeira predileção. Não posso, como Ele, curar os males do corpo mas Ele me dará, por sua bondade, a capacidade de dar algum alívio aos espíritos e corações. Neste sentido desejo que este encontro seja uma graça para vós também. em nome de Jesus que estamos aqui reunidos: que Ele esteja no meio de nós como prometeu (cf. Mt 18, 20).

2. Encontrando-se pela primeira vez e desejando fazer amizade as pessoas costumam apresentar-se. Será que preciso fazê-lo? Já sabeis o meu nome e tendes uma porção de informações sobre a minha pessoa. Mas já que pretendo fazer amizade convosco, faço a minha apresentação: venho a vós como missionário mandado pelo Pai e por Jesus para continuar a anunciar o Reino de Deus que começa neste mundo mas só se realiza na eternidade, para consolidar a fé de meus irmãos, para criar uma profunda comunhão entre todos os filhos da mesma Igreja. Venho como ministro e indigno Vigário de Cristo para velar sobre a sua Igreja; como humilde sucessor do Apóstolo Pedro, Bispo de Roma e Pastor da Igreja Universal.

A Simão Pedro, apesar de fraco e pecador como toda criatura humana, o Senhor Jesus havia declarado em um momento solene que sobre ele como sobre uma Rocha firme haveria de construir a Igreja (Mt 16, 18). Prometeu-lhe também as chaves do Reino com a garantia de que seria ligado ou desligado no céu tudo quanto ele ligasse ou desligasse na terra (cf.Mt 16, 19). Já para voltar ao Pai é ainda a Pedro que ele dirá: “Apascenta minhas ovelhas, apascenta meus cordeiros”(cf. Jo 21, 15ss). Venho como sucessor de Pedro: herdeiro da misteriosa e indescritível autoridade espiritual que lhe foi conferida, mas também da tremenda responsabilidade a ele atribuída. Como Pedro aceitei ser Pastor universal da Igreja desejoso de conhecer, amar, servir todos os membros do rebanho a mim confiado. Aqui estou para conhecer-vos. Devo dizer que é grande o meu afeto por todos e cada um. Estou certo de poder servir-vos de alguma maneira.

3. E vós, quem sois? Para mim sois antes de tudo pessoas humanas ricas de uma dignidade imensa que a condição de pessoa vos dá, ricos cada um da fisionomia pessoal, única e irrepetível com que Deus o fez. Sois pessoas resgatadas pelo sangue daquele a Quem gosto de chamar, como fiz em minha carta escrita à Igreja inteira e ao mundo: o “Redentor do homem”.

Sois filhos de Deus, por Ele conhecidos e amados. Sois já e sereis de agora em diante para sempre meus amigos, amigos muito caros. Como a amigos gostaria de deixar-lhes uma mensagem por ocasião deste encontro que a Providência divina me permite ter convosco.

4. Minha primeira palavra só pode ser de conforto e de esperança. Bem sei que, sob o peso da doença, temos todos a tentação do abatimento. Não é raro perguntar-nos com tristeza: por que esta enfermidade? Que mal fiz eu para recebê-la? Um olhar a Jesus Cristo na sua vida terrena e um olhar de fé, à luz de Jesus Cristo sobre a nossa própria situação, muda nossa maneira de pensar. Cristo Filho de Deus inocente conheceu na própria carne o sofrimento. A Paixão, a Cruz, a morte na cruz o provaram duramente: como anunciara o Profeta Isaías, Ele ficou desfigurado, sem aparência humana (Is 53, 2). Ele não velou nem escondeu seu sofrimento, antes, quando esse era mais atroz pediu ao Pai que afastasse o cálice (cf. Mt 26, 39). Mas uma palavra revelava o fundo do seu coração: “Não se faça a minha vontade mas a Tua!”(Lc 22, 42). O Evangelho e todo o Novo Testamento nos dizem que assim acolhida e vivida a Cruz se tornou redentora.

Não é diverso em nossa vida. A doença é na verdade uma cruz, cruz por vezes bem pesada, provação que Deus permite na vida de uma pessoa, dentro do mistério insondável de um desígnio que foge à nossa capacidade de compreensão. Mas não deve ser olhada como uma fatalidade cega. Nem é forçosamente e em si mesma uma punição. Não é algo que aniquila sem deixar nada de positivo. Ao contrário, ainda quando pesa sobre o corpo, a cruz da doença carregada em comunhão com a de Cristo se torna também fonte de salvação, de vida ou de ressurreição para o próprio doente e para os outros, para a humanidade inteira. Como o Apóstolo Paulo, vós também podeis dizer que completais no vosso corpo aquilo que falta à Paixão de Cristo em benefício da Igreja (cf. Col 1, 24).

Estou certo de que, vista sob essa luz, a doença, mesmo dolorosa e humanamente mortificante, traz consigo sementes de esperança e motivo de reconforto.

5. Minha segunda palavra é um pedido mas ainda mais um convite e um estímulo: não vos isoleis por motivo de vossa enfermidade. Todos aqueles que com dedicação, amor e competência se interessam por vós, talvez até consagrando-vos todo o seu talento, tempo e energias, insistem que nada é melhor do que sentir-vos profundamente inseridos na comunidade dos outros irmãos e não cortados dela. A esses irmãos nós dizemos com a força da convicção: procurai conhecer vossos irmãos hansenianos, ficai próximos a eles, acolhei-os, colaborai com eles, acolhei e procurai sua colaboração. Mas a vós devemos dizer: não recuseis por qualquer motivo inserir-vos no ambiente que vos circunda e que se abre a vós. Senti-vos membros em maior plenitude possível da comunidade humana que cada vez mais toma consciência de que precisa de vós como precisa de cada um de seus membros.

A esta comunidade podeis oferecer, no plano humano, a contribuição dos dons que recebestes de Deus. Dentro dos limites naturais é bastante amplo e variado o campo dessa possível colaboração. No plano sobrenatural que é o da graça, quis recordar-vos há pouco que, em comunhão com o mistério da Cruz de Cristo, a cruz de vossa doença se torna manancial de graças, de vida e de salvação. Seria pena desperdiçar por qualquer motivo este manancial de graças de Deus. Que ele sirva para muitos, sobretudo para a Igreja. Estando na Amazônia onde é intenso e frutuoso o trabalho missionário cujos frutos vós mesmos recebeis, me atreveria a pedir: fazei de vossa condição de doentes um gesto missionário de imenso alcance transformando-a em fonte da qual os missionários podem haurir energias espirituais para seu trabalho.

6. Minha terceira palavra é de confiança: o Papa, junto com toda a Igreja vos estima e vos ama. O Papa assume diante de vós e convosco o compromisso de fazer tudo quanto puder por vós e em vosso favor. O Papa, embora partindo para novas tarefas no quadro desta visita e de sua exigente missão, permanece espiritualmente convosco: queira o querido irmão Dom Aristides Pirovano, vosso grande amigo, queiram os médicos, enfermeiros, assistentes que aqui se devotam, ser os representantes do Papa junto de vós fazendo tudo o que ele faria e como ele faria se pudesse aqui permanecer. Por minha vez quero contar convosco: como peço a ajuda das orações dos monges e monjas e de tantas pessoas santas para que o Espírito Santo inspire e dê forças ao meu ministério pontifical, assim peço também a ajuda preciosa que pode vir da oferta de vossos sofrimentos e de vossa doença. Que esta oferta se una às vossas orações, melhor ainda se transformem em oração por mim, por meus diretos colaboradores, por todos os que me confiam suas aflições e penas, suas necessidades e intenções.

Mas porque não começar logo esta oração?

Senhor, com a Fé que nos destes, vos confessamos
Deus todo poderoso, nosso Criador e Pai providente,
Deus de esperança, em Jesus Cristo, nosso Salvador,
Deus de amor, no Espírito Santo, nosso Consolador!

Senhor confiantes nas vossas promessas que não passam,
queremos vir sempre a Vós, buscar alívio na dor.
Contudo, discípulos de Jesus, não se faca como queremos.
Faça-se a vossa vontade, em todo o nosso viver!

Senhor, agradecidos pela predileção de Cristo
pelos hansenianos que tiveram a dita de O contatar,
vendo-nos neles... vos agradecemos também os favores
em tudo o que nos ajuda, alivia e conforta:
vos agradecemos pela medicina e pelos médicos,
pela assistência e pelos enfermeiros, pelas condições de vida,
pelos que nos consolam e por nós são consolados,
pelos que nos compreendem e aceitam, e pelos outros.

Senhor, concedei-nos paciência, serenidade e coragem;
concedei-nos viver uma caridade alegre, por vosso amor,
para com quem sofre mais do que nós e para com outros que,
não sofrendo, não têm esclarecido o sentido da vida.

Senhor, queremos que nossa vida possa ser útil, servir:
para louvar, agradecer, reparar e impetrar, com Cristo,
pelos que vos adoram e pelos que não vos adoram, no mundo,
e pela vossa Igreja, espalhada por toda a terra.

Senhor, pelos méritos infinitos de Cristo, na Cruz,
“Servo sofredor” e Irmão nosso, ao qual nos unimos,
vos pedimos por nossas famílias, amigos e benfeitores,
pelo bom resultado da visita do Papa e pelo Brasil. Amém."

Homilia do Papa São João Paulo II na Santa Missa em Belem do Pará
Belém, 8 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Arcebispo Dom Alberto Gaudêncio Ramos, Senhor Bispo Auxiliar Dom Tadeu Prost,
Meus irmãos no Episcopado e no sacerdócio ministerial, Meus amados irmãos e irmãs, religiosos, religiosas e leigos

1. Este momento de alegria e comunhão, nos encontra reunidos em Belém, “casa do Pão”, para receber o pão da Palavra de Deus e, dentro de momentos, o Pão eucarístico, Corpo do Senhor.

Nosso encontro se realiza na Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Belém e Nazaré nos falam antes de tudo de Jesus, o Salvador, na sua vida oculta, criança e depois jovem, no cumprimento de sua missão: “Eis que venho, ó Deus, para fazer em tudo a Tua vontade” (Hb 10, 7). Belém e Nazaré nos falam também da Mãe de Jesus, sempre próxima ao Filho eterno de Deus, Seu filho segundo a carne, fiel ela também no cumprimento de um papel de primeira importância no plano da Salvação divina: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38).

Nossa Senhora avançou no caminho da fé, sempre em união com o seu Filho. Acompanha-O passo a passo, associando-se a Ele, alegrando-se e sofrendo com Ele, amando sempre aqueles que Ele amava. Depois, Cristo subiu de novo para junto do Pai. E nos dias que precederam o Pentecostes, o grupo dos discípulos, Igreja nascente, cheios de alegria e de fé, pelo triunfo de Cristo ressuscitado e ansiosos pelo Espírito Santo prometido, querem sentir-se muito unidos.

Vamos encontrá-los em oração “com Maria, Mãe de Jesus” (At 1, 14). Era a oração de uma família: daqueles que o Senhor havia chamado para a sua intimidade, com a Mãe, a qual, “com a sua caridade cooperou para que nascessem na Igreja os fiéis, membros daquela Cabeça, da qual Ela é efetivamente Mãe segundo o Corpo”, como diria Santo Agostinho (S. Agostinho, De Virginitate, 6: PL 40, 399).

2. Foi sob o patrocínio de Nossa Senhora da Graça que, por obra de intrépidos Religiosos, aqui se fundou uma comunidade cristã, depois Diocese, de onde se irradiou, não sem dificuldades, o Evangelho de Cristo para esta parte norte do Brasil. E ela, a Mãe da Graça divina, acompanhava os missionários neste seu empenho e esforço e estava com a Mãe Igreja – da qual é o protótipo, o modelo e a suprema expressão – nos inícios da sua implantação nestas terras abençoadas: abençoadas por Deus Criador, com as riquezas e belezas naturais que nos maravilham; e abençoadas por Cristo Redentor, depois, com os bens da Salvação por Ele operada, e que nós agora aqui celebramos.

Nesta Eucaristia, nesta ação de graças por excelência, como é sempre a Missa, com Maria Santíssima, vamos render preito agradecido ao Pai por Cristo no Espírito Santo: agradecer a evangelização e benefícios divinos por ela trazidos; agradecer a caridade dos missionários e a esperança que os animava e tornava fortes no dilatar a fé, mediante a pregação e o Batismo àqueles que, com a vida nova em Cristo, aumentaram aqui a família dos filhos de Deus.

3. Belém e o seu santuário de Nossa Senhora de Nazaré são monumentos do passado, como marco da evangelização e documento palpável de acentrada piedade para com a “Estrela da Evangelização”. Mas são também presente: o presente de uma Igreja viva e o presente da devoção mariana, nesta querida terra brasileira.

“Hão de chamar-me bem-aventurada todas as gerações” (Lc 1, 48), disse Maria no seu cântico profético; “Bendita sois entre as mulheres, e bendito o fruto do vosso ventre, Jesus”, Lhe respondem em eco ao longo dos tempos povos de todas as latitudes, raças e línguas. Uns mais esclarecidos, outros menos, os fiéis cristãos não cessam de recorrer a Nossa Senhora, à Santa Mãe de Deus: em momentos de alegria, invocando-A “Causa da nossa alegria”; em momentos de aflição, chamando-Lhe “Consoladora dos aflitos”; e em momentos de desvario, implorando-A “Refúgio dos pecadores”.

Estas expressões de uma busca de Deus, ligadas ao modo de ser e à cultura de cada povo e, não raro, a estados de animo emocionais, nem sempre se apresentarão bem apoiadas numa adesão de fé. Pode acontecer até não estarem devidamente separadas de elementos estranhos à religião. No entanto, são algo de considerar e, por vezes, mesmo rico de valores a aproveitar.

Embora precisando de ser esclarecida, guiada e purificada, a religiosidade popular, ligada como norma à devoção a Nossa Senhora, sendo como lhe quis chamar o meu Predecessor Paulo VI “piedade dos pobres e dos simples”, traduz geralmente “uma certa sede de Deus” (cf. Evangelii Nuntiandi, 48). Assim, não é necessariamente um sentimento vago, ou uma forma inferior de manifestação religiosa. Antes, contém, com frequência, um profundo sentido de Deus e dos seus atributos, como a paternidade, a providência, a presença amorosa, a misericórdia, etc.

4. A par da religião do povo, é corrente também nos centros de culto mariano e nos santuários muito concorridos, verificar-se, por um motivo ou por outro, a presença de pessoas que, ou não pertencem ao grêmio da Igreja, ou então nem sempre permaneceram fiéis aos compromissos e à prática da vida cristã, ou ainda que vêm guiadas por uma visão incompleta da fé que professam.

Ora tudo isto exige uma pastoral atenta e adequada e, principalmente, muito pura e desinteressada, a qual vá de uma Liturgia viva e fiel, à pregação assídua e segura, à catequese sistemática e ocasional, particularmente na administração dos sacramentos; entre estes, em tais lugares de grande afluência de fiéis, ocupará sempre um lugar primordial o sacramento da Penitência, momento privilegiado de encontro com Deus, principalmente quando a isso ajuda a disponível caridade dos ministros do Confessionário.

Por conseguinte, não se perca nenhuma ocasião para esclarecer, purificar e robustecer a fé do povo fiel, mesmo quando de cunho nitidamente popular. O fato de nela ocupar lugar proeminente Nossa Senhora, como aliás sucede na totalidade da fé cristã, não exclui, nem sequer ofusca a mediação universal e insubstituível de Cristo, o qual permanece sempre o caminho por excelência para o encontro com Deus, como ensina o Segundo Concílio do Vaticano (Lumen Gentium, 60).

5. Aqui reunidos como irmãos, em reunião de família que a vida mantém fisicamente afastados uns dos outros, neste dia de festa junto da Mãe, vamos voltar-nos todos agora para Ela, para Nossa Senhora. Não é verdade que, em reuniões familiares ocasionais junto da mãe, todos os irmãos se sentem mais dispostos à bondade, à reconciliação, à unidade e ao reencontro no afeto fraterno?

Depois, em tais encontros é imperativo da piedade e do amor filial deixar à Mãe a última palavra.

E é o momento das efusões de afeto e dos bons propósitos tranquilizadores do coração materno.

Chegamos a esse momento. Como Mãe bondosa, a Virgem Santíssima não cessa de convidar todos os seus filhos, os membros do Corpo místico, a cultivarem entre si a bondade, a reconciliação e a unidade. Seja-me permitido, nesta hora, à maneira de irmão mais velho, recolher e interpretar o que está certamente no coração de todos e depositá-lo no Coração Imaculado da Mãe de Jesus e Mãe nossa. Convido a todos a acompanhar, em oração silenciosa, a prece que faço em nome de todos:

– Senhora, Vós dissestes sob o sopro do Espírito que as gerações vos chamariam bem-aventurada. Nós retomamos o canto das gerações passadas para que não se interrompa e exaltamos em Vós o que de mais luminoso a humanidade ofereceu a Deus, a criatura humana na sua perfeição, de novo criada em justiça e santidade na beleza sem par que chamamos “a Imaculada” ou a “cheia de graça”.

– Mãe, Vós sois “a nova Eva”. A Igreja de vosso filho consciente de que só com “homens novos” se pode evangelizar, isto é, levar a Boa Nova ao mundo para fazer uma “nova humanidade”, vos suplica que por vosso meio não falte nela jamais a novidade do Evangelho, germe de santidade e de fecundidade.

– Senhora, adoramos o Pai pelas prerrogativas que brilham em Vós mas o adoramos também porque sois sempre para nós a “ancilla Domini”, pequena criatura. Porque fostes capaz de dizer: “fiat”, Vos tornastes Esposa do Espírito Santo e Mãe do Filho de Deus.

– Mãe, que apareceis nas páginas do Evangelho mostrando Cristo aos pastores e aos magos, fazei que cada evangelizador – bispo, sacerdote, religioso, religiosa, pai ou mãe de família, jovem ou criança – seja possuído por Cristo para ser capaz de revelá-lo aos outros.

– Senhora, escondida na multidão enquanto o Vosso filho realiza os sinais miraculosos do nascimento do Reino de Deus, e que só falais para mandar fazer tudo o que Ele disser (cf. Jo 2, 5), ajudai os evangelizadores a pregar sempre não a si próprios mas a Jesus Cristo.

– Mãe, envolvida pelo mistério de Vosso Filho, muitas vezes incapaz de entender mas capaz de recolher tudo e meditar no coração (Lc 2, 19 e 51), fazei que nós evangelizadores compreendamos sempre que para além das técnicas e estratégias, da preparação e dos planos, evangelizar é mergulhar no mistério de Cristo e tentar comunicar algo dele aos irmãos.

– Senhora da humildade na verdade, que nos ensinastes em cântico profético que “Deus sempre exalta os humildes” (cf. Lc 1, 52), ajudai sempre os “simples e os pobres” que vos procuram com a sua religiosidade popular; ajudai os pastores a conduzi-los à luz da verdade e a ser fortes e compreensivos ao mesmo tempo, quando devam banir elementos degenerados e purificar manifestações de piedade do povo.

– Mãe, pedimos por vossa intercessão, como os discípulos no Cenáculo, uma contínua assistência e dócil acolhimento do Espírito Santo na Igreja: para os que procuram a verdade de Deus e para os que devem servi-la e vivê-la. Que seja sempre Cristo “a luz do mundo”(cf. Jo 8, 12); e que o mundo nos reconheça Seus discípulos porque permanecemos na Sua Palavra e conhecemos a verdade que nos faz livres, com a liberdade dos filhos de Deus (cf. Jo 8, 32). Assim seja!"

Encontro do Papa JPII com os representantes da diocese de Belém
Catedral de Belém do Pará, 8 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Arcebispo, Senhor Bispo Auxiliar,
meus Irmãos no Episcopado, amados filhos e filhas em Cristo Senhor,
1. Saúdo a todos, cordialmente, na alegria deste encontro nesta bela cidade e antiga sede, fundada sob a égide de Nossa Senhora da Graça e ainda hoje confiada ao patrocínio de Maria Santíssima.

Esta saudação se estende a todos os que vos são caros e a todos os habitantes deste Estado do Pará e territórios circunvizinhos. Através de vós, meus Irmãos Bispos nestas terras missionárias, através de vós, sacerdotes, religiosos e religiosas, seminaristas, pais e mães de família, pessoas adultas e jovens, aqui presentes, chegue a minha saudação particular a todos quantos nas vossas comunidades, já ouviram a palavra de Deus e se esforçam por pô-la em prática.

Os votos que faço a todos, nesta hora se tornam uma prece pelos que sofrem no corpo ou na alma, pelos que não puderam vir, pelas criancinhas, pelas pessoas idosas e por aqueles que com dedicação e desinteresse os assistem. O Papa pensa em todos com grande benevolência e gostaria, se fosse possível, encontrar-se com todos pessoalmente: como irmão em humanidade e “como ministro de Cristo e administrador dos mistérios de Deus” (cf. 1Cor 4, 1). Tende ao menos a certeza de que ninguém fica à margem ou esquecido no afeto do Papa e nas suas orações.

Sim, o Papa reza por todos, porque ama a todos: veio aqui precisamente para vos conhecer e poder amar-vos ainda mais. E quereria deixar a todos uma recordação. Qual? Simbolicamente, depois da Eucaristia há pouco celebrada, aqui desejaria repartir com todos um pedacinho do pão da Palavra de Deus. Digo “um pedacinho” por causa do pouco tempo de que dispomos.

2. “Felizes os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11, 28); pôr em prática a Palavra de Deus é sinônimo de viver o mandamento do amor: a si próprio, esclarecido e ordenado, fonte de serenidade; amor aos irmãos na fé e a todos os homens, um amor operante – “o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-lhe vós também” (Lc 6, 31) – fonte de paz; amor a Deus, sobre todas as coisas – fonte de alegria.

3. Felizes “os mansos e humildes de coração” que em si cultivam, “os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus”(cf. Fl 2, 5): cultivai a verdade que Ele é (cf. Jo 14, 6), pois obedecendo à verdade, santificareis as vossas almas para praticardes um sincero amor fraterno: “honrai a todos, amai os irmãos, temei a Deus e respeitai a autoridade”(cf. 1Pd 2,17). Praticai a justiça, aquela justiça do reino de Deus que tem sempre e em tudo a prioridade (cf. Mt 6, 33); fazer isso, explica o Apóstolo João, é permanecer n’Ele, em Cristo, e não pecar, pois “aquele que pratica a justiça é justo, assim como Ele é justo”(1Jo 3, 7). Sim, é preciso vencer o mal com o bem, pôr os dons recebidos ao serviço uns dos outros, e revestir-se continuamente de sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão e de paciência, “mas acima de tudo, de caridade que é o vínculo da perfeição”(Col 3, 14).

4. “Como são formosos os pés dos que evangelizam, que anunciam boas novas”(cf. Rm 10, 15), em particular, a Boa Nova por excelência, o amor de Deus revelado em Jesus Cristo: a alegria de termos um Salvador e de sermos, por Ele, chamados a ser filhos de Deus e irmãos uns dos outros... Sede arautos desta boa notícia a todos. Anunciai-a em todos os ambientes, propondo-a à adesão dos corações dos homens, em pleno respeito à liberdade das consciências, e estareis contribuindo para transformar a humanidade de dentro para fora, fazendo-a nova com a perene novidade de Jesus Cristo, Redentor do Homem.

5. Nestas simples palavras, a minha mensagem para vós, irmãos e irmãs. Rezai pelo Papa que reza por vós. E para que nosso encontro seja mais íntimo e nos deixe uma lembrança duradoura, comecemos já a rezar uns pelos outros: um momento de oração silenciosa, com Maria Santíssima, Mãe da nossa confiança... para que a nossa fé cresça forte e irradiante, segundo a imagem evangélica do grão de mostarda (cf. Lc 13, 19; 17, 6). Como a fé de Nossa Senhora: ela esteve tão perto de Deus que pôde acolher o Verbo, vindo para que todos os que n’Ele crêem, se tornem filhos de Deus (cf. Jo 1,12). Para todos implorando esta graça, vos abençoo."

Encontro do Papa São João Paulo II com o Povo de Fortaleza
Estádio Municipal, Fortaleza, 9 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Cardeal Aloísio Lorscheider, Arcebispo de Fortaleza,
Meus caros Irmãos no Episcopado, Queridos irmãos e irmãs no Senhor,

1. A vós a graça e a paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo, que vos reuniu aqui no amor do seu Espírito para reavivar e confirmar a vossa Fé e a vossa Esperança neste encontro com o Papa, Cabeça visível da grande Família do Povo de Deus, a Igreja, à qual todos nós pertencemos.

Pisando o chão de Fortaleza e do Estado do Ceará, abençoado, já nos albores de sua evangelização, pelo martírio do Padre Jesuíta Francisco Pinto e pelo trabalho do Padre Luiz Figueira, o meu pensamento repassa, com profunda gratidão a Deus, os vossos quatro séculos de cristianismo. Depois, aberto a uma jubilosa confiança, ele se detém diante da realidade viva e palpitante desta Igreja e desta Cidade de Fortaleza, Capital do Estado do Ceará e Sede do Secretariado Regional Nordeste I, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Sinto-me muito feliz por este encontro com a vossa Cidade. Agradecendo as fraternas palavras de boas-vindas, dirijo a minha saudação, antes de tudo, ao Senhor Cardeal-Arcebispo, Dom Aloísio Lorscheider, que representa a unidade da Igreja Particular de Fortaleza, solidamente alicerçada em Cristo Jesus. Saúdo igualmente os Senhores Bispos aqui reunidos, vindos não só dos Estados vizinhos, mas do Brasil inteiro, para o X Congresso Eucarístico Nacional.

O meu pensamento se volta, a seguir, com deferência e gratidão, às Autoridades, pelos gestos de consideração e desvelo com que me acolheram. A elas faço votos de um frutuoso serviço para o bem de todo o povo da Capital e do Estado.

Saúdo com particular afeto os Sacerdotes, os Religiosos e as Religiosas de tantas Congregações, que partilham com dedicação e generosidade a obra de evangelização, assistência e promoção humana desta Igreja. Saúdo os queridos doentes, os que sofrem, os pobres. Saúdo os jovens e, com sentimentos de afeição especial, a centena de seminaristas do Seminário Regional, recentemente reaberto. Eles são a alegre esperança de uma comunidade de fiéis, pascal e dinâmica, empenhada em servir os mais pobres. Saúdo a todos e a cada um, e acolho num grande abraço todos quantos formam a Igreja peregrinante neste recanto da Terra Brasileira.

2. E agora, o meu coração se abre fraterno e amigo – como se abriu outrora o de Jesus para as multidões –, para este povo numeroso e festivo, congregado aqui para trazer-me as calorosas boas-vindas de Fortaleza. Queridos irmãos e irmãs, abraço-vos com profunda amizade e vos digo logo que, conhecendo a glória do vosso passado comprometido com os esforços em prol da Independência e da Abolição da Escravatura, conheço também os dotes do vosso coração: a acolhedora hospitalidade; a simplicidade de espírito; a atitude intrépida diante das lutas pela sobrevivência, exasperadas pela inclemência da natureza e aspereza do clima, que não chegaram a enfraquecer, mas, pelo contrário, deram novo vigor à vossa paciência, à vossa longanimidade, à vossa proverbial coragem.

Coragem, irmãos e irmãs, coragem sempre, fiéis ao espírito que deu origem à vossa Capital, nascida à volta da Fortaleza e Capela de Nossa Senhora da Assunção, que, desde os inícios, protegeu como Mãe as vossas famílias, o vosso trabalho e os vossos projetos. Para esta vossa Cidade se dirigem hoje os olhares de todos os brasileiros, porque está para ser inaugurado, em seu seio, um grandioso acontecimento de Fé, que atinge todos os fiéis da “Terra de Vera Cruz”: o X Congresso Eucarístico Nacional.

3. O Congresso Eucarístico é, antes de tudo, um grande e comunitário ato de Fé na presença e na ação de Jesus-Eucaristia, que permanece sacramentalmente conosco, para conosco percorrer os nossos caminhos, a fim de que possamos enfrentar, com a Sua força, os nossos problemas, canseiras e sofrimentos. Nutridos com o Corpo do Senhor, temos em nós a Vida (Cf. 1Jo 6, 53) e podemos com confiança trabalhar, no Seu Espírito e com o Seu Espírito, para tornar mais humana, mais digna e mais cristã a nossa convivência neste mundo. Os nossos caminhos devem ser os seus caminhos, os nossos métodos os seus métodos, os nossos pensamentos o seus pensamentos.

Unamo-nos desde agora em torno da Hóstia Consagrada, do Divino Peregrino entre os peregrinos, desejosos de receber d’Ele a inspiração e a força para fazer nossas as necessidades e as aspirações dos nossos irmãos migrantes, com aquele amor eficaz que animou o primeiro Bispo de Fortaleza, Dom Luiz Antônio dos Santos, benemérito fundador do Seminário e incansável apóstolo da caridade durante a grande seca de 1877-1879.

Queridos Irmãos e Irmãs, no sinal do Pão da Vida, que é Cristo, e na expectativa da Missa de Abertura do Congresso Eucarístico, renovo a minha saudação cordial e amiga e vos dou a minha Bênção: Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo."

Homilia do Papa São João Paulo II na Santa Missa em Fortaleza
na abertura do X Congresso Eucaristico Nacional
Fortaleza, 9 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Cardeal Aloísio Lorscheider, Arcebispo de Fortaleza,
Meus amados Irmãos no Episcopado, no Sacerdócio, Filhos e Filhas caríssimos

1. “Banquete sagrado no qual o pão é Cristo, no qual Sua Paixão é por nós revivida, nossa alma repleta de graça e um penhor da eternidade a nós oferecido”.

A partir deste momento e por vários dias, Fortaleza se torna de um modo todo particular, o cenáculo onde se celebra este banquete de que fala a Liturgia, cantando e afirmando a fé da Igreja no Santíssimo Sacramento.

Esta celebração nos recorda, de novo, que o Deus da nossa fé não é um ser longínquo, que contemplaria com indiferença a sorte dos homens, os seus afãs, as suas lutas e as suas angústias. É um Pai que ama os seus filhos, a ponto de enviar o seu Filho, o seu Verbo, “para que tivéssemos a vida e a tivéssemos em abundância”(Jo 10,10).

É este Pai amoroso, que agora nos atrai suavemente, pela ação do Espírito Santo que habita nos nossos corações (cf. Rm 5,5).

Quantas vezes em nossa vida vimos separar-se duas pessoas que se amam. Durante a feia e dura guerra, em minha juventude, vi partir sem esperança de voltar, pais arrancados de casa sem saber se reencontrariam algum dia os seus. Na hora da partida, um gesto, uma fotografia, um objeto que passa de uma mão à outra para prolongar de algum modo a presença na ausência. E nada mais. O amor humano só é capaz destes símbolos.

Em testemunho e como lição de amor, na hora da despedida, “Jesus sabendo que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim”(Jo 13,1). E assim, nas vésperas daquela última Páscoa passada neste mundo com os seus amigos, Jesus “tomou o pão e, dando graças, o partiu e disse: Tomai e comei; isto é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória de mim. Igualmente, depois da ceia, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento do meu sangue; fazei isto em memória de mim; todas as vezes que o beberdes”(1Cor 11,23-25).

Assim, ao despedir-se, o Senhor Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem, não deixa aos seus amigos um símbolo, mas a realidade de Si mesmo. Vai para junto do Pai, mas permanece entre nós homens. Não deixa um simples objeto para evocar sua memória. Sob as espécies do pão e do vinho está Ele, realmente presente, com o seu Corpo, e seu Sangue, sua Alma e Divindade. Assim, como dizia um clássico da vossa língua (Fr. Antônio das Chagas, Sermões, 1764, p. 220 – S. Caetano): “ajuntando-se um infinito poder com um infinito amor, que se havia de seguir senão o maior milagre e a maravilha maior?”.

Cada vez que nos congregamos para celebrar, como Igreja Pascal que somos, a festa do Cordeiro imolado e redivivo, do Ressuscitado presente no meio de nós, é forçoso ter bem vivo na mente o significado do encontro sacramental e da intimidade com Cristo (cf. João Paulo II, Carta Apostólica Dominicae Cenae, 4; 24 de Fevereiro de 1980) .

2. É desta consciência, amadurecida na fé, que brota a resposta mais profunda e gratificante à pergunta que orienta a reflexão deste Congresso Eucarístico Nacional: “Para onde vais?”. Para que horizontes se dirigem os esforços, com os quais constróis fatigosamente o teu amanhã. Quais são as metas que esperas alcançar através das lutas, do trabalho, dos sacrifícios, a que te submetes no teu dia-a-dia? Sim, para onde vai o homem peregrino pela estrada do mundo e da história?

Creio que, se prestássemos atenção às respostas corajosas ou hesitantes, esperançosas ou dolorosas, que tais perguntas suscitam em cada pessoa – não somente neste País, mas também nas outras regiões da terra – ficaríamos surpreendidos com a identidade substancial que há entre elas. Os caminhos dos homens são, não raro, muito desencontrados entre si, os objetivos imediatos que se propõem, apresentam normalmente características, não só divergentes, mas às vezes até contrárias. E no entanto, a meta última, para a qual todos indistintamente se dirigem, é sempre a mesma: todos procuram a plena felicidade pessoal, no contexto de uma verdadeira comunhão de amor. Se tentardes penetrar até o mais profundo de vossos próprios anseios e dos anseios de quem passa ao vosso lado, descobrireis que é esta a aspiração comum de todos, esta a esperança que, após os fracassos, ressurge sempre, no coração humano, das cinzas de toda desilusão.

O nosso coração procura a felicidade e quer experimentá-la num contexto de amor verdadeiro. Pois bem, o cristão sabe que a satisfação autêntica desta aspiração só se pode encontrar em Deus, a cuja imagem o homem foi criado (cf. Gn 1, 27). “Fizestes-nos para Vós, e nosso coração está inquieto enquanto não descansa em Vós” (S. Agostinho, Confessiones, 1,1). Quando Agostinho, de volta de uma tortuosa e inútil procura da felicidade em toda espécie de prazer e de vaidade, escrevia na primeira página de suas “Confissões” estas famosas palavras, não fazia senão dar expressão à exigência essencial que emerge do mais profundo de nosso ser.

3. É uma exigência que não está fadada à decepção e à frustração: a fé nos assegura que Deus veio ao encontro do homem na pessoa de Cristo, no Qual “habita toda a plenitude da divindade”(Cl 2.9). Se, pois, o homem deseja encontrar satisfação para a sede de felicidade que lhe abrasa o coração, é para Cristo que deve orientar os seus passos. Cristo não está longe dele. Nossa vida aqui na terra é, na realidade, um contínuo suceder-se de encontros com Cristo: com Cristo presente na Sagrada Escritura, como Palavra de Deus; com Cristo presente nos seus ministros, como Mestre, Sacerdote e Pastor; com Cristo presente no próximo, especialmente nos pobres, nos enfermos, nos marginalizados, que constituem os seus membros sofredores; com Cristo presente nos Sacramentos, que são os canais de sua ação salvadora; com Cristo hóspede silencioso dos nossos corações, onde habita comunicando sua vida divina.

Todo encontro com Cristo deixa marcas profundas. Sejam eles encontros durante a noite, como o de Nicodemos; encontros casuais, como o da Samaritana; encontros procurados, como o da pecadora arrependida; encontros suplicantes, como o do cego às portas de Jericó; ou encontros por curiosidade, como o do Zaqueu; ou também encontros de intimidade, como os dos Apóstolos, chamados para segui-l’O; encontros fulgurantes, como o de Paulo a caminho de Damasco.

Mas, o encontro mais íntimo e transformador, para o qual se ordenam todos os outros encontros, é o encontro à “mesa do mistério eucarístico, isto é, à mesa do pão do Senhor”(cf. João Paulo II, Carta Apostólica Dominicae Cenae, 11; 24 de Fevereiro de 1980). Aqui é Cristo em pessoa quem acolhe o homem, maltratado pelas asperezas do caminho, e o conforta com o calor de sua compreensão e do seu amor. É na Eucaristia que encontram sua plena atuação as dulcíssimas palavras: “Vinde a mim todos os que estais fatigados e oprimidos e eu vos aliviarei”(Mt 11,28). Aquele alívio pessoal e profundo, que constitui a razão última de toda a nossa canseira pelas estradas do mundo, nós o podemos encontrar – ao menos como antecipação e pregustação – naquele Pão divino, que Cristo nos oferece na mesa eucarística.

4. Uma mesa. Não foi por acaso que, desejando dar-se todo a nós, Senhor escolheu a forma da comida em família. O encontro ao redor de uma mesa diz relacionamento interpessoal e possibilidade de conhecimento recíproco, de trocas mútuas, de diálogo enriquecedor. O convite eucarístico se torna assim sinal expressivo de comunhão, de perdão e de amor.

Não são estas as realidades, das quais o nosso coração peregrino se sente necessitado? É impensável felicidade humana autêntica, fora deste contexto de conciliação e de amizade sincera. Pois bem, a Eucaristia não só significa esta realidade, mas a promove eficazmente. São Paulo tem uma frase extremamente clara a este respeito: “Nós – observa ele – somos um só corpo: participamos todos de um só pão”(1Cor 10,17). O alimento eucarístico, fazendo-nos “consanguíneos” de Cristo, faz-nos irmãos e irmãs entre nós. São João Crisóstomo sintetiza assim, com estilo incisivo, os efeitos da participação da Eucaristia: “Nós somos aquele mesmo corpo. Que coisa é na realidade o pão? O Corpo de Cristo. Que se tornam os que comungam? O Corpo de Cristo. De fato, como o pão resulta de muitos grãos, embora permaneçam eles mesmos, contudo não aparece a sua distinção, por causa da sua união, assim também nós unimos mutuamente com Cristo. Não se alimenta este de um e aquele de outro corpo diferente, mas todos do mesmo corpo”(S. João Crisóstomo, In Epistulam 1 ad Corinthios).

A comunhão eucarística constitui, pois, o sinal da reunião de todos os féis. Sinal verdadeiramente sugestivo porque à sagrada mesa desaparece toda diferença de raça ou de classe social, permanecendo somente a participação de todos do mesmo alimento sagrado. Esta participação, idêntica em todos, significa e realiza a supressão de tudo o que divide os homens e efetua o encontro de todos a um nível superior, onde toda oposição fica eliminada. A Eucaristia torna-se assim o grande instrumento de aproximação dos homens entre si. Toda vez que os fiéis dela participam com coração sincero, não podem deixar de receber um novo impulso para um melhor relacionamento entre si com o reconhecimento recíproco dos próprios direitos, e também dos correspondentes deveres. Desta forma, facilita-se o cumprimento das exigências pedidas pela justiça, devido precisamente ao clima particular de relações interpessoais que a caridade fraterna vai criando dentro da própria comunidade.

É instrutivo lembrar, a este respeito, o que acontecia entre os cristãos dos primeiros tempos, que os Atos dos Apóstolos nos descrevem “assíduos... na fração do pão”(At 2,42). Deles se dizia que “estavam unidos e tinham tudo em comum; vendiam as suas propriedades e seus bens e distribuíam o preço entre todos, segundo a necessidade de cada um”(At 2,44-45). Com tal procedimento os primeiros cristãos punham em prática espontaneamente “o princípio, segundo o qual os bens deste mundo estão destinados pelo Criador para atender às necessidades de todos, sem exceção”(cf. Paulo VI, Mensagem para a Quaresma de 1978). A caridade, alimentada na comum “fração do pão”, expressava-se com natural prosseguimento na alegria de gozar juntos dos bens que Deus generosamente tinha posto à disposição de todos. Da Eucaristia brota, como atitude cristã fundamental, a partilha fraterna.

5. Neste ponto e sob esta luz vem-me espontaneamente ao espírito a difícil condição daqueles que, por razões diversas, devem abandonar sua terra de origem e transferir-se para outras regiões: os migrantes. A pergunta: “Para onde vais?” adquire no seu caso uma dimensão particularmente realista: a dimensão do mal-estar e da solidão, não raro, a dimensão da incompreensão e da rejeição.

O quadro da mobilidade humana, neste vosso País, é amplo e complexo. Amplo, porque envolve milhões de pessoas de todas as categorias. Complexo, pelas causas que supõe, pelas consequências que provoca, pelas decisões que exige. O número dos que migram dentro desta imensa Nação atinge, pelo que me é dado saber, alturas que preocupam os responsáveis: uma boa parte deles vai à procura de melhores condições de vida, emigrando de ambientes saturados de população, para lugares mais desabitados ou de melhores condições de clima, que oferecem, por isso mesmo, a possibilidade de um progresso econômico e social mais fácil. E não são poucos também os brasileiros que atravessam a fronteira.

Mas, o Brasil, como também os outros Países do continente americano, é uma nação que já deu muito e muito deve à imigração: apraz-me lembrar aqui os portugueses, os espanhóis, os poloneses, os italianos, os alemães, os franceses, os holandeses e tantos outros da África, do médio e do extremo Oriente, praticamente, do mundo inteiro, que aqui encontraram vida e bem-estar. E, ainda hoje, não são poucos os estrangeiros que pedem trabalho e casa a este sempre generoso Brasil. Nesta complexa situação, como não pensar, pois, no desenraizamento cultural e talvez linguístico, na separação temporária ou definitiva da própria família, nas dificuldades de inserção e de integração no novo ambiente, no desequilíbrio sócio-político, nos dramas psicológicos e em tantas outras consequências, especialmente, de caráter interior e espiritual?

A Igreja do Brasil quis unir a celebração deste Congresso Eucarístico com o problema das migrações. “Para onde vais?”. É uma pergunta à qual cada um deve dar sua resposta, que respeite as legítimas aspirações dos outros. A Igreja não se cansou nem se cansará jamais de proclamar os direitos fundamentais do homem: “o direito de permanecer livremente no próprio País, de ter uma Pátria, de emigrar dentro e para fora do País, por motivos legítimos, de poder ter uma vida de família plena, de contar com os bens necessários para a vida, de conservar e desenvolver o próprio patrimônio étnico, cultural, linguístico, de professar publicamente a própria religião, de ser reconhecido e tratado de acordo com a dignidade de sua pessoa em qualquer circunstância”(Pont. Com. para a Pastoral das Migrações e do Turismo, Igreja e mobilidade humana, 17, 26 de maio de 1978: AAS 70 [1978] 366). Por este motivo, a Igreja não pode dispensar-se da denúncia das situações que constringem muitos à emigração, como o fez em Puebla (cf. Puebla, 29 et 71).

É, porém, necessário que esta denúncia da Igreja seja confirmada com uma ação pastoral concreta, que empenhe todas as suas energias. As das Igrejas dos pontos de partida, através de uma preparação adequada dos que se dispõem a emigrar. As das Igrejas do lugar de chegada, que deverão sentir-se responsáveis por uma boa acolhida, que deverá traduzir-se em gestos fraternos para com os emigrantes.

Que esta fraternidade, que na Eucaristia encontra seu ponto mais alto, se torne aqui uma realidade sempre mais vigorosa. Ao lado dos Índios, primeiros moradores destas terras, os emigrantes, provenientes de todas as partes do mundo, formaram um povo sólido e dinâmico que, amalgamado pela Eucaristia, soube enfrentar e superar, no passado, grandes dificuldades. Os meus votos são de que a fé cristã, alimentada na mesa eucarística, continue a ser o fermento unificador das novas gerações, de tal modo que o Brasil possa sempre olhar sereno para seu futuro e caminhar pelas estradas de um progresso humano autêntico.

6. No início desta Celebração cantastes com entusiasmo:

“Reunistes num só povo / emigrantes, nordestinos, estrangeiros e nativos: / somos todos peregrinos”.

É uma verificação plenamente ligada à realidade. Sim, todos somos peregrinos: perseguidos pelo tempo que passa, errantes pelas estradas da terra, caminhamos nas sombras do provisório à procura daquela paz verdadeira, daquela alegria segura, da qual tanto precisa nosso coração cansado. No banquete eucarístico, Cristo vem ao nosso encontro para oferecer-nos, sob as humildes aparências de pão e de vinho, o penhor daqueles bens supremos para os quais tendemos na esperança. Digamos-lhe, pois, com fé renovada:

“Nós formamos o teu povo / que é santo e pecador:
Cria em nós corações novos, transformados pelo amor”.

Homens de coração novo, um coração transformado pelo amor: disto precisa o Brasil para caminhar confiante ao encontro de seu futuro. Eis, por isso, a minha oração e o meu augúrio: que esta Nação possa prosperar sempre espiritual, moral e materialmente, animada com aquele espírito fraterno, que Cristo veio trazer ao mundo. Desapareçam, ou se reduzam gradativamente ao mínimo, no seu interior, as diferenças entre regiões dotadas de particular bem-estar material e regiões menos afortunadas. Desapareçam a pobreza, a miséria moral e espiritual, a marginalização, e que todos os cidadãos se reconheçam e se abracem como autênticos irmãos em Cristo!

Tudo isso será certamente possível se uma nova era de vida eucarística tornar a animar a vida da Igreja no Brasil. O amor e a adoração a Jesus Sacramentado sejam, pois, o sinal mais luminoso de vossa fé, da fé do povo brasileiro!

Ó Jesus Eucaristia, abençoa a tua Igreja, abençoa esta grande Nação, e dá-lhe a prosperidade calma e a paz autêntica! Amém!"

Discurso do Papa São João Paulo II aos Bispos do Brasil
Fortaleza, 10 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Presidente, Senhores Cardeais
Queridos Irmãos no Episcopado,
1. Na alegre expectativa da visita que ora faço ao vosso País, frequentemente, pensei nos variados encontros que aqui teria. Cada um deles me parecia muito importante, mas posso dizer-vos com sinceridade de irmão: nenhum mais importante do que este, com os Bispos do Brasil.

Formais hoje o corpo episcopal mais numeroso do mundo. Ao número bem corresponde a intensa atividade que desdobrais no pastoreio de uma Igreja jovem e dinâmica como é a vossa. Por isso mesmo e pelas promissoras perspectivas de vosso País, o Episcopado de que fazeis parte assume um prestígio mas também uma responsabilidade que vão bem além das fronteiras de vossas Dioceses e da própria Nação: responsabilidade perante a Igreja inteira.

Por isso mesmo, era o meu anseio maior, no quadro desta peregrinação apostólica, estar pessoalmente no meio de vós, saudar-vos “in osculo sancto”(Rm 16, 16; 1Cor 16, 20) e “in vinculo pacis” (Ef 4, 3), exprimir-vos de viva voz meus sentimentos de Pastor da Igreja universal. O Senhor Jesus há de compreender que eu vos diga, aplicando a esta circunstância, palavras que Ele próprio pronunciou em um momento crucial de Sua vida: “Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco”(Lc 22, 15). Este encontro é, com efeito, uma Páscoa, passagem do Senhor no meio de nós. Deus seja louvado por conceder-me esta oportunidade e nos assista nesta hora, para que este encontro seja para vós fonte de renovada fecundidade pastoral como é para mim fonte de alegria e de conforto.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

2. Minhas primeiras palavras querem ser de fraterna saudação à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Não posso esquecer o caráter quase pioneiro desta Conferência. Ela nasceu, já com este nome de Conferência de Bispos, no longínquo 1952, uma das primeiras do mundo a se constituir, muito antes que o Concílio Ecumênico Vaticano II pusesse em nova luz a doutrina da colegialidade episcopal e preconizasse justamente as Conferências Episcopais como expressão peculiar e órgão particularmente apropriado dessa colegialidade.

Ao longo destes vinte e oito anos – não há quem não o reconheça – procurou cumprir uma missão e realizar uma obra conformes com a sua natureza própria: possibilitar o encontro e o diálogo dos Bispos cada vez mais numerosos no País; facilitar a convergência da ação pastoral graças sobretudo a um planejamento e a uma pastoral de conjunto que foram desde o início a preocupação dominante da CNBB; ser um órgão capaz de representar com a maior autenticidade possível o Episcopado brasileiro junto a outras instancias, sem excluir a civil.

Não é menos certo que a Conferência, longe de paralisar-se na autosatisfação do que já realizou, deverá esforçar-se continuamente para ser sempre mais fiel à sua missão. Tal fidelidade à sua vocação original, aos objetivos que a sabedoria da Igreja lhe aponta e aos caminhos que ela própria se traçou, é condição de eficácia da sua ação. Para ela, pois, como para todo organismo vivo, sobretudo se é um organismo a serviço de Jesus Cristo, aperfeiçoar-se é um sinal de saúde interior, é uma exigência, é um dever.

Em que aspectos aperfeiçoar-se e crescer? O documento de Puebla nos sugere a resposta: na comunhão, na participação e na evangelização.

A comunhão no seio da CNBB

3. Na comunhão em primeiro lugar. Pois esta é a razão de ser e a finalidade primeira de toda Conferência Episcopal: criar e manter permanentemente viva a comunhão entre os Bispos que a compõem. Estes são necessariamente homens muito diferentes entre si, como diferentes eram os Doze primeiros escolhidos pelo próprio Senhor Jesus. Quanto mais numerosos, mais cresce o raio desta diferença. Entretanto o serviço pastoral que eles exercem exige, no nível mais profundo que se possa conceber, uma sólida comunhão entre eles. Cimento dessa comunhão – bem mais fortes do que tudo quanto poderia dividi-los ou separá-los – são o único Senhor que os chamou e os fez ministros seus; a única verdade da qual são mestres e servidores ao mesmo tempo; a única salvação em Jesus Cristo que eles anunciam e atualizam; a caridade fraterna que os “congrega na unidade”(cf. Hymnus Ubi Caritas).

Pastores de uma Igreja que, na teologia do Concílio Vaticano II, se compraz em definir-se “sacramento de unidade” (Lumen Gentium, 1), os Bispos são chamados a dar por primeiros o testemunho vivo da unidade. Não devemos, de resto, iludir-nos: a pregação melhor que podem fazer os Bispos de uma Nação, o serviço mais frutuoso que podem prestar à sua gente, o gesto mais eficaz que podem realizar será certamente a demonstração veraz e visível que puderem dar de comunhão entre eles. Ao contrário, sem essa comunhão, o resto se revela perigosamente precário. Ora, na sua Conferência, esses Bispos querem encontrar e têm o direito de encontrar, um estímulo à unidade e um instrumento de unidade.

Se me fosse lícito inspirar-me na minha experiência pessoal de Bispo e também de membro de uma conferência nacional, eu não hesitaria em dizer que uma manifestação qualquer de uma Conferência Episcopal produz tanto mais impacto (falo do impacto real, profundo e duradouro, não necessariamente clamoroso), quanto mais nele se refletir a unidade, como alma da Colegialidade episcopal, que concretamente se encarna neste grupo de bispos. Olhai, irmãos, a vivência da colegialidade efetiva ficará bem facilitada, na medida em que acompanhar a Colegialidade afetiva. Isto supõe diálogo autêntico com todas as suas componentes que, como sabeis, vão de uma sempre cultivada pobreza em espírito ate a constante abertura para a graça divina que é a sua perfeição. É atenção para com os outros nos pequenos gestos da vida quotidiana. Assim se cria o clima que faz crescer a confiança recíproca. Esta confiança que não se limita nunca à simples cordialidade no trato mútuo, mas há de chegar àquele sentimento profundo que nos permite aceitar, com simplicidade, no campo do opinável, opiniões ou posições diversas das próprias, desde que fique salvaguardado o bem comum da Igreja em plano local e na sua dimensão universal. Foi com uma consciência viva da Colegialidade episcopal e numa atitude de confiança fraterna que vim até vós e aqui me encontro, Irmão entre irmãos, para vos falar e vos ouvir dentro das limitações do tempo.

Acrescentaria – mas creio que é supérfluo – que o crescimento na comunhão requer o conhecimento recíproco aprofundado cada dia, a compreensão do outro, o respeito à sua consciência, a franqueza e a lealdade para com ele. Tudo isso, fruto de uma caridade que, neste plano, se chama amor fraterno, comunhão que leva a superar particularismos, partidarismos, ou disputas entre grupos e faz integrar dentro de um certo pluralismo sadio a compreensível diversidade. Uma Conferência não pode deixar de dar graças a Deus por estar imune desses problemas e deve suplicar-Lhe com humildade e fervor que assim seja sempre. E praza a Deus que nos documentos e pronunciamentos desta Conferência episcopal se reflita sempre tudo isto, pois também “por isto saberão todos que sois meus discípulos – diz o Senhor – se vos amardes uns aos outros”.

A participação na CNBB

4. Crescer em participação é a segunda meta. Uma Conferência episcopal é uma obra comum: espiritualmente rica se nela todos os Bispos se sentem plenamente membros e dão sua presença com prazer e sem constrangimento; empobrecida, ao contrário, cada vez que por qualquer motivo alguém se sente, de diz ou se põe à margem.

O crescimento na participação se concretiza em alguns fatos, humildes talvez, mas nem por isso menos dignos de consideração. Cresce a participação na medida em que se envidam esforços sinceros para que sejam percebidas e ponderadas as tomadas de posição em nome de toda a Conferência; o sentimento profundo e as convicções de parcelas do conjunto, consistentes, ainda que não majoritárias.

Em uma Conferência Episcopal numerosa, haverá tanto maior participação, quanto maior for a representatividade dos bispos membros, nos órgãos de decisão. Cresce a participação, quando os Bispos, na prática, experimentam a sua Conferência como o espaço no qual podem encontrar-se entre si no exercício da sua condição de chamados a participar da missão do Cristo Profeta. Em virtude disto, juntamente com o mesmo Cristo, os Bispos servem a verdade divina na Igreja.

Contribuem para plasmar a vida da mesma Igreja quanto à sua dimensão fundamental e são constituídos mestres da fé do povo de Deus em continuidade com o único Mestre Divino (cf. Mt 23, 8).

Daí a sua indeclinável responsabilidade, individual e colegial, perante o mesmo Cristo e perante toda a Igreja. No entanto, quem duvidaria da importância da colaboração competente que, em vários setores, sacerdotes, leigos, religiosos e religiosas prestam aos Bispos no âmbito da Conferência Episcopal. Eles merecem louvor por esta sua contribuição. São os bispos, naturalmente, que conservam a responsabilidade de decisões, pronunciamentos e documentos da Conferência como tal e, por isso, têm que responder perante a própria consciência e perante Deus. Rodear-se pois de colaboradores poderá ser uma maneira de apoiar o esforço de fidelidade à verdade divina e de melhor servir o povo de Deus. No entanto não deveria surpreender a ninguém que nas Assembléias e suas Conferências os Bispos disponham de períodos suficientemente longos para o encontro e o diálogo entre si, sem a presença de outros, para reforçarem a sua unidade como mestres da fé, partilharem a comum responsabilidade de serem, cada vez mais, força e segurança da fundamental unidade da Igreja.

Todos nós que olhamos com simpatia e admiração para a vossa Conferência só podemos fazer votos e rezar para que progrida sempre nela a participação.

Que nenhum recuse sua presença não apenas física mas ativa e colaborante. A graça maior da Conferência estará nesta participação.

A CNBB e a evangelização

5. Em qualquer Conferência Episcopal, o aperfeiçoamento na comunhão e na participação só pode ser útil ao aperfeiçoamento de sua tarefa principal que é a evangelização.

Na Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi”, que é certamente a carta-magna da evangelização para este último quarto de século e um dos mais notáveis documentos do magistério de Paulo VI, este grande e inolvidável Papa recordava que a evangelização é algo de rico, complexo e dinâmico (E. N., 17), que comporta variados elementos, mas acrescentava: “evangelizar é antes de tudo testemunhar de modo simples e direto Deus revelado por Jesus Cristo no Espírito Santo”(Ibid., 26), a base, o centro e o vértice da evangelização é a salvação em Jesus Cristo (Ibid., 27). O Documento de Puebla segue de perto a inspiração da “Evangelii Nuntiandi” quando, ao falar do conteúdo da evangelização, apresenta como “conteúdo essencial” (Puebla, 351) as “verdades centrais”(Ibid.,166) sobre Jesus Cristo (Ibid., 170 ss), sobre a Igreja (Ibid., 220ss) e sobre o homem (Ibid., 304ss), designando tudo o mais como “parte integrante” da evangelização.

Especialmente ao nosso mundo ameaçado de secularismo ateu – não será demais recordá-lo – a proclamação do absoluto de Deus do mistério de Jesus Cristo, da transcendência da salvação, da fé e dos sacramentos da fé, é um dever da Igreja. Um dever de seus Pastores. Estareis certamente de acordo comigo se afirmo que nós, ministros de Jesus Cristo em Sua Igreja, só teremos credibilidade e eficácia ao falarmos das realidades temporais se antes (ou pelo menos ao mesmo tempo) estamos atentos a proclamar “uma salvação que ultrapassa todos estes limites (temporais) para realizar-se no Absoluto de Deus”(cf. Evangelii Nuntiandi, 27), proclamar “o anúncio profético de um "mais além", vocação profunda e definitiva do homem”(Ibid., 28).

Ao relembrar tudo isto posso dizer que me sinto feliz quando uma Conferência Episcopal dá lugar nos programas de suas Assembléias a temas ligados às urgentes questões de ordem temporal que tocam de fato os homens de nossos dias. A própria natureza deste organismo exige sempre que tais questões sejam englobadas na evangelização e na prioritária busca do reino de Deus e da sua justiça (cf. Mt 6,32), que o Senhor nos indicava numa visão de conjunto de todas as nossas preocupações. Ele próprio nos deixou o exemplo. A todos sem exceção ele anunciava a boa nova mesmo estando da parte dos mais pequeninos, dos pobres e dos sofredores, com o seu amor de predileção.

Na nossa atividade de ministério terão de prevalecer sempre as coisas concernentes a Deus, se quisermos que permaneça com toda a sua vitalidade a nossa condição de constituídos a favor dos homens (cf. Mt 6, 32).

Assim, as Assembléias das Conferências Episcopais hão de ter a preocupação de aferir pelo “pensamento” de Deus – conhecido, buscado, aprofundado e partilhado fraternalmente – os problemas emergentes da vida dos homens e da sociedade sem deixar de tratar tempestiva e seguramente os problemas próprios da vida da Igreja como os relativos à liturgia e à oração, às vocações sacerdotais, à vida religiosa e sua reta renovação, à catequese, à formação religiosa dos jovens, à piedade popular e suas exigências, ao desafio de seitas aberrantes, à avalanche da imoralidade, etc.

É nisto prevalentemente que está a nossa força e a identidade da nossa Igreja. Desta maneira, com uma tal aplicação só tem a lucrar não apenas a Igreja no Brasil, no vosso caso, mas a própria sociedade brasileira e especialmente as gerações que sobem para a vida.

Nestes últimos tempos desde que foi conhecida a minha intenção de fazer esta visita pastoral ao Brasil aumentou muito o número das missivas que todos os dias me chegam deste país. São cartas comoventes, pela pobreza, simplicidade que revelam da parte de quem escreve não escondendo a dificuldade de alguns que mal aprenderam a manejar a pena. Elas manifestam uma fome de Deus, uma abertura para o sagrado e por vezes explicitamente sede da verdade do evangelho e da vida sobrenatural. Ora isto não pode deixar-nos indiferentes. Nós, pastores da Igreja, não podemos deixar de dar-lhes os bens espirituais que eles nos pedem, como “pequeninos que pedem pão, buscando alguém que o reparta”, como diz a Escritura. Efetivamente com os bens espirituais e com os meios próprios da Igreja de que dispomos, mediante programas de pastoral adequados por uma consciente preocupação pelo homem concreto com toda a sua verdade, a Igreja, sem necessidade de recorrer a meios que lhe são estranhos, bem pode contribuir para a transformação da sociedade, ajudando-a a tornar-se sempre mais justa, fundada na justiça objetiva. Isto torna bem patente a necessidade e realça a grande importância da catequese.

Impressiona-me, na leitura dos vossos Relatórios Quinquenais, a insistência com que muitos de vós lamentam a falta de aprofundamento na fé de um povo que dá mostras de ser religioso, bom, e, para usar a expressão de Tertuliano, “naturalmente cristão” (Tertulliani, Apologeticus, 17: Ed. Rauschen, 58). Uma tal superficialidade no conhecimento da doutrina da fé é causa de não poucos inconvenientes. Vós mesmos citais, entre outros: certa vulnerabilidade a doutrinas aberrantes; certa tendência a uma religiosidade feita de exterioridades, mais de sentimentos que de convicções; o risco sempre iminente de uma fé privatista e desligada da vida... Diante disto a catequese é uma urgência. Só posso admirar os pastores zelosos que em suas Igrejas procuram responder concretamente a essa urgência fazendo da catequese uma verdadeira prioridade.

A catequese portanto permanece sempre tarefa principal da evangelização, conforme salientava a Assembleia do Sínodo dos Bispos de 1974. Penso pois que ela deve constituir uma preocupação constante da Conferência Episcopal como tal e dos seus diversos organismos, que não deixarão de recorrer, quando necessário, a teólogos e peritos na arte de ensinar para precisão da doutrina e adaptação dos catecismos para as diversas idades e diversos níveis das pessoas às quais se destinam.

Quanto ao conteúdo e métodos desta catequese, não vou aqui retomar o que procurei explicitar, na medida do possível, em minha Exortação Apostólica Catechesi Tradendae. Recordo somente que os fiéis chamados à comunhão da Igreja têm o direito de receber a “palavra da fé” (Rm 10,8) “em todo o seu rigor e todo o seu vigor” (Catechesi Tradendae, 30)através de uma catequese eficaz, ativa e adequada: uma catequese que, pela integridade de seu conteúdo, traga ao homem do nosso tempo toda a mensagem de Jesus Cristo. Neste domínio, nós Bispos da Igreja teremos sempre viva em nossa consciência de Pastores a questão dos textos de catequese: como são elaborados? qual o seu conteúdo? que mensagem transmitem? que imagem de Deus, de Jesus Cristo, da Igreja, da vida cristã, da vocação do homem, eles comunicam? Eis um campo em que o zelo e a vigilância pastoral deverão se exercer como em poucos outros.

Aqui viria a propósito uma palavra sobre as comunidades eclesiais de base conforme as delineia o meu venerando predecessor Paulo VI na Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi”, (n. 58) para cuja orientação me permito chamar a vossa atenção. Tais comunidades constituem uma experiência atual na América Latina e sobretudo neste país. Ela há de ser acompanhada, assistida e aprofundada para dar os frutos por todos desejados sem desviar-se para finalidades que lhe são heterogêneas. Não quero alongar-me quanto a este ponto. Confio à vossa Conferência Episcopal o texto especial relacionado com as mesmas comunidades eclesiais de base, que teria tido gosto de dirigir pessoalmente, de viva voz, aos destinatários, se não fora a falta de tempo e de o programa estar sobrecarregado.

Responsabilidade pessoal de cada Bispo

6. Justamente concebida e devidamente realizada, a Conferência Episcopal é um inigualável ponto de encontro e de diálogo para os Bispos de um País. Nela cada um deles encontrará certamente apoio, orientação, encorajamento.

Entretanto, ela não pode nem pretende cercear, diminuir, menos ainda suprimir e substituir a responsabilidade pessoal que cada Bispo assume ao receber, com a Ordenação Episcopal, uma missão e os carismas necessários para cumpri-la. Esta missão que o liga à sua Igreja Particular mas o abre também à solicitude de todas as Igrejas, cada Bispo a cumpre como um empenho pessoal: é sua tarefa de Pastor.

Mencionando este múnus pastoral, não posso silenciar algo que me acompanha durante este encontro como motivo de alegria. Refiro-me à imagem que vós, Bispos brasileiros, projetais em toda a Igreja e no mundo inteiro: imagem de pobreza e simplicidade, de devotamento pleno, de proximidade ao vosso povo e plena inserção em sua vida e seus problemas. Imagem de Bispos profundamente evangélicos e profundamente conformes com o modelo proposto pelo Concílio Vaticano II em seus documentos. Eu já conhecia, através de numerosos depoimentos, esta faceta de vossa fisionomia de Bispos. Mas ao ler, como o estou fazendo, vossos Relatórios Quinquenais, ao acolher-vos e conversar convosco em minha casa, no quadro da visita que estais fazendo ad limina Apostolorum, para minha alegria e edificação e edificação também de vossos fiéis, posso dizer-vos que dou graças a Deus pelo vosso testemunho de pobreza e de presença no meio de vossa gente. Será ainda preciso encorajar-vos neste ponto? Faço-o de coração, pedindo a Deus que vos torne sempre mais capazes de verdadeira compaixão, isto é, de sofrer e de alegrar-vos, de conviver e colaborar com aqueles que Ele mesmo confiou ao vosso pastoreio.

Assim inseridos na existência de vossa gente, deveis sentir-vos mais à vontade para exercer os múltiplos aspectos da vossa missão pastoral. Cristo Pastor vos convida a assumir, sem omissões, todos esses aspectos. Vosso povo precisa que os assumais e, silenciosamente embora, vo-lo suplica. Eu próprio, chamado a confirmar-vos em vossa missão (cf. Lc 22, 32), espero que o façais. E quais são esses aspectos?

6.1. No meio de vosso povo, que vos diz hoje como os discípulos a Jesus: “ensinai-nos a orar”(Lc 11, 1), sede mestres de oração. Sois os primeiros liturgos de vossas Igrejas. Com elas e para elas celebrais os mistérios sacramentais, especialmente a Eucaristia. Mais ainda, sois os primeiros responsáveis por fazer rezar o vosso povo e os primeiros zeladores de uma oração litúrgica digna e fervorosa. É importante que, em comunhão com vossos Presbitérios, envideis todos os esforços para uma sadia renovação litúrgica em vossas Dioceses, evitando por uma parte um apego injustificável a formas litúrgicas que foram úteis no passado mas não teriam hoje maior sentido, e, por outro lado, os abusos litúrgicos, a experimentação prolongada em matéria litúrgica, o império do subjetivismo, a anarquia, coisas que rompem a verdadeira unidade, desorientam gravemente os fiéis, prejudicam a beleza e a profundidade das celebrações. Como Bispos, deve ser um de vossos cuidados maiores, o de cuidar da pureza e da nobreza das celebrações litúrgicas, certos de que isso, longe de prejudicar, dá melhores chances à Liturgia, à liturgia no Brasil.

6.2. A exemplo daqueles de quem hoje somos sucessores indignos, mas conscientes e responsáveis, sede anunciadores constantes de Jesus Cristo e de Sua mensagem. Para isso, antes de tudo, fomos chamados, ungidos, “colocados pelo Espírito Santo a reger a Igreja de Deus”(At 19, 20): para revelar aos homens o mistério de Jesus Cristo, fazer ressoar Sua Boa Nova, fazer de muitos homens discípulos Seus. Bem podemos repetir com São Paulo que não viemos proclamar nenhuma ciência humana, mas Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado (cf. 1Cor 1,23; 2,1-2), pois em meio ao nosso povo não somos peritos de política ou economia, não somos “lideres” em vista de nenhuma empresa temporal, mas ministros do Evangelho.

Este é, por assim dizer, o ponto mais íntimo da comunhão entre os Bispos. Eles podem dividir-se diante de opções temporais acidentais, mas é impossível que não se encontrem inseparavelmente unidos se se trata de cumprir a tarefa fundamental, do anúncio evangélico de Jesus Cristo.

6.3. Sede construtores da Comunidade Eclesial. Com notável insistência e, em vários documentos, o Concílio Vaticano II diz de nós Pastores que somos sacramentos – sinais e artífices – de comunhão. Ele sublinha com isso uma dimensão essencial de nosso ministério: a de convocar os que estão dispersos, reunir os que estão separados, construir assim a Igreja e mantê-la na unidade, malgrado todas as forças de ruptura e de desunião.

6.4. Sede mestres da Verdade, desta Verdade que o Senhor quis nos confiar, não para escondê-la ou enterrá-la, mas para proclamá-la com humildade e coragem, para promovê-la, para defendê-la quando ameaçada. Àqueles dentre vós a quem encontrei em Puebla, o ano passado, recordei a tríplice Verdade: sobre Jesus Cristo, sobre a Igreja, sobre o homem. A serviço desta Verdade encontram-se os teólogos e feliz a Igreja que encontra em seu seio mestres capazes de aprofundar essa Verdade, iluminados pela Revelação, pela Palavra de Deus e pela Tradição, pelo Magistério da Igreja e ajudados, a esta luz, pelas ciências humanas. Que os Bispos possam seguir com atenção o ministério desses teólogos, unindo-o ao conjunto do serviço eclesial, nada de mais fecundo e enriquecedor para a Igreja. O verdadeiro teólogo sabe, até por uma intuição sobrenatural, que caberá ao Bispo velar pastoralmente sobre sua atividade teológica, em benefício da fé do Povo de Deus.

Seríamos bem felizes todos se erros e desvios nestes três campos – Cristo, a Igreja, o homem – fossem algo de remoto, possível, quem sabe, mas por ora irreal. Sabeis que não é assim e que, por isso mesmo, o crucificante mas indeclinável dever de apontar tais erros com serenidade e firmeza e de propor pontualmente aos fiéis a Verdade, é para vós algo de próximo e mais que atual. O Senhor vos dê o carisma do discernimento para ter sempre presente estas verdades e a liberdade e segurança para ensiná-las sempre, rebatendo assim tudo quanto a elas se oponha.

6.5. Sede pais e irmãos de vossos Presbíteros, colaboradores vossos na obra do Evangelho (cf. Fl 4,3). Estou certo de que vossa experiência de Bispos só pode confirmar a minha, de vinte anos Bispo de Cracóvia: se é estimulante e encorajador para um sacerdote contar com a acolhida e colaboração de seu povo, a amizade dos colegas, não o é menos – diria que é muito mais – contar com a compreensão, a proximidade, o amparo nas horas difíceis, por parte do Bispo. Os Presbíteros de uma Diocese compreendem, de modo geral, que faltem ao Bispo dotes de administrador, de organizador, de intelectual, mas sofrem se não encontram nele a confiança de um irmão e a segurança impregnada de afeto, de um pai. Dai o melhor de vós mesmos para estardes sempre próximos de vossos padres. Mas sobretudo recordai-vos que, para um Bispo nada pode ser mais urgente e precioso do que a santidade de seus sacerdotes. “Forma gregis”, modelo do rebanho, não é exagerado nem deve ser utópico pedir ao Bispo que ele seja também “forma pastorum”, modelo de seus sacerdotes em tudo aquilo que constitui a espiritualidade – santidade pessoal e zelo apostólico – do seu Presbitério.

6.6. Sede pais atentos e vigilantes dos futuros sacerdotes. Eu me sentiria bem feliz se, deste nosso encontro, ficasse nos vossos corações de Pastores a firme convicção de tornar-vos mais ainda, em vossas Dioceses, suscitadores de vocações para o ministério presbiteral e para a vida religiosa.

Um Bispo pode estar certo de não ter perdido jamais o tempo, os talentos e as energias que despender para este fim. Velai, pois, por vossos Seminários, com a consciência de que toda imperfeição ou desvio que houver na formação dos futuros sacerdotes, por temor de ser exigentes, por acomodação ou por uma menor atenção de vossa parte, em colaboração com os formadores por vós escolhidos, é um dano para os próprios seminaristas hoje e um dano maior para a Igreja amanhã.

6.7. Sede pais e irmãos dos religiosos que, vivendo com toda a plenitude possível a sua consagração, se encontram no coração da Igreja ao serviço do Reino. Haja sempre a comunhão mais perfeita possível entre o Bispo e os religiosos e religiosas da Igreja local. Esta comunhão consistirá, antes de tudo, em respeitar e promover o carisma geral da Vida Religiosa com suas dimensões essenciais, e o carisma particular de cada família religiosa. No Bispo os religiosos deverão encontrar sempre alguém que os interpele a viver cada vez mais intensamente a própria vocação. Por outro lado, a comunhão consistirá em convocar e ajudar os religiosos e religiosas para uma inserção cada vez mais viva e orgânica no dinamismo pastoral da Diocese. Uma das exigências desta inserção será, da parte dos religiosos, a clara decisão de acolher e respeitar o carisma dos Bispos na Igreja como mestres da fé e guias espirituais, “postos pelo Espírito Santo para reger a Igreja de Deus” (At 19,20). As “mútuas relações” entre os Bispos e os religiosos, se inspiradas pelas virtudes cristãs da confiança, respeito, lealdade, caridade e espírito de serviço, mais do que por meras normas jurídicas, se revelam imensamente úteis à Igreja. Tanto mais em um País como o Brasil, onde a presença e a atividade dos religiosos é particularmente notável ao correr de toda a sua história.

6.8. Sede pais generosos e acolhedores dos leigos de vossas Igrejas. O Concílio Vaticano II explicitou uma teologia do leigo como um dos elementos mais notáveis da sua eclesiologia. Esta nos recorda que o leigo é, por definição, um discípulo e seguidor de Cristo, um homem da Igreja presente e ativo no coração do mundo, para gerir as realidades temporais e ordená-las ao Reino de Deus. Estes leigos esperam de seus Pastores, antes de tudo, alimento para sua fé, segurança quanto aos ensinamentos de Cristo e da Igreja, sustento espiritual para a sua vida, orientação firme para sua ação como cristãos no mundo. Esperam ainda o legítimo espaço de liberdade para seu compromisso na ordem temporal. Esperam apoio e estímulo para serem leigos sem risco de clericalização (e para isto esperam que seus Pastores o sejam em plenitude, sem riscos de laicização...). Possam os numerosíssimos leigos que aqui no Brasil, com empenho cada vez maior, dão-se sem reservas ao serviço da Igreja, encontrar em vós tudo aquilo de que precisam para um serviço ainda melhor.

6.9. Sede, em nome do Evangelho, promotores dos grandes valores humanos, e, antes de tudo, da verdadeira dignidade do homem, filho e imagem de Deus, irmão e herdeiro de Jesus Cristo. Vossa vocação de Bispo vos proíbe, com clareza total e sem meias tintas, tudo quanto se pareça com partidarismos políticos, sujeição a tal ou qual ideologia ou sistema. Mas não proíbe, antes, convida a estar próximo e a serviço de todos os homens, especialmente dos mais desvalidos e necessitados. Vós sabeis que a opção preferencial pelos pobres, vivamente proclamada por Puebla, não é um convite a exclusivismos, nem justificaria que um Bispo se omitisse de anunciar a Palavra de conversão e salvação a tal ou qual grupo de pessoas sob o pretexto de que não são pobres – de resto, qual o conteúdo que se dá a este termo? – pois seu dever é proclamar todo o Evangelho a todos os homens, e que todos sejam pobres em espírito. Mas é um convite a uma especial solidariedade com os pequenos e fracos, os que sofrem e choram, os que são humilhados e deixados à margem da vida e da sociedade, para ajudá-los a conquistar com sempre mais plenitude a própria dignidade de pessoa humana e de filho de Deus.

A Igreja do Brasil – eu já o disse várias vezes no correr desta viagem pastoral e de modo particular em meu encontro com nossos irmãos da Favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, testemunha é o Senhor Cardeal aqui presente, e faz bem em manifestar-se como Igreja dos pobres, Igreja da primeira bem-aventurança: “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino” (Mt 5, 3). Assim fazendo, no exercício de sua missão, a Igreja serve também ao bem da sociedade. Ela não tem a pretensão de assumir como função própria as atividades políticas. Ela respeita a Autoridade constituída (cf. 1Pt 2, 13-17) e não deixa de proclamar que para o bem da sociedade – como a expressão e para a manutenção e o exercício da soberania na mesma – a autoridade é necessária. A Igreja reivindica como seu direito e dever a prática de uma pastoral social, não na linha de um projeto puramente temporal, mas como formação e orientação das consciências, por seus próprios meios específicos, para que a sociedade se torne mais justa. E o mesmo deve fazer a Igreja, o mesmo devem fazer os Bispos nos diversos países do mundo e nos diversos sistemas existentes no mundo atual.

É função do Episcopado preparar e propor o programa de tal pastoral social e realizá-lo dentro da unidade colegial. No Brasil existe a possibilidade de se organizar tal ação com a perspectiva de dar muitos frutos, pois neste País a Igreja e o Episcopado constituem uma verdadeira força social. Para isso, porém, existem condições fundamentais a preencher.

Antes de tudo, é preciso que este programa social tenha autenticidade, quer dizer, esteja em coerência com a natureza e a identidade da Igreja: corresponda aos seus princípios (que são os do Evangelho) e se inspire em seu magistério, especialmente em seu magistério social. Em outros termos, essa pastoral social não pode basear-se em premissas que, com todos os méritos e qualidades que se lhes queira reconhecer, são contrárias à verdade católica em seus próprios fundamentos.

Em segundo lugar, a pastoral social deverá ser autenticamente brasileira mas nem por isso deixar de ser ao mesmo tempo universal. Ela deve responder à verdade integral a respeito do mundo contemporâneo. Deve ter os olhos abertos para todas as injustiças e todas as violações dos direitos humanos, seja onde for, no domínio dos bens materiais como dos bens espirituais. Se faltar esta ótica fundamental, ela corre facilmente o risco de tornar-se objeto de manipulações unilaterais.

Depois, o programa da ação social da Igreja deve ser também orgânico: deve tomar em consideração a ligação que existe entre os diferentes fatores econômicos e técnicos de uma parte, e, de outra parte, as exigências culturais. Neste contexto, deve-se dar atenção especial à instrução e à educação, pré-requisitos indispensáveis para o acesso a uma promoção social igual para todos.

As reformas audazes, que são necessárias, não têm como objetivo único a coletivização dos meios de produção, menos ainda se com isso se entende a concentração de tudo nas mãos do Estado, convertido na única verdadeira força capitalista. Essas reformas devem ter por escopo permitir o acesso de todos à propriedade, já que esta constitui de certo modo condição indispensável da liberdade e criatividade do homem, aquilo que lhe permite sair do anonimato e da “alienação”, quando se trata de colaborar com o bem-comum.

Por último, a ação social da Igreja deve ser o comprometimento de todos quantos levam sobre os ombros parcelas significativas da missão da Igreja, cada um de acordo com sua função e sua responsabilidade específica.

Assim, os teólogos não ficarão expostos a toda espécie de objeções, se eles sabem dar ao que ensinam uma orientação inteiramente evangélica e cristã, fiel aos ensinamentos da própria Igreja. Os ministros da Igreja – bispos e sacerdotes – terão consciência de que sua participação melhor e mais eficaz nesta pastoral social não é a que consistiria em empenhar-se em lutas partidárias ou em opções de grupos e sistemas, mas a que faz deles verdadeiros “educadores na fé”, guias seguros, animadores espirituais. Os religiosos evitarão permutar aquilo que constitui seu carisma na Igreja – consagração total a Deus, a oração, o testemunho da vida futura, a busca da santidade – por empenhos políticos que não servem nem a eles próprios que perdem a sua identidade; nem à Igreja que fica empobrecida com a perda de uma sua dimensão essencial; nem ao mundo e à sociedade, igualmente privados daquele elemento original que só a vida religiosa podia fornecer ao legítimo pluralismo. A própria atividade dos leigos assumirá sua genuína dimensão, pois passa a ter em vista o homem integral com todas as suas componentes, “inclusive com sua abertura para o absoluto, mesmo o Absoluto de Deus (Evangelii Nuntiandi, 33).”.

6.10. E eu não poderia silenciar nesta circunstância de um feliz encontro convosco uma última exortação: sede irmãos do Sucessor de Pedro a ele unidos afetiva e efetivamente “in opus ministerii” (cf. Ef 4, 12). Só “cum Petro et sub Petro” (Ad Gentes, 38), independentemente da pessoa daquele que incidentalmente reveste a condição de Pedro, o Colégio episcopal e cada Bispo encontram a plenitude de sua missão eclesial.

Penso que é supérfluo recordar que esta comunhão com o Papa se exprime em um acolhimento à sua palavra não apenas quando se pronuncia pessoalmente, mas também quando fala através de órgãos que com ele colaboram no governo pastoral da Igreja e falam em seu nome, com sua aprovação, senão com mandato seu.

Nada mais confortador para mim, como fruto de vossa visita “ad limina” e de minha visita a vós do que saber que posso contar com essa comunhão sincera, generosa, com a Sé de Pedro, princípio de unidade e germe de universalidade. Unido a vós “in cruce et spe Episcopatus”, o Bispo de Roma, Pastor da Igreja universal encontra renovada coragem no singular ministério que um misterioso desígnio de Deus me quis confiar.

Evocação de irmãos Bispos

7. Não quero terminar estas palavras e encerrar este encontro sem evocar as figuras de Bispos, que ao longo de quatro séculos e meio foram neste País os legítimos sucessores dos Apóstolos e aqui dedicaram toda a vida, todas as energias à construção do Reino de Deus. Diversas as circunstâncias histórico-culturais em que foram chamados a exercer sua missão, diversas suas fisionomias humanas, diversas suas histórias pessoais, todos porém homens que deixaram marcas de sua passagem, desde aquele Dom Pedro Fernandes Sardinha que foi o primeiro Bispo a exercer aqui no Brasil seu ministério episcopal. Qualquer citação de nomes é forçosamente limitada mas como não evocar figuras como as de Dom Vital de Oliveira e Dom António Macedo Costa, de Dom Antônio Ferreira Viçoso, dos dois primeiros Cardeais brasileiros Dom Joaquim Arcoverde e Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, de Dom Silvério Gomes Pimenta e de Dom José Gaspar de Affonseca e Silva? Como não evocar aqui em Fortaleza a figura admirável de Dom Antônio de Almeida Lustosa que repousa nesta Catedral e que deixou nesta Diocese a imagem luminosa de um sábio e de um santo. Possa a recordação destes irmãos, e de tantos e tantos outros, que nos precederam com o sinal da fé, estimular-nos mais e mais no serviço do Senhor."

Discurso do Papa São João Paulo II no encontro com o Clero
Catedral de Manaus, Amazonas, 10 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Arcebispo Administrador Apostólico de Manaus, Senhores Arcebispos e Bispos,
Caríssimos irmãos e irmãs em Jesus Cristo

1. A Providência divina foi mais uma vez bem generosa para com o Papa, reservando-lhe, depois de um mundo de alegrias, a alegria suplementar de vir concluir aqui, em Manaus, no coração do fabuloso Amazonas, o intenso programa desta visita pastoral. Eu Lhe sou profundamente agradecido de encontrar-me convosco, neste cenário que fala do Criador e proclama que é “Ele o único que faz grandes maravilhas” (Sal 135,4) e elevo ao Deus uno e trino, em nome do qual aqui me encontro, louvor e homenagem.

Sinto-me feliz por poder encontrar-me com a Igreja – tão marcadamente missionária – desta Região, com a sociedade civil, seus governantes e representantes, de modo particular. Muito obrigado pela calorosa acolhida de todos, bem expressa nas palavras bondosas do Senhor Arcebispo Administrador Apostólico.

2. Presente por toda parte, o Senhor quis estar presente aqui no meio de nós por outras maneiras particulares: realmente presente em Corpo, Sangue, Alma e Divindade na Santíssima Eucaristia que celebramos; presente na Sua Palavra, confiada à Igreja como depósito e patrimônio, Palavra da vida e da verdade que o Papa também aqui deseja anunciar; presente no Vigário de Cristo, ao qual foi dado o poder de “apascentar as Suas ovelhas e os seus cordeiros”(cf. Jo 21, 15ss); presente em cada um dos Seus “santos”, isto é, daqueles que vivem a vida divina; presente na Comunidade dos que aqui nos congregamos em Seu nome; e presente, enfim, nos “pequeninos”, naqueles “pobres em espírito” que o Senhor proclama bem-aventurados (cf. Mt 5, 3), porque vazios de si mesmos para acolher o Reino e porque com eles o Senhor de algum modo se identifica: “Cada vez que fizestes a cada um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40).

Presentes a Ele e n’Ele unidos pelo vínculo da caridade, que seja o Senhor a falar-vos por “Pedro”: a Ele empresto minha voz e meu visível afeto para que a todos chegue um sinal do Seu amor.

3. Uma saudação, antes de mais ninguém, aos meus amados Irmãos no Episcopado, que colegialmente unidos comigo partilham a solicitude de todas as Igrejas. Com eles saúdo a coroa de Sacerdotes, diocesanos e religiosos. Vós sois um dom que Deus faz à sua Igreja. Pelo Sacramento da Ordem o Senhor que vos escolheu e chamou vos consagra por um novo título para serdes servidores do Seu Evangelho de Salvação (cf. Gal 1, 7). Ilumina-nos a todos a visão da Igreja, como Cristo a quis, universal, revestindo embora em cada parte do mundo aspectos e expressões exteriores diversas, sempre una e única. Por isso, enquanto procurais estar bem próximos do povo e dos seus problemas, fazeis bem em cultivar a unidade eclesial, “arraigados e fundados na caridade”(cf. Ef 3,17).

4. Saúdo-vos também – sabeis com quanta afetuosa estima – a vós queridos Religiosos e Religiosas. Por vossa consagração entregastes vossa vida nas mãos do Senhor. Deixai-vos moldar por Ele, na intimidade que se alimenta com a oração e a adoração “em espírito e verdade”, como o Pai quer os seus adoradores. Seja o Espírito de amor a conduzir-vos sempre, pelas vias da ascensão espiritual, com pobreza simples, obediência generosa e castidade transparente.

5. A vós todos, igualmente, amados filhos, quer ocupeis cargos de responsabilidade quer vos entregueis aos trabalhos mais simples como cristãos, a todos se estende a mesma afetuosa saudação. Em união direta com os vossos pastores e na comunhão de toda a Igreja, sois aqueles que na realidade do dia-a-dia dais no vosso ser e agir e traduzis em vida, o testemunho da Boa Nova.

Olhai para Cristo, o nosso modelo e mestre: Ele passou “fazendo e ensinando” (cf. At 1, 1).

Ele nos recorda a todos o dever da fidelidade à vocação recebida de Deus e aos compromissos pessoalmente assumidos no Batismo. Para cumpri-los somos continuamente enriquecidos com graça sobre graça.

Recordo-vos, nesta circunstância, que uma só coisa é necessária: a coerência com o ser cristão, a fidelidade ao amor com que Deus nos amou primeiro e espera o nosso amor. A verdade é que somos chamados todos – não tenhamos medo da palavra – à santidade (e o mundo hoje precisa tanto de santos!), uma santidade cultivada por todos, nos vários gêneros de vida e nas diferentes profissões, e vivida segundo os dons e as funções que cada um recebeu, enveredando sem hesitação pelo caminho da fé viva, que suscita a esperança e opera pela caridade (cf. Lumen Gentium, 41).

6. A última – mas cordialíssima – saudação vai para os amados índios que vou encontrar dentro de um momento.

7. Envio desta Catedral, saudações cordiais também a toda a população desta hospitaleira cidade e de todo o Amazonas e territórios e estados vizinhos, pensando em particular nas Comunidades católicas das Dioceses e Prelazias desta parte norte do Brasil. E num pensamento afetuoso envolvo ainda os que sofrem, no corpo ou na alma. Cristo seja a sua esperança e a sua paz!

E que a paz de Deus desça sobre todos vós e sobre cada habitante desta cidade e sobre todos os que vivem e labutam nestas maravilhosas terras brasileiras.

Com a minha Bênção Apostólica."

Palavras do Papa São JPII no encontro com os Índios da Amazônia
Manaus, 10 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Meus amados filhos
A minha saudação primeiro de tudo para todos vocês, para aqueles que aqui representam. Vocês são uma presença muito grata para o Papa, nesta viagem que ele está realizando pelo Brasil, e agora pela querida Amazônia. Está realizando esta viagem especialmente para encontrar a vocês.

O que lhes vou dizer? Que lhes posso dizer? Começo por repetir o que talvez já tenham ouvido dizer aqui pelos seus amigos missionários: que a Igreja e o Papa vos estimam, estimam muito por aquilo que vocês são e por aquilo que vocês representam. Vocês representam pessoas humanas e “chamados a ser de Jesus Cristo” (Cf. Rm 1, 6), vocês representam também os filhos de Deus. A Igreja procura dedicar-se hoje a vocês como se dedicou desde a descoberta do Brasil a vossos antepassados. O bem-aventurado José de Anchieta, é neste sentido o pioneiro, de certo modo o modelo de gerações e gerações de missionários jesuítas, salesianos, franciscanos, dominicanos, missionários do Espírito Santo ou do Preciosíssimo Sangue, capuchinhos, beneditinos e tantos outros – totalmente devotados a vocês. Com meritória constância eles procuraram comunicar-lhes com o Evangelho toda ajuda possível em vista de sua promoção humana.

Confio aos Poderes Públicos e outros responsáveis os votos que, neste encontro com vocês, eu faço de todo coração em nome do Senhor: que a vocês, cujos antepassados foram os primeiros habitantes desta terra, tendo sobre ela um particular jus ao longo de gerações, seja reconhecido o direito de habitá-la na paz e na serenidade, sem o temor – verdadeiro pesadelo – de serem desalojados em benefício de outrem, mas seguros de um espaço vital que será base não somente para a sua sobrevivência, mas para a preservação de sua identidade como grupo humano, como verdadeiro povo e nação. A esta questão complexa e espinhosa almejo que se dê uma resposta ponderada, oportuna, inteligente, para o benefício de todos. Assim se respeitará e favorecerá a dignidade e a liberdade de cada um de vocês como pessoa humana e de todos vocês como um povo e uma nação.

Que Deus vos abençoe em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo."

Homilia do Papa São João Paulo II na Santa Missa em Manaus
sexta-feira 11 de  Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Senhor Arcebispo Administrador Apostólico, Meus irmãos no Episcopado e no Sacerdócio ministerial,
Caríssimos religiosos e religiosas, queridos irmãos e irmãs

1. No quadro de uma viagem pastoral intensamente desejada como é esta ao Brasil, o Papa desejou muito especialmente esta visita ao Amazonas e concretamente à formosa Manaus, capital deste grande Estado. Eu queria conhecer esta realidade original e dificilmente comparável a tudo quanto pude observar em outros pontos do País. Queria proporcionar às populações desta região a possibilidade de “ver Pedro” na humilde pessoa deste seu sucessor. Queria, mais ainda, nesta Igreja missionária, prestar uma sincera homenagem às missões e aos missionários em geral.

Eu vos saúdo pois a todos vós aqui presentes e em vós saúdo as populações e Dioceses dos Estados do Amazonas e do Acre, e dos Territórios de Rondônia e Roraima e Amapá. Saúdo também as pessoas representantes de grupos chegados da Venezuela. Por vós todos ofereço o Sacrifício Eucarístico. A vós deixo a minha bênção. Rezo por vosso bem-estar material e pelo vosso crescimento na fé. Acompanho vossa vida e vossos trabalhos, vossas angústias e esperanças.

Mas peço-vos licença para dirigir-me neste ponto da nossa Eucaristia, de modo particular, aos vossos missionários. Falando-lhes, falo indiretamente de vós e a vós. Confirmando-os em sua missão, confirmo na fé essa comunidade eclesial por eles alimentada e sustentada.

Desejo neste momento ter ainda um pensamento especial para uma significativa parcela da população que constitui – os Índios! E quero aqui repetir substancialmente o que dizia ontem no encontro que tive com eles. A Igreja procura dedicar-se hoje aos Índios, como se dedicou desde a descoberta do Brasil, aos seus antepassados. O Bem-aventurado José de Anchieta, nesse sentido, é um pioneiro e de certo modo um modelo de gerações e gerações de Missionários Jesuítas, Salesianos, Franciscanos, Dominicanos, Capuchinhos, Missionários do Espírito Santo ou do Precioso Sangue, Beneditinos e tantos outros!

Com meritória constância, eles procuraram comunicar-lhes, aos Índios, o Evangelho, e prestar-lhes toda ajuda possível em vista de sua promoção humana.

Confio aos Poderes Públicos e outros responsáveis os votos que eu faço de todo o coração em Nome do Senhor que aos Índios, cujos Antepassados foram os primeiros habitantes desta terra, seja reconhecido o Direito de habitá-la na Paz e na Serenidade!

Têm o temor, verdadeiro pesadelo de serem desalojados em benefício de outros mais seguros, de um espaço vital que será a base não somente para a sobrevivência, mas para a preservação da sua Entidade como um Povo!

A esta questão complexa e espinhosa almejo que se dê uma resposta ponderada, oportuna e inteligente para benefício de todos. Assim se respeitará e favorecerá a dignidade e a liberdade de cada um dos Índios, como Pessoa Humana e como um Povo!

2. Queridos Missionários, Bispos, Irmãos Sacerdotes, Irmãos Religiosos, Irmãs Religiosas, leigos e leigas, todos irmãos e irmãs!

Ao encontrar-vos aqui persegue-me um pensamento: há menos de 20 anos a Providência quis que o então Arcebispo de Cracóvia estivesse intensa e profundamente ligado à preparação de alguns dos mais importantes documentos do Concílio Vaticano II que ele depois assinaria com milhares de outros Padres. Eu vivi, naqueles dias memoráveis de um Concílio eminentemente eclesiástico, as reflexões, os estudos, os debates que iriam definir a Igreja como Povo de Deus reunido em virtude da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, como sinal e um instrumento da comunhão dos homens entre si e da humanidade com Deus, como sacramento da salvação para o mundo ao qual ela é enviada. Eles proclamariam também que, por tudo isso, esta Igreja é essencialmente missiónaria. Paulo VI retomaria com vigor esta palavra em sua magistral Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi” (Evangelii Nuntiandi, 59; Ad Gentes, 35) sobre a evangelização: “Toda a Igreja é missionária”.

Pois bem, nesta Igreja missionária eu tenho consciência de ser, por força do ministério pontifical que um desígnio misterioso de Deus me confiou, o primeiro responsável pela ação missionária. E esta precisa responsabilidade me trouxe ao Brasil, a vós e me impele a falar-vos com abertura de coração.

3. Quero, antes de tudo, trazer-vos estímulo e encorajamento no vosso labor missionário. Tarefa certamente exigente: ela vos arrancou de vosso país natal ou de outras regiões do Brasil e do seio de vossa família, vos confronta com uma realidade o mais das vezes espinhosa e difícil, pede de vós um trabalho cujos frutos provavelmente não sereis vós a colher.

Como surpreender-nos se, certos dias, sentis pesar essa tarefa com um peso que vos parece, por momento, superior às vossas forças? Nestes momentos, como aliás em todos os outros, devem ser para vós fontes de animo e conforto:
– a íntima convicção de que para esta tarefa, não vos apresentastes vós mesmos por nenhuma razão humana: fostes escolhidos e convocados pelo primeiro e supremo missionário Nosso Senhor Jesus Cristo;
– a certeza de que vosso trabalho, não só é útil e necessário, mas é indispensável à construção da Igreja neste pedaço de terra que, bem sei, adotastes como vossa;
– o afeto e a gratidão que tem por vós o povo bom ao qual anunciais o Evangelho;
– e por último, digo-o com total sinceridade, o imenso apreço que o Papa nutre pelo vosso trabalho, o respeito, a admiração, a fraterna amizade que ele tem para com as vossas pessoas.

4. Além destas expressões de encorajamento, desejais que o Papa vos diga ainda algo para a vossa missão?

Pois bem, sede, nesta porção da Igreja aonde Deus vos conduziu pela mão, aquilo que viestes ser: verdadeiros evangelizadores. A verdadeira evangelização, segundo a estimulante perspectiva da Evangelii Nuntiandi, é fundamentalmente o anúncio explícito de Jesus Cristo Redentor do Homem e da sua boa nova de Salvação. É por conseguinte comunicação alegre e esperançosa da revelação sobre a paternidade de Deus, Seu desígnio de amor, Seu Reino que se inicia neste mundo e tende à sua plenitude na eternidade. É também a proclamação de que em e por Jesus Cristo nasce um homem novo renovado na justiça e na santidade e com homens novos deve surgir uma sociedade nova regida pelas normas das bem-aventuranças e inspirada pela caridade que gera fraternidade e solidariedade. Toda evangelização visa portanto suscitar, aprofundar e consolidar a fé e, à luz da fé, tornar possível uma sociedade mais justa e fraterna.

No que concerne à fé, vós encontrais neste país um povo numeroso de batizados, povo profundamente religioso, que recorre a vós como a ministros de Jesus Cristo. Por uma série de circunstâncias históricas, entre as quais avulta a constante insuficiência de sacerdotes e demais ministros sagrados, à edificante piedade popular da maioria dessa gente não corresponde uma adequada formação seja no nível do conhecimento da Palavra de Deus e das verdades fundamentais, seja ao nível da prática sacramental, seja ainda ao nível da inserção da religião na vida e nos diversos aspectos desta.

Vós encontrais, por outro lado, não poucas situações de pobreza, de ignorância, de doenças, de marginalização que clamam por uma atenção desinteressada e eficaz de todos os que podem ajudar à promoção humana integral de amplas massas populares.

5. Vossa atividade missionária vos impele a revelar a todos, pequenos ou grandes, o “mistério escondido desde séculos” (Cl 1, 26), a mostrar-lhes o rosto de Deus, a nutri-los com os sacramentos, a ensinar-lhes o caminho da oração, o espírito das bem-aventuranças. Mas essa atividade se complementa com o muito que devereis fazer também para ajudar aos necessitados a promover-se passando de situações de miséria e abandono indignas de filhos de Deus a condições mais humanas de vida. Assim fizeram legiões de missionários antes de vós aqui mesmo na América Latina, aqui mesmo no Brasil.

O que importa – digo-o aqui em homenagem à consciência que certamente já tendes disso – é que o preço de vossa ação em favor da promoção material das pessoas não seja nem de longe a diminuição de vossa atividade estritamente religiosa. Seria um perigoso contra-testemunho tanto mais grave se deixais a impressão de fazê-lo sob o impulso de qualquer imperativo ideológico. A experiência mostra aliás que o testemunho, os pronunciamentos e a ação da Igreja em qualquer um dos seus níveis, só têm credibilidade e verdadeira eficácia no campo social se baseados em um testemunho, pronunciamentos e ação ainda mais intensos no seu campo principal que é o da educação da fé e o da vida sacramental. Se ela faz isso de verdade, é sua melhor forma de preparar cristãos que façam aquilo numa linha de profunda inspiração cristã e sem riscos de desvios.

6. Outra palavra vos quero dizer, breve mas carregada de sentimentos: uma mensagem de um sacerdote a seus irmãos sacerdotes. É o convite que quero deixar-vos em lembrança da minha visita, a serdes missionários em tal profundidade que isso não seja para vós apenas um título, embora belo e glorioso, mas o conteúdo mais profundo de vossa vida sacerdotal. Em outras palavras: que o ser missionário seja a razão de vossa vida, a inspiração profunda de vossa ação, o segredo de vossa espiritualidade.

Vosso modelo, nesta espiritualidade missionária, quem poderia ser senão o próprio Cristo, missionário do Pai, constantemente mergulhado na adoração deste Pai Celeste e constantemente entregue até a entrega final sobre a Cruz, à obra de salvação dos homens em total obediência à Vontade do mesmo Pai. Vossa atitude interior mais radical, a de bons pastores cheios de compaixão para com todos os que Deus confia ao vosso zelo, capazes de conhecê-los como o pastor conhece as ovelhas, prontos a nutri-los com a Palavra e os sacramentos, a defendê-los a gastar por eles vosso tempo, talentos, energias e a própria vida. Vossa preocupação, sempre nesta espiritualidade missionária: a de evangelizar mais ainda pelo testemunho de vossa vida do que por vossas palavras. “Forma factus gregis”, escrevia Pedro aos primeiros missionários nos albores da Igreja (1Pd 5, 3); “sede modelos do rebanho”, vos diz o humilde sucessor de Pedro neste encontro convosco. Vosso estímulo permanente: uma imensa caridade, esta caridade reflexo em nós do amor de Cristo, da qual dizia São Paulo que ela nos impele, literalmente: que ela nos punge como aguilhão e nos faz caminhar. Aqui, às margens do rio-mar, como não dizer-vos: “Aquae multae non potuerunt extinguere caritatem”? (Cant 8, 7) Os caudais do Amazonas não são capazes de apagar o grande amor a Deus e aos vossos irmãos que aqui vos trouxe, antes são modelo da imensidão e do vigor que deve ter esse amor.

7. Uma palavra ainda: uma comovida homenagem aos milhares de missionários que desde os anos da descoberta até hoje labutaram em toda a extensão do Brasil, e particularmente na região amazônica, “praedicaverunt verbum veritatis et genuerunt ecclesiae” (“pregaram a palavra da verdade e geraram igrejas”) (S. Agostinho Enarr. in Ps. 44, 23: CCL XXXVIII, p. 510). Quantos vieram de suas pátrias na Europa para nunca mais voltar, quantos esgotaram rapidamente suas jovens energias, consumidos pela fadiga ou pelas doenças, quantos encontraram a morte tragados pelas águas ou dormem o último sono em qualquer túmulo sem nome em um pedaço da imensa floresta? Eu me ajoelho diante de cada uma dessas sepulturas e mais ainda diante de cada uma dessas figuras de missionários, homens como nós, com defeitos e fraquezas, engrandecidos porém pelo testemunho do dom pleno de si mesmos às missões.

São vossos precursores: não cedais nunca à fácil tentação de pensar que a missão começa convosco, mas apoiai-vos sobre o muito que vos deixaram estes vossos irmãos, antepassados.

Sejam também, muitos deles que hoje contemplam a Face de Deus, vossos intercessores.

Entre eles, alguns receberam a glória dos altares como os Mártires do Rio Grande e, há dias, o Beato José de Anchieta a quem vai nossa veneração. Outros escondidos aos olhos dos homens encontram, na luz do Cristo Ressuscitado, o prêmio de seus sacrifícios. Alcancem eles de Deus, para vós, a coragem nas horas sombrias, a alegria de servir com amorosa generosidade e sobretudo a fidelidade que vos faça não olhar para trás, mas caminhar sempre atraídos pelo Senhor que um dia há de dizer-vos no entardecer: “Vem, servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor” (Mt 25, 21). Será esta a palavra definitiva, prêmio de vossos trabalhos, síntese de vossa vida."

Mensagem do São JPII aos Lideres das Comunidades de Base do Brasil
 - also in Spanish

Amados Irmãos,
1. Vosso desejo de poder avistar-vos com o Papa durante sua visita ao Brasil viria ao encontro do desejo que eu mesmo nutria de reunir-me convosco. Mas não foi possível, com grande pena para mim, tomar contacto com todas as realidades e experiências da Igreja no Brasil. Quanto a algumas delas tive de resignar-me a conversar com pessoas ligadas a elas. Assim sucedeu convosco, membros e responsáveis de Comunidades Eclesiais de Base. A leitura dos Relatórios Quinquenais dos Bispos do Brasil e minhas conversas com eles por ocasião da atual visita "ad limina Apostolorum" confirmam algo que eu já conhecia por anteriores informações: a enorme importância que têm as Comunidades Eclesiais de Base na Pastoral da Igreja no Brasil. Por isso não se tendo proporcionado ocasião para tal encontro, não quereria deixar-vos sem uma palavra, como sinal de interesse.

2. Alegra-me, antes de tudo, poder renovar agora aquela confiança que meu saudoso Predecessor, o Papa Paulo VI, quis manifestar em relação às Comunidades Eclesiais de Base. A elas consagrou um parágrafo denso, rico de conteúdo, luminoso em seus conceitos e altamente significativo em sua magistral exortação apostólica Evangelii Nuntiandi (n. 58). Ele recolhia neste texto tudo quanto sabre essas Comunidades se havia discutido no correr do Sínodo dos Bispos de 1974, no qual a Divina Providência quis que eu assumisse tarefas de grande responsabilidade já no decurso da Viagem Pastoral ao México, três meses após a eleição para o supremo Pontificado, eu tivera oportunidade de declarar que as Comunidades Eclesiais de Base podem ser um valioso instrumento de formação cristã e de penetração capilar do Evangelho na sociedade (cf. Insegnamenti di Giovanni Paolo II, 1979, p. 252 ss). Elas o serão na medida em que se mantiverem fiéis àquela identidade fundamental tão bem descrita por Paulo VI no citado parágrafo da Evangelii Nuntiandi.

3. Entre as dimensões das Comunidades Eclesiaìs de Base, julgo conveniente chamar a atenção para aquela que mais profundamente as define e sem a qual se esvairia sua identidade: a eclesialidade.

Sublinho esta eclesialidade porque está explícita já na designação que, sobretudo na América Latina, as Comunidades receberam. Ser eclesiais é sua marca original e seu modo de existir e operar. Formam-se em comunidades orgânicas para melhor serem Igreja. E a base a que se referem é de carácter nitidamente eclesial e não meramente sociológico ou outro. Sublinho também esta eclesialidade porque o perigo de atenuar essa dimensão, se não deixá-la desaparecer em benefício de outras, não é nem irreal nem remoto, antes é sempre atual. É particularmente insistente o risco de intromissão do político. Esta intromissão pode dar-se na própria gênese e formação das Comunidades, que se congregariam não a partir de uma visão de Igreja, mas com critérios e objetivos de ideologia política. Tal intromissão porém, pode dar-se também sob a forma de instrumentalização política de Comunidades que haviam nascido em perspectiva eclesial.

Uma delicada atenção e um sério e corajoso esforço para manter em toda a sua pureza a dimensão eclesial dessas Comunidades é um eminente serviço que se presta de uma parte a elas próprias e de outra parte à Igreja. A elas, porque preservá-las em sua identidade eclesial é garantir-lhes a liberdade, a eficácia e a própria sobrevivência. À Igreja, porque só servirão à sua missão essencial de evangelização Comunidades que vivem autenticamente a inspiração eclesial sem dependências de outra ordem. Aquela atenção e aquele esforço são um dever sagrado do Sucessor de Pedro, por força da sua "solicitude de todas as Igrejas" (cf. 2 Cor 2, 28). São um dever de cada Bispo em sua Diocese e dos Bispos colegialmente unidos no âmbito de uma Nação. São um dever também dos que têm alguma responsabilidade no seio das próprias Comunidades.

A oportunidade desta viagem parece-me momento adequado para exortar as Comunidades Eclesiais de Base do Brasil a conservar intacta a sua dimensão eclesial, não obstante tendências ou impulsos que venham do exterior ou do próprio País num sentido diverso. Se nos anos passados as Comunidades Eclesiais de Base latino-americanas, brasileiras em particular, manifestaram enorme vitalidade e foram acolhidas como valiosíssimo elemento pastoral, se tiveram além disso notável repercussão no exterior, foi justamente porque souberam manter, sem desvios nem alterações, a dimensão eclesial fugindo à contaminação ideológica.

Penso ser supérfluo definir de novo os elementos de uma verdadeira eclesialidade: eles aparecem todos com suficiente clareza na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi. Baste recordar que essa eclesialidade se concretiza em uma sincera e leal vinculação da Comunidade aos seus legítimos pastores, em uma fiel adesão aos objetivos da Igreja, em uma total abertura às outras comunidades e à grande Comunidade da Igreja Universal, abertura que evitará toda tentação de sectarização.

4. É sabido também que uma Comunidade eclesial tem de ser forçosamente uma comunidade de caridade ou de amor fraterno. Não foi por acaso que, querendo apontar o traço característico dos seus discípulos e seguidores, o Senhor proclamava: "Nisto conhecerão que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros" (Jo 13, 35).

É comunidade de caridade enquanto seus membros procuram mais e mais conhecer-se, viver juntos, partilhar alegrias e dores, riquezas e necessidades. De resto, qual é o primeiro motivo de formação de comunidades de base se não a necessidade e o desejo de criar grupos, não multitudinários mas à medida humana, capazes de constituir espaços de verdadeiro diálogo e partilha?

A comunidade de base será comunidade de caridade sobretudo enquanto se revela instrumento de serviço: serviço mútuo no interior da mesma comunidade; e serviço aos outros irmãos, sobretudo aos mais necessitados. Uma comunidade que se mostra verdadeiramente eclesial — porque nascida de um impulso eclesial, porque voltada para os objetivos da Igreja, porque vinculada aos Pastores da Igreja e porque sensível à escuta da Palavra de Deus, ao crescimento da fé, à oração — não deixa de ser eclesial porque vive a caridade. Ao contrário, ela cresce e se consolida na prática concreta da caridade desde que esta não fique comprometida, como pode acontecer, com projetos políticos.

A caridade vivida por uma Comunidade poderá tomar formas bem diversas: em primeiro lugar, ajudar alguém a aprofundar a própria fé; depois, também em gestos de promoção humana de pessoas ou grupos em depressão, ou gestos de integração de marginalizados; defesa de direitos humanos pisoteados; busca da justiça em situações de iniquidades; ajudar a superar condições infra-humanas; criação de mais solidariedade em uma determinada sociedade, etc. Tudo isto, porém, deve levar a marca de uma verdadeira caridade, tal como a descreve São Paulo (paciente, benigna, esquecida de si mesma para só cuidar dos outros, incapaz de se alegrar com o mal; cf. 1 Cor 13, 4 ss) ou São João: "Não há maior caridade do que dar a vida pela pessoa amada" (Jo 15, 13).

5. Nesta breve mensagem, uma última consideração a respeito daqueles que exercem nas Comunidades Eclesiais de Base uma função de animação espiritual.

A história, breve mas já bastante rica, das Comunidades Eclesiais de Base no Brasil como na América Latina parecem mostrar que nelas, sempre sob a responsabilidade pastoral dos legítimos Pastores — do Bispo na Diocese e dos Presbíteros devidamente mandatados pelo Bispo — numerosos leigos encontram a possibilidade de servir à Igreja mediante aquela animação espiritual que garante às mesmas Comunidades dinamismo eficácia. Em vossas regiões, onde os sacerdotes são escassos e assoberbados muitas vezes até o extremo de suas energias, esta colaboração dos leigos em uma tarefa precisa estende e multiplica maravilhosamente a ação do sacerdote.

É importante a função destes líderes de Comunidades Eclesiais de Base pois deles, em estreita associação com os pastores responsáveis, depende muito a orientação das Comunidades. Por isso, há exigências a ser sempre observadas. Não é supérfluo recordar algumas:
Pela sua relevância, a primeira é a necessidade já apontada de os líderes estarem, eles em primeiro lugar, em comunhão com os Pastores, se se deseja que as Comunidades Eclesiais de Base se mantenham nesta comunhão.

Em segundo lugar o líder, chamado a orientar a marcha da Comunidade e provavelmente a ajudar os seus membros a crescerem na fé, deve ter o sério empenho de formar-se, ele primeiro, na fé. Ele não transmite seu pensamento ou doutrina sua mas o que aprende e recebe da Igreja. Daí sua obrigação de acolher com diligência da boca da Igreja o que ela lhe quer dizer: a reta interpretação da Revelação divina na Bíblia e na Tradição, os meios de salvação, as normas de comportamento moral, a vida de oração e a Liturgia, etc.

Acrescentarei que, em todos os casos, um líder de Comunidades Eclesiais de Base, muito mais do que um mestre é uma testemunha: a Comunidade tem o direito de receber dele exemplo persuasivo de vida cristã, de fé operosa e irradiante, de esperança transcendente, de amor desinteressado. Que ele seja ademais um homem que crê na oração — e que reza.

6. Na simplicidade e modéstia destas palavras, sei que vai, brevemente delineado, amados irmãos, todo um programa. Confio-o à vossa reflexão e, rezando por vós, recomendo-o à assistência divina. Não faltem às vossas Comunidades e a vós que as representais os dons que o Espírito concede para a edificação da Igreja (cf. 1 Cor 14, 12). Que este Espírito faça brotar e crescer em vós, como princípio vital de vossa autêntica eclesialidade, um grande amor à mesma Igreja, amor filial maduro e simples, ao mesmo tempo, terno e resoluto, capaz de alegria e de sacrifício. Seja este amor a inspiração de vossa vida.

PAPA JOÃO PAULO II

Discurso do Papa João Paulo II na cerimônia de Despedida do Brasil
Manaus, 11 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"Queridos Amigos Brasileiros,
Meus irmãos e irmãs no Senhor Jesus Cristo
1. Chegou, com muita pena para mim, o momento de dizer adeus.

Antes de deixar o solo brasileiro, quero exprimir a minha gratidão profunda a todos: a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, ao Episcopado do Brasil, aos membros do Governo, ao Senhor Ministro aqui presente e às demais Autoridades e Responsáveis pelos destinos desta grande Nação.

Impossível citar, mesmo genericamente, todas as pessoas e grupos com quem tive contacto nestes dias abençoados e, por outro lado, não quisera esquecer ninguém. Chegue o meu agradecimento sentido a todo o Povo deste País e a cada um dos brasileiros: aos fiéis católicos e aos não católicos; a todos os homens e mulheres, nascidos ou radicados nesta terra, seja qual for a sua origem étnica, dos primitivos habitantes da “Terra de Santa Cruz”, os índios do Brasil, aos últimos estabelecidos nesta pátria hospitaleira; enfim, a todos aqueles a quem tive o prazer de ver e cumprimentar pessoalmente, bem como àqueles que nestes dias me acompanharam, graças à maravilha dos meios audiovisivos. A todos, muito obrigado! Desejaria que este muito obrigado chegasse particularmente a todos aqueles que participaram de maneira ativa na preparação e no desenrolar desta minha visita pastoral. E houve bem conta de quanto essa tarefa foi grande e de quanto este trabalho foi exigente. Não tenho outro modo para exprimir toda a minha gratidão senão mediante a lembrança nas minhas orações, pedindo que o próprio Deus recompense a todos e a cada um. A todos sem exceção. Quer aos representantes da Autoridade e da Administração quer às instituições da Igreja quer ainda a toda a comunidade da Nação brasileira.

2. Minha estadia no Brasil permitiu-me enriquecer meu conhecimento da língua portuguesa com algumas palavras e expressões. Aprendi, por exemplo, que “quem parte leva saudades”. Devo confessar que já estou sentindo o que significa este ditado. Mas, com a saudade do Brasil, levo também no coração uma imensa alegria e a mais grata satisfação, por tudo aquilo que me foi dado ver, comungar e viver convosco, nestes dias da minha permanência entre vós.

Permanência longa e breve; breve mas suficiente para uma intensa e marcante experiência humana e religiosa, que ficará como cimento de uma profunda amizade.

Deus seja louvado por tudo e por todos! E já que “toda a dádiva e todo o dom perfeito vem do alto”(Tg 1, 17), quero adorar e “dar graças a Deus, a quem sirvo” (Cf. 2Tm 1, 3) pelas muitas alegrias e consolações que sua infinita bondade me quis proporcionar, ao longo desta viagem pastoral.

3. Levo nos olhos e no coração tantas imagens de vida e beleza, que me impressionaram neste dinâmico e promissor País, e as últimas e mais impressionantes serão as imagens portentosas destes rios e florestas do Amazonas. Contudo, mais ainda do que as imagens das inúmeras maravilhas, quer naturais quer criadas pelo homem, é a imagem deste homem brasileiro que levo comigo. Do homem concreto e histórico que é neste momento protagonista de uma hora importante para o País.

Quando no dia 22 de outubro de 1978 dei início solene ao meu ministério na Sé de São Pedro, dirigia-me a todos com uma calorosa exortação: abri as portas a Cristo; abri amplamente os corações a Cristo.

Escancarei as portas a Cristo, quando hoje, depois dos doze dias de meu peregrinar por terras brasileiras, chegou a hora de despedir-me de vós. O meu coração está cheio de gratidão exatamente porque vós abristes as portas Àquele que, como sucessor de São Pedro, veio de Roma para realizar no meio de vós o seu ministério ao serviço do Evangelho. Que Deus vos recompense a vós que haveis acolhido este meu ministério. O Evangelho é a palavra da verdade. É certo que esta palavra nos coloca diante de exigências. Recordai-vos que tais exigências são sempre ditadas pelo amor para com o homem e ditadas por motivo do bem do mesmo homem.

Todo o serviço, o ministério da Igreja tem sempre em vista contribuir para que a vida humana também aqui sobre a terra, se torne sempre mais digna do homem e é por isso que a palavra do Evangelho tem sempre como finalidade o bem de todas as sociedades e de todas as nações. Oh quanto eu desejaria que o meu serviço apostólico em terras brasileiras contribuísse para o bem de toda a vossa grande sociedade nacional, que a reforçasse e a tornasse sempre mais pátria comum de todos aqueles homens que habitam aqui por gerações sucessivas desde os inícios, e de todos aqueles outros que no correr dos tempos aqui encontraram as condições de vida, de existência.

Praza a Deus que nesta Pátria se constitua a grande comunidade na qual reine a fraternidade, o amor, a justiça e a paz. Esta foi também a finalidade do meu ministério exercido no meio de vós.

4. E agora posso confiar-vos um desejo? Que as vossas portas que se abriram para mim com amor e confiança, permaneçam largamente abertas para Cristo. Será minha alegria plena. Na força redentora da Cruz, na energia vivificadora da Eucaristia, e na indefectível proteção de Maria, Mãe da Igreja, a iniciativa da viagem que ora está prestes a terminar. Na Cruz, na Eucaristia e em Nossa Senhora se baseia a minha esperança de que a semente da Salvação que aqui procurei ançar, germine, cresça e dê frutos de amor, de fraternidade e de vida cristã.

Tenho plena confiança de que, pela evangelização autêntica e total, a Boa Nova do amor do Pai, manifestado no seu Filho Jesus, chamando os homens à vida eterna, pela contínua ação do Espírito Santo há de penetrar no coração das massas, pois a Salvação também é “fermento”, destinada a “levedar toda a massa” do querido Povo brasileiro.

Deixando o Brasil, após estas intensas jornadas de fé e de calor humano, e também de calor climático, vós brasileiros continuareis bem presentes na minha oração. Pedirei sempre a Deus que os grandes princípios cristãos, desde sempre arraigados em vós, e sobretudo o senso de Deus e a solidariedade humana, continuem a marcar a fidelidade do Brasil a si mesmo e à sua identidade histórica.

Muito obrigado a todos! Meus melhores votos de prosperidade! Deus lhes pague e abençoe o Brasil, sob a contínua proteção de Nossa Senhora Aparecida!

Eu disse que era a hora de dizer adeus. Mas não: digo-vos apenas Até logo! Até logo! Até logo!

Se Deus quiser."

Discurso do Papa São JPII depois da Peregrinação Apostólica ao Brasil
Aeroporto de Fiumicino, Roma, Itália, 12 de Julho de 1980 - also in Italian & Spanish

"1. Obrigado, mil vezes obrigado, Senhor Presidente do Conselho de Ministros, pelas gentis expressões que me quis dirigir, em nome também do Senhor Presidente da República Italiana e do Governo; no momento em que de novo ponho pé no solo italiano, ao termo de uma viagem cheia de encontros, de colóquios e de inapagáveis comoções. Não é sem sentir profundo reconhecimento para com o Senhor que o meu pensamento regressa aos intensos dias passados entre as populações daquela terra imensa e estupendamente variada, que é o Brasil. Tenho ainda na vista os panoramas ilimitados, que se ofereciam ao olhar admirado durante as deslocações de uma localidade para a outra; mas bem mais tenho no coração o espectáculo comovedor das multidões imponentes de pessoas, da realidade humana, que se vinha encontrar com o humilde Sucessor de Pedro, para lhe trazer a própria saudação e o testemunho da sua fé.

Estive no meio dessa gente como missionário do amor de Cristo pelo homem. Com a minha visita quis manifestar a minha vontade de comunhão com os Irmãos no Episcopado e com os fiéis daquela nobre Igreja, com os seus esforços, as suas penas e as suas esperanças. Ao mesmo tempo quis exprimir às almas religiosas das outras Confissões e a todos os homens de boa vontade. o grande desejo que tema Igreja Católica de oferecer a sua colaboração, nó respeito e na recíproca estima, a todas as iniciativas dirigidas â promoção dos valores humanos fundamentais.

2. É-me agradável nesta altura dirigir um pensamento de gratidão ao Senhor Presidente da República Brasileira e às outras Autoridades políticas, civis e militares, que tantas atenções me reservaram nas várias etapas da minha peregrinação.

De delicadas atenções me cumularam também os Excelentíssimos Bispos, por cujas Igrejas passei, e também a eles desejo renovar aqui a expressão do meu reconhecimento. Nem posso deixar de dizer uma palavra sobre as provas de afectuosa dedicação recebidas de Sacerdotes, Religiosos e Religiosas, de Personalidades das Organizações católicas e, em geral, dos fiéis, com quem me foi possível tomar contacto; são recordações belíssimas, às, quais voltarei com ânimo grato no recolhimento da oração.

Os mais de 30.000 quilómetros percorridos nestes poucos dias; consentiram-me, apesar da limitação do tempo, formar para mim uma ideia bastante concreta da realidade humana e cristã daquele vastíssimo Pais, das graves dificuldades com que tem de medir-se, mas também dos extraordinários recursos de que, dispõe para construir o seu amanhã. Existe lá uma Igreja viva, rica de fermentos evangélicos autênticos, que a incitam no caminho para uma cada ver maior responsabilidade a respeito de Deus e a respeito do homem.

3. E agora que estou de regresso na minha Sede de Roma depois de um voo, que a perícia dos pilotos e a amabilidade do pessoal tornaram especialmente agradável — vá para cada um deles uma palavra especial de apreça e de reconhecimento —, tenho o prazer de ser acolhido pela vossa requintada cortesia. Ao renovar ao Senhor Presidente do Conselho de Ministros a expressão do meu reconhecimento, torno extensivo isto que sinto às Personalidades presentes, tanto civis como eclesiásticas, e a todos quantos desejaram trazer-me as suas boas-vindas. Apraz-me ver neste gesto delicado e espontâneo o testemunho de uma íntima participação nas finalidades desta minha viagem apostólica. Também eu dediquei um pensamento a vós, ilustres Senhores; nos momentos mais significativos da peregrinação: recordei-me em especial de vós aos pés. da Nossa Senhora Aparecida, entre a multidão do povo orante; e recordei-me também de vós onde a Igreja brasileira adorava, num coral cântico de louvor, o Cristo vivo no Santíssimo Sacramento da Eucaristia.

Espero que esta nova fadiga pastoral venha a produzir frutos consoladores para o bem das almas, para a mútua compreensão entre as pessoas e as classes sociais, para a cooperação internacional. Assim queira Deus, sem cujo auxilio de nada valem os esforços humanos. A Ele peço copiosos dons de cristã prosperidade também para todos vós, para as vossas famílias e para os habitantes desta dilecta Nação italiana, desta Cidade eterna e do mundo inteiro."